João Vianney Cavalcanti Nuto
O sagrado e o romance
em O evangelho segundo Jesus Cristo
O evangelho
segundo Jesus Cristo, ao contrário dos romances “históricos” de
Saramago, não se baseia propriamente na historiografia, mas no texto
bíblico. Contudo não se pode negar que a relação entre o texto
bíblico e a obra de José Saramago aborda problemas semelhantes
àqueles apresentados pelo texto historiográfico em Memorial do
Convento e História do Cerco de Lisboa. Que semelhanças
pode haver entre um texto historiográfico e um texto religioso, como
é o caso da Bíblia? Outra questão diz respeito aos traços
estilísticos-ideológicos próprios de um discurso épico, no sentido
de heróico, que é parodiado tanto no Memorial do convento
como em História do cerco de Lisboa. Também encontramos esse
tipo de paródia de certa concepção de herói em O evangelho
segundo Jesus Cristo. Pretendemos, neste ensaio, analisar as
semelhanças entre a abordagem do texto bíblico e do texto
historiográfico por Saramago – e também a paródia do discurso
heróico. Para isto, verificaremos as possíveis relações entre a
Bíblia, a História e a epopéia, para, então, analisarmos os
processos de estilização e paródia contidos no romance.
A primeira questão
diz respeito à noção de verdade e de como alcançá-la, sendo a obra
de Saramago bastante crítica quanto à noção de verdade absoluta.
Antes de tudo, é preciso distinguir a concepção a relação da
História e da memória com a verdade. A Bíblia não é um texto
historiográfico; mas, assim como a epopéia, é um texto que tem
função de memória. Assim como a História, na concepção de
Aristóteles, a Bíblia conta “o que aconteceu”[1] , a verdade,
ou mais precisamente, aquilo que é aceito como verdade pelos fiéis.
Aqui encontramos tanto a semelhança como a diferença em relação à
História. Se a História pretende contar “o que aconteceu” – ou pelo
menos a reconstituição, ou interpretação, possível –, essa verdade,
no ofício do historiador, precisa ser investigada[2]. Já no mito, no
texto sacro e na epopéia (pelo menos em seus primórdios) a verdade é
revelada. No caso do texto religioso a verdade é tanto mais
verdadeira porque sagrada.
Lembremos, a
propósito, que a narrativa bíblica, por ser um texto religioso,
incorpora diversos mitos, dentre eles, a criação do mundo e do
homem, a origem do mal, da dor e da morte; e o mito, como diz Eliade,
é uma historia verdadeira. Somente quando temos consciência da
formação do cânone bíblico, com exclusão dos chamados evangelhos
apócrifos[3] , somente quando conhecemos os trabalhos de tradução e
exegese por parte dos teólogos da Igreja, é que a Bíblia adquire um
sentido histórico: o sentido de uma pesquisa sobre o passado; ou
seja: somente quando pesquisamos é que a Bíblia se torna
histórica. Não é esta, porém, a leitura que se faz da Bíblia pelos
crentes, que é uma leitura de fé. Vista desta maneira, a narrativa
bíblica não é história no sentido estrito do termo, mas, assim como
o relato do cerco de Lisboa, não deixa de ser fonte de uma verdade
com a qual Saramago polemiza.
Em O evangelho
segundo Jesus Cristo, a noção de verdade absoluta é
constantemente questionada e criticada, desde a interpretação da
gravura de Albrecht Dürer, descrita na abertura do romance: “Lá
atrás no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio,
um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. (...).
Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma
calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao
pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz,
vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como
ao tempo se sabia e praticava.”[4] O narrador faz questão de frisar
que a Bíblia também não oferece os fatos “como eles foram”, mas
versões, como naquela resposta ríspida de Jesus a Maria: “Um filho
não trata desta maneira a mãe que lhe deu o ser, farão que o tempo,
as distâncias e as vontades busquem para elas traduções,
interpretações, versões, matizes que mitiguem a brutalidade e, se
tal é possível, dêem o dito por não dito ou ponham a dizer o seu
contrário, assim se escreverá no futuro que Jesus disse, (...)
Deixa-me proceder, não é preciso que mo peças. (...).”[5]
Mas, ao criticar as versões, tampouco se oferece o romance como um
portador da verdade absoluta, pois, como acontece nos outros
romances de Saramago, o próprio narrador questiona a fala que
atribui ao personagem: “(...) razão por que, faltando o seu
testemunho, seja lícito duvidar da autenticidade da filosófica
reflexão, que quanto ao fundo quer quanto à forma, tendo em conta a
mais do que óbvia contradição entre a notável propriedade dos
conceitos e a ínfima condição social de quem os teria produzido”. [6]
Ora, questionar uma
verdade sacra, mesmo sem querer substitui-la por outra verdade
inquestionável, por si só já é uma heresia. E a heresia perpassa
todo romance, ao oferecer versões que questionam, ou mesmo
contrariam, certos dogmas da Igreja Católica como a virgindade de
Maria, o papel do Diabo, a natureza de Deus e sua relação com
Cristo. Neste processo tudo o que é sagrado é submetido à crítica,
sendo, portanto, dessacralizado. Contudo essa dessacralização não
resulta em uma sátira, pois não é intenção do romance zombar do
sagrado, mas torná-lo mais humano. Exemplo disto é o questionamento
da idealização de Maria. Em O evangelho segundo Jesus Cristo,
Maria é uma mulher comum, oprimida como as demais da Judéia. Um
pouco tola, não tem a aquela doce majestade de suas imagens nas
igrejas. No entanto, sentimos por certa ternura por aquela mãe
adolescente, perplexa com os acontecimentos estranhos relacionados
com nascimento do primogênito; e pela mulher madura que custa a
compreender e aceitar o destino do filho. Os sucessivos estados de
gravidez de Maria subvertem aquela imagem de virgem imaculada,
conforme negação explícita dessa pureza idealizada, no trecho que se
segue: “Maria está outra vez limpa, de verdadeira pureza não se
fala, evidentemente, que a tanto não poderão aspirar os seres
humanos e as mulheres em particular (...)”.[7] Nem mesmo é dado a
Maria o privilégio de ter sido a escolhida do Senhor: “Então, o
Senhor não me escolheu, Qual quê, o Senhor só ia a passar, quem
estivesse a olhar tê-lo-ia percebido pela cor do céu, mas reparou
que tu e José eram gente robusta e saudável, e então, se ainda
lembras de como estas necessidades manifestavam apeteceu-lhe, o
resultado foi, nove meses depois, Jesus.”[8] Encontramos aqui um
efeito de ironia que advém não somente da informação, como também
pelo estilo, completamente prosaico, com que o anjo informa a Maria
o desígnio divino, em total desacordo com o tom solene do texto
bíblico.
Outras heresias, em
O evangelho segundo Jesus Cristo, são a natureza e função do
Diabo e de Deus, bem como o conflito entre Deus e Jesus. No início,
percebemos vagos indícios, que depois se confirmam, de que o anjo
que veio anunciar a concepção de Maria é o próprio Diabo. Esta
identificação não surpreende se atentarmos para a origem de uma das
palavras usadas para identificar o Diabo: demônio. O termo vem do
grego daimon, que, na mitologia pagã, era “um espírito
mediador entre deuses e homens, muitas vezes o espírito de um herói
morto”.[9] Informa Luther Link que “dáimon e daimônion
também significavam um espírito perverso, dominador, tendo sido esta
a única acepção desenvolvida no Novo Testamento e por muitos dos
primeiros padres. Os apologistas alexandrinos helenizados dos
séculos II e III, por exemplo, interpretaram os demônios platônicos
– que não eram particularmente bons nem maus – como anjos caídos
perversos”.[10]
Como observa Luther Link, a caracterização maligna dos demônios era
uma forma de combater o paganismo: “Assim fizeram com vistas a
formar uma nova equação: deuses pagãos = demônios maus = diabos. Tal
equação justificava condenar a adoração de deuses pagãos. ‘A coisas
que os gentios sacrificam, é aos diabos que sacrificam’, escreveu
Paulo”. [11]
Contudo, a maior
heresia, em O evangelho segundo Jesus Cristo, consiste no
papel ambíguo do Diabo, um dilema que muito preocupou a teologia
cristã. Se o Diabo tem como papel supliciar os pecadores e os
hereges, então o Diabo colabora com a ordem imposta por Deus:
incube-se, no além, do mesmo serviço sujo dos torturadores da
Inquisição aqui na terra.[12] Mas o Diabo é também o adversário de
Deus. É exatamente este o significado da palavra satan, em
hebraico.[13] A interpretação que prevaleceu é a de que o Diabo era
inicialmente um anjo, Lúcifer, que, por seu orgulho, rebelou-se
contra Deus e tenta arrastar a humanidade para o Inferno. Em O
evangelho segundo Jesus Cristo, o Diabo é um colaborador, mas
também é um adversário, pois colabora contrariado, já que é o
próprio que Deus rejeita a proposta do Diabo de acabar com o Mal:
“quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora,
Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu
és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um
tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu
acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o
Mal (...) Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus.”[14]
Assim, o narrador de O evangelho segundo Jesus Cristo,
concordando com Orígenes e Santo Agostinho, entre outros teólogos,
mostra que o Mal não existiu sempre: passou a existir com a revolta
de Satã. Entretanto, o narrador discorda de toda da ortodoxia
católica, ao mostrar que o Mal permanece não apenas porque Deus
permite sua existência provisória, mas porque ele assim o exige. É
ambíguo também o papel do Diabo, como tentador de Cristo, já que os
anos que passa com Jesus no deserto são também anos de aprendizado,
em que Jesus, tendo o Diabo como mestre, é confrontado com questões
perturbadoras que contribuem para o seu amadurecimento. Este caráter
ambíguo do Diabo torna-o menos terrível que a aquela figura criada
pelo imaginário medieval. O Diabo de Saramago é uma entidade até
mesmo simpática, que orienta Jesus nos seus anos de formação; e uma
figura prometeica diante de um Deus despótico. Por isto é que o
Diabo, que, segundo Dante, “já foi belo e hoje é feio”, não tem
aparência grotesca consagrada pela iconografia medieval[15] : suas
aparições, apesar de impressionantes, nada têm de pavorosas.
A imagem de Deus,
por outro lado, assusta não pela sua aparência, que, aliás, é
bastante convencional: “É um homem grande e velho, de barbas
fluviais espalhadas sobre o peito, a cabeça descoberta, cabelo
solto, a cara larga e forte, a boca espessa, que falará sem que os
lábios pareçam mover-se”.[16] Mas Deus assusta por sua onipotência e
despotismo. Como afirma Maria de Magdala, “Deus é medonho”[17] ; e
Jesus recorda-se dos seus contatos com Deus: “Jesus viu o deserto, a
ovelha morta, o sangue na areia, ouviu a coluna de fumo suspirando
de satisfação, e disse, Talvez, talvez, porém uma coisa é ouvi-lo em
sonho, outra será vivê-lo em vida.”[18] Diante desse Deus, ambicioso
e autoritário, que não hesita em sacrificar seu próprio filho para
poder expandir o culto a sua pessoa, é que se revela o verdadeiro
cálice amargo de Jesus: a lista de mártires do catolicismo, com seus
respectivos suplícios, pois, assim como em Memorial do convento,
encontramos, em O evangelho segundo Jesus Cristo, o traço
épico do catálogo dos heróis, transformado em um catálogo de
mártires[19] . Tão herético quanto surpreendente é o desfecho do
romance, quando Jesus se rebela, decidindo enganar o pai,
substituindo sua condição de filho de Deus, pela de um simples
rebelde contra Roma: “(...) mas, se no lugar dele puséssemos um
simples homem, já não poderia Deus sacrificar o Filho (...) Um
simples homem, sim, mas um homem que se tivesse proclamado o mesmo
rei dos Judeus, que andasse a levantar o povo para derrubar Herodes
do trono e expulsar os romanos, isto é que vos peço, que corra um de
vós ao Templo a dizer que eu sou esse homem”.[20] Nesse contexto,
muda também o papel de Judas de Iscariote, que, de traidor, passa a
ser colaborador de Jesus: “Foi então que se ouviu, clara, distinta,
por cima do alvoroço, a voz de Judas de Iscariote, Eu vou, se assim
o queres”.[21] Naturalmente toda esta versão implica questionamentos
perturbadores para os crentes, que estão acostumados a somente
repetir verdades tidas como absolutas, e, em sua maioria, ignoram os
expurgos realizados na formação do cânone bíblico: o textos
apócrifos, com suas versões alternativas. Há, portanto, certa
afinidade entre os evangelhos apócrifos –banidos do cânone bíblico
por serem considerados heréticos – e O evangelho segundo Jesus
Cristo. Mas este, até mesmo por assumir sua condição de ficção,
não pretende, de maneira alguma, substituir uma verdade
inquestionável por outra.
A atenuação da
superioridade de Jesus:
uma profanação delicada
Em Memorial do
convento e O evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago incorpora
elementos estilísticos-ideológicos próprios da epopéia, os quais
critica através da polêmica e da paródia. Haveria também esses
elementos na Bíblia? Assim como a epopéia, o texto religioso é
narrado em tom solene – com pouco clima para a introdução do
cômico – e tem função de memória, transmitindo uma verdade sagrada.
Incorporando mitos, apresenta o maravilhoso (os milagres), tem como
protagonistas pessoas superiores a nós (Deus, os anjos, os
profetas, o messias), e também apresenta cenas bélicas, como a
batalha de Jericó, ou de grande mobilização nacional, como a
travessia do Mar Vermelho. Lembremos, contudo, que O evangelho
segundo Jesus Cristo tem como principal fonte os evangelhos – o
que não descarta a possibilidade de Saramago ter consultado outras
fontes, como os evangelhos apócrifos, o Velho Testamento e livros
sobre a história da Igreja Católica. E os evangelhos parecem bem
mais afastados da epopéia que as narrativas do Velho Testamento.
A primeira é
diferença é estilística: os versos heróicos na epopéia; os
versículos nos evangelhos. Contudo, também os evangelhos apresentam
o tom solene, próprio para falar de coisas grandiosas e divinas
acontecidas “naquele tempo” (“in illo tempore”). Mas mesmo
esse tempo não é tão recuado quanto o da epopéia, pois os apóstolos
– a quem é atribuída a autoria dos evangelhos – teriam conhecido
Jesus pessoalmente. Nem são bélicas as ações do messias. Vejamos,
então, em o que os evangelhos teriam em comum com a epopéia, no que
diz respeito ao critério aristotélico dos objetos de imitação. Diz
Aristóteles que a epopéia tem como protagonistas pessoas
superiores a nós. Ocorreria o mesmo nos evangelhos? A resposta
só pode ser afirmativa se tivermos em mente uma outra concepção de
superioridade, radicalmente diferente do heroísmo clássico, pois
como afirma Harold Bloom “nenhum estudioso foi capaz de realizar uma
comparação convincente do pensamento grego e da psicologia hebraica,
no mínimo porque os dois modos parecem irreconciliáveis”.[22] Se
Aquiles e Ulisses são guerreiros e de classe superior; Jesus é um
messias, filho de um humilde carpinteiro. Mas tem Jesus muito em
comum com os protagonistas da epopéia e da tragédia, por ser, assim
como Aquiles e Édipo, aquele cujas decisões determinam o destino do
seu povo; como Moisés, Jesus é um líder supremo, “o caminho, a
verdade e a vida”.
Outro traço que
Jesus tem em comum com os heróis clássicos é o fato de ter sido
concebido pelo próprio Deus; portanto, Jesus continua a tradição
clássica dos semideuses – embora o dogma da Santíssima Trindade o
tenha feito confundir-se com o próprio Deus, o que não acontece com
os heróis e outros seres da mitologia pagã. É o próprio Deus, no
romance de Saramago, quem confirma essa tradição: “Como não tinha
nenhum [filho] no céu, tive de arranjá-lo na terra, não é original,
até em religiões com deuses e deusas que podiam fazer filhos uns com
os outros, tem-se visto vir um deles à terra, para variar, suponho,
de caminho melhorando um pouco uma parte do género humano pela
criação de heróis e outros fenómenos (...)”.[23] Na epopéia
clássica, o caráter semidivino dos heróis lhes confere qualidades
extraordinárias, como força, coragem e inteligência excepcionais
–havendo até mesmo uma espécie de superioridade do erro ou do
defeito, a hybris, que, pelas conseqüências não apenas
individuais como coletivas estaria na origem da noção de trágico.
Nos evangelhos, Jesus, por ser filho de Deus, também tem qualidades
excepcionais de inteligência e liderança, mas não empunha armas;
comanda multidões, mas não exércitos[24] . Na epopéia clássica a
epopéia clássica, os vencedores são premiados com as suas conquistas
– embora o sentido do trágico dos gregos não permita que essas
conquistas sejam fácil e longamente fruídas, sempre se enfatiza a
fragilidade do ser humano, mesmo dos semideuses. Jesus, apesar de
condenado e executado, apesar de não ser imperador na terra, também
é recompensado, mas seu reino “não é deste mundo”. Seu maior
heroísmo consiste em ser sacrificado na terra, para reinar ao lado
de Deus.
“Nem sequer devia
ser concebível uma santidade que não conhecesse a força dos homens e
a fraqueza que às vezes nessa força há”, diz o narrador do
Memorial do convento. A tensão dominante em O evangelho
segundo Jesus Cristo, em relação à Bíblia, reside justamente na
atenuação da superioridade de Jesus Cristo. Esta atenuação não chega
a atingir rebaixamento grotesco – como o caracteriza Bakhtin –, que
encontramos somente na descrição de Herodes, quando o narrador se
refere aos “vermes que infestam os órgãos genitais da real pessoa e
que, esses sim, a estão devorando em vida”.[25] E também ao mostrar
Herodes “arrastando um corpo que fede de putrefacção, apesar dos
perfumes de que leva embebidas as roupas e ungidos os cabelos
pintados, a Herodes só o mantém vivo a fúria”.[26] Este tipo de
rebaixamento jamais acontece na descrição de Jesus, nem da sagrada
família, que não são, de maneira alguma, satirizados. Contudo,
tampouco apresenta aquela aura veneranda própria de tudo que é
sagrado: o Jesus de Saramago é dessacralizado, tornando-se, pela
exposição de suas dúvidas e fraquezas, um homem mais próximo de nós.
Podemos afirmar, parafraseando o título de um romance de Sérgio
Sant’Anna [27], que Saramago realiza uma profanação delicada
– embora muitos fiéis não concordem o adjetivo –, que atinge não
somente a figura de Jesus, como também toda a sagrada família –(como
já vimos a respeito de Maria). Isto torna o Jesus de Saramago mais
humano que o Jesus da Bíblia, que é plenamente seguro de si e de sua
missão. Como o costuma acontecer com os heróis clássicos, quase nada
sabemos sobre a infância e adolescência do Jesus da Bíblia – exceto
aquele episódio em que Jesus discute com os doutores. Mas, ao
contrário do que acontece na epopéia, a Bíblia não faz a mínima
referência à vida amorosa de Jesus, pois entre as virtudes do
messias está a castidade – virtude que será preservada nos heróis
das canções de gesta, guerreiros, porém castos.
A primeira
diferença, em nível diegético, entre o Jesus da Bíblia e o de
Saramago está no fato de que grande parte do romance abrange a
adolescência de Jesus: o seu período de formação. O Jesus bebê é uma
criança como as outras, sem nada que revele a sua origem divina:
“Jesus, mas ele ainda não pode saber que é este o seu nome, por
enquanto não passa de um pequeno ser natural, como o pinto duma
galinha, o cachorro duma cadela, o cordeiro duma ovelha (...)”.[28]
Inicialmente, Jesus, que ignora sua condição de filho de Deus,
também é um adolescente como os outros, embora bem mais esperto,
como comenta o narrador: “(...) a juventude é assim, egoísta,
presunçosa, e Jesus, que ele saiba, não tem motivos para ser
diferente dos da sua idade”.[29] Contudo, para a ortodoxia católica,
com sua valorização da ascese, a profanação mais grave é a descrição
da vida amorosa de Jesus, que, como faz questão de mostrar o
narrador do romance, sente desejo sexual, como qualquer homem: “O
corpo de Jesus deu um sinal, inchou no que tinha entre as pernas,
como acontece a todos os homens e a todos os animais, o sangue
correu veloz a um mesmo sítio, a ponto de se lhe secarem subitamente
as feridas (...)”.[30] Mais adiante, Jesus é iniciado sexualmente
pela prostituta Maria de Magdala, que se torna sua companheira. Não
deixa de ser irônico que o erotismo, tão reprimido pela Igreja, seja
descrito aqui, em belos termos do Velho Testamento, pela estilização
das palavras do rei Salomão: “As curvas dos teus quadris são como
jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho
perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os
teus seios são como dois filhinhos gêmeos de uma gazela (...)”.[31]
Daí por diante, encontramos Jesus vivendo “em concubinato” assumido
com Maria de Magdala. E é esse encontro com Maria de Magdala, assim
como o primeiro encontro com Deus, que marca a passagem para a
maioridade de Jesus. E nessa relação de Jesus com Maria de Magdala
prossegue a celebração, já ocorrida nos romances anteriores, dos
relacionamentos amorosos ilegítimos, porém autênticos e fortes. É a
partir do encontro com Deus e com Maria Magdala que Jesus conhece
não somente sua condição divina, como também as terríveis
conseqüências desse privilégio. E é a partir daí que Jesus torna-se
mais seguro de si. Mas essa segurança é resultado de um
amadurecimento gradual, em que acompanhamos todas as dúvidas e
hesitações, assim como o remorso, herdado do pai, José, que não
avisara aos pais das outras crianças de Belém que seus filhos iriam
ser assassinados.
Vemos, então, em
O evangelho segundo Jesus Cristo, um José e um Jesus que não
estão acima das fraquezas dos homens, mas dois homens, que, sendo
santos, nem por isto são imaculados. Vemos também, no Jesus de
Saramago, a sua inexperiência, que o narrador relata com leve
ironia, primeiro no episódio da mulher adúltera, em que Jesus
recomenda que só atire a primeira pedra aquele que não tiver pecado:
“Arriscou-se muito o nosso Jesus porque podia ter acontecido que um
ou mais dos apedrejadores, por serem de coração endurecido e estarem
empedernidos nas práticas do pecado em geral, dessem ouvidos de
mercador à admoestação e prosseguissem no apedrejamento, sem medo,
eles próprios, à lei que estavam aplicando, por ser destinada às
mulheres”.[32]
A ironia torna-se um humor mais explícito no episódio do exorcismo,
em que os espíritos malignos são autorizados a ocuparem os porcos,
cujo resultado foi inesperado: “Os porqueiros, furiosos, atiravam de
longe pedras a Jesus e a quem estava com ele, e já vinham a correr
aí com o propósito, justíssimo, de exigir responsabilidades ao
causador do prejuízo, um x por cabeça, a multiplicar por dois mil,
as contas são fáceis de se fazer. Mas não de pagar”.[33]
As inquietações de
Jesus revelam, desde o início, pelo menos um traço de superioridade:
sua inteligência e seu espírito indagador. Ironicamente é uma
qualidade perturbadora, que torna o Jesus de Saramago também um
herege, não só em relação à tradição bíblica mais antiga, como
também em relação aos próprios evangelhos. E, para exercitar esse
espírito questionador seja plenamente realizado por Jesus, o
narrador lhe empresta estilemas do um gênero apropriado para
destronar as verdades absolutas: o diálogo socrático[34] , pois
Jesus discute com seus oponentes “como se na cartilha socrática
tivesse aprendido as artes da maiêutica analítica”.[35] Contudo, ao
contrário dos sofistas, Jesus não tem como objetivo somente
convencer os adversários, mas conhecer melhor a si mesmo, a Deus e
aos homens: “(...) O que quero saber é sobre a culpa, Falas de uma
culpa tua, falo de culpa em geral, mas também da culpa que eu tenha
mesmo não tendo pecado directamente (...)”.[36] Com ironia, Saramago
apresenta o próprio Jesus como primeiro questionador da verdade
absoluta dos evangelhos. Por este e outros procedimento O evangelho
segundo Jesus Cristo confronta a verdade oficial da bíblia com as
versões marginais: as heresias.
Notas:
[1] ARISTÓTELES.
Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s.d. p.
115.
[2] Segundo Huizinga, storia, no dialeto jônico de Heródoto,
significa “aquilo que se consegue saber através de inquérito”.
Opõe-se, portanto, à noção de revelação divina. Cf. HUIZINGA, J.
Über eine Definition des Begriffs Geschichte. In: ______ .
Geschichte und Kultur: gesammelte Aufsätze. Tradução de Werner Kaegi.
Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 1954. p. 6.
[3] Salma Ferraz observa que “[alguns dos evangelhos apócrifos
(Proto-evangelho de Tiago, Evangelho pseudo-Tomé, Evangelho árabe da
infância, Evangelho apócrifo segundo Felipe, Evangelho apócrifo de
Nicodemus) são citados em diversas vezes para preencherem os
chamados ‘vazios’ da narrativa bíblica, ou seja, aqueles momentos em
que o texto bíblico se cala sobre determinado período de tempo,
como, por exemplo, o que teria acontecido com Cristo dos doze aos
trinta anos.” FERRAZ, S. O quinto evangelista: o (des)evangelho
segundo José Saramago. Brasília: Editora da UnB, 1998. p. 35.
[4] SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p.18.
[5] Ibid. p. 346.
[6] Ibid. p. 108.
[7] Ibid. p. 101.
[8] Ibid. p. 311-312.
[9] LINK, L. O Diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura
Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 25.
[10] Id.
[11] Id.
[12] Mas, no mosaico de Torcello, esse trabalho é realizado pelos
próprios anjos (cf. LINK, Op. cit. p. 123). Luther Link observa
também que os instrumentos utilizados pelos diabos, na iconografia
medieval, são os mesmos utilizados pela Inquisição.
[13] LINK, L. Op. cit. p. 24.
[14] SARAMAGO, J. Op. cit. p. 392-393.
[15] Exceto naquele momento em que nada em direção a Jesus e Deus,
quando por um breve vislumbre de Jesus, lembra um porco
resfolegando. Mas aqui parece que a intenção é mostrar que o Diabo
não tem a mesma onipotência do Senhor: “(...) à distância era outra
vez como um porco com as orelhas espetadas, ouviam-se resfolgos
bestiais, mas um ouvido fino não teria dificuldade de perceber que
havia também ali um som de medo, não de afogar-se, que ideia, o
Diabo, acabámos de sabê-lo mesmo agora, não acaba, mas de ter de
existir para sempre. (O Evangelho segundo Jesus Cristo. p. 393.)
[16] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 364.
[17] Ibid. p. 309.
[18] Id.
[19] Ibid. p. 381-385.
[20] Ibid. p. 436.
[21] Ibid. p. 437.
[22] BLOOM, H. Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a
Bíblia até nossos dias. Tradução: Alípio Correa de Franca Neto,
Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.
41.
[23] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 366.
[24] Posteriormente, já na Europa cristã da Idade Média, os heróis
reúnem as qualidades do guerreiro e do santo (ex: Rolando, Joana
D’Arc).
[25] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 86.
[26] Id.
[27] Um crime delicado.
[28] Ibid. p. 89.
[29] Ibid. p. 222.
[30] Ibid. p. 270.
[31] Ibid. p. 282.
[32] Ibid. p. 352
[33] Ibid. p. 356.
[34] Lembremos que o diálogo socrático, segundo Bakhtin, é um dos
gêneros que originaram o romance. (Cf. Bakhtin, M. Questões de
literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo:
Editora UNESP/HUCITEC, 1990. passim).
[35] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 231.
[36] Ibid. p. 211.
Bibliografia:
BLOOM, H. Abaixo as verdades sagradas: poesia e
crença desde a Bíblia até nossos dias. Tradução: Alípio Correa de
Franca Neto, Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
FERRAZ, S. O quinto evangelista: o (des)evangelho segundo José
Saramago. Brasília: Editora da UnB, 1998.
LINK, L. O Diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira
Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
BRIDI, M. V. O evangelho de Saramago: a Paixão de Cristo em
perspectiva. In: LOPONDO, L. (org.). Saramago segundo terceiros. São
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PESQUISA. José Saramago: um nobel para as literaturas de língua
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para as literaturas de língua portuguesa. Belo Horizonte: CESPUC,
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