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João Vianney Cavalcanti Nuto


 

O sagrado e o romance
em O evangelho segundo Jesus Cristo


 

O evangelho segundo Jesus Cristo, ao contrário dos romances “históricos” de Saramago, não se baseia propriamente na historiografia, mas no texto bíblico. Contudo não se pode negar que a relação entre o texto bíblico e a obra de José Saramago aborda problemas semelhantes àqueles apresentados pelo texto historiográfico em Memorial do Convento e História do Cerco de Lisboa. Que semelhanças pode haver entre um texto historiográfico e um texto religioso, como é o caso da Bíblia? Outra questão diz respeito aos traços estilísticos-ideológicos próprios de um discurso épico, no sentido de heróico, que é parodiado tanto no Memorial do convento como em História do cerco de Lisboa. Também encontramos esse tipo de paródia de certa concepção de herói em O evangelho segundo Jesus Cristo. Pretendemos, neste ensaio, analisar as semelhanças entre a abordagem do texto bíblico e do texto historiográfico por Saramago – e também a paródia do discurso heróico. Para isto, verificaremos as possíveis relações entre a Bíblia, a História e a epopéia, para, então, analisarmos os processos de estilização e paródia contidos no romance.

A primeira questão diz respeito à noção de verdade e de como alcançá-la, sendo a obra de Saramago bastante crítica quanto à noção de verdade absoluta. Antes de tudo, é preciso distinguir a concepção a relação da História e da memória com a verdade. A Bíblia não é um texto historiográfico; mas, assim como a epopéia, é um texto que tem função de memória. Assim como a História, na concepção de Aristóteles, a Bíblia conta “o que aconteceu”[1] , a verdade, ou mais precisamente, aquilo que é aceito como verdade pelos fiéis. Aqui encontramos tanto a semelhança como a diferença em relação à História. Se a História pretende contar “o que aconteceu” – ou pelo menos a reconstituição, ou interpretação, possível –, essa verdade, no ofício do historiador, precisa ser investigada[2]. Já no mito, no texto sacro e na epopéia (pelo menos em seus primórdios) a verdade é revelada. No caso do texto religioso a verdade é tanto mais verdadeira porque sagrada.

Lembremos, a propósito, que a narrativa bíblica, por ser um texto religioso, incorpora diversos mitos, dentre eles, a criação do mundo e do homem, a origem do mal, da dor e da morte; e o mito, como diz Eliade, é uma historia verdadeira. Somente quando temos consciência da formação do cânone bíblico, com exclusão dos chamados evangelhos apócrifos[3] , somente quando conhecemos os trabalhos de tradução e exegese por parte dos teólogos da Igreja, é que a Bíblia adquire um sentido histórico: o sentido de uma pesquisa sobre o passado; ou seja: somente quando pesquisamos é que a Bíblia se torna histórica. Não é esta, porém, a leitura que se faz da Bíblia pelos crentes, que é uma leitura de fé. Vista desta maneira, a narrativa bíblica não é história no sentido estrito do termo, mas, assim como o relato do cerco de Lisboa, não deixa de ser fonte de uma verdade com a qual Saramago polemiza.

Em O evangelho segundo Jesus Cristo, a noção de verdade absoluta é constantemente questionada e criticada, desde a interpretação da gravura de Albrecht Dürer, descrita na abertura do romance: “Lá atrás no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. (...). Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava.”[4] O narrador faz questão de frisar que a Bíblia também não oferece os fatos “como eles foram”, mas versões, como naquela resposta ríspida de Jesus a Maria: “Um filho não trata desta maneira a mãe que lhe deu o ser, farão que o tempo, as distâncias e as vontades busquem para elas traduções, interpretações, versões, matizes que mitiguem a brutalidade e, se tal é possível, dêem o dito por não dito ou ponham a dizer o seu contrário, assim se escreverá no futuro que Jesus disse, (...) Deixa-me proceder, não é preciso que mo peças. (...).”[5] Mas, ao criticar as versões, tampouco se oferece o romance como um portador da verdade absoluta, pois, como acontece nos outros romances de Saramago, o próprio narrador questiona a fala que atribui ao personagem: “(...) razão por que, faltando o seu testemunho, seja lícito duvidar da autenticidade da filosófica reflexão, que quanto ao fundo quer quanto à forma, tendo em conta a mais do que óbvia contradição entre a notável propriedade dos conceitos e a ínfima condição social de quem os teria produzido”. [6]

Ora, questionar uma verdade sacra, mesmo sem querer substitui-la por outra verdade inquestionável, por si só já é uma heresia. E a heresia perpassa todo romance, ao oferecer versões que questionam, ou mesmo contrariam, certos dogmas da Igreja Católica como a virgindade de Maria, o papel do Diabo, a natureza de Deus e sua relação com Cristo. Neste processo tudo o que é sagrado é submetido à crítica, sendo, portanto, dessacralizado. Contudo essa dessacralização não resulta em uma sátira, pois não é intenção do romance zombar do sagrado, mas torná-lo mais humano. Exemplo disto é o questionamento da idealização de Maria. Em O evangelho segundo Jesus Cristo, Maria é uma mulher comum, oprimida como as demais da Judéia. Um pouco tola, não tem a aquela doce majestade de suas imagens nas igrejas. No entanto, sentimos por certa ternura por aquela mãe adolescente, perplexa com os acontecimentos estranhos relacionados com nascimento do primogênito; e pela mulher madura que custa a compreender e aceitar o destino do filho. Os sucessivos estados de gravidez de Maria subvertem aquela imagem de virgem imaculada, conforme negação explícita dessa pureza idealizada, no trecho que se segue: “Maria está outra vez limpa, de verdadeira pureza não se fala, evidentemente, que a tanto não poderão aspirar os seres humanos e as mulheres em particular (...)”.[7] Nem mesmo é dado a Maria o privilégio de ter sido a escolhida do Senhor: “Então, o Senhor não me escolheu, Qual quê, o Senhor só ia a passar, quem estivesse a olhar tê-lo-ia percebido pela cor do céu, mas reparou que tu e José eram gente robusta e saudável, e então, se ainda lembras de como estas necessidades manifestavam apeteceu-lhe, o resultado foi, nove meses depois, Jesus.”[8] Encontramos aqui um efeito de ironia que advém não somente da informação, como também pelo estilo, completamente prosaico, com que o anjo informa a Maria o desígnio divino, em total desacordo com o tom solene do texto bíblico.

Outras heresias, em O evangelho segundo Jesus Cristo, são a natureza e função do Diabo e de Deus, bem como o conflito entre Deus e Jesus. No início, percebemos vagos indícios, que depois se confirmam, de que o anjo que veio anunciar a concepção de Maria é o próprio Diabo. Esta identificação não surpreende se atentarmos para a origem de uma das palavras usadas para identificar o Diabo: demônio. O termo vem do grego daimon, que, na mitologia pagã, era “um espírito mediador entre deuses e homens, muitas vezes o espírito de um herói morto”.[9] Informa Luther Link que “dáimon e daimônion também significavam um espírito perverso, dominador, tendo sido esta a única acepção desenvolvida no Novo Testamento e por muitos dos primeiros padres. Os apologistas alexandrinos helenizados dos séculos II e III, por exemplo, interpretaram os demônios platônicos – que não eram particularmente bons nem maus – como anjos caídos perversos”.[10] Como observa Luther Link, a caracterização maligna dos demônios era uma forma de combater o paganismo: “Assim fizeram com vistas a formar uma nova equação: deuses pagãos = demônios maus = diabos. Tal equação justificava condenar a adoração de deuses pagãos. ‘A coisas que os gentios sacrificam, é aos diabos que sacrificam’, escreveu Paulo”. [11]

Contudo, a maior heresia, em O evangelho segundo Jesus Cristo, consiste no papel ambíguo do Diabo, um dilema que muito preocupou a teologia cristã. Se o Diabo tem como papel supliciar os pecadores e os hereges, então o Diabo colabora com a ordem imposta por Deus: incube-se, no além, do mesmo serviço sujo dos torturadores da Inquisição aqui na terra.[12] Mas o Diabo é também o adversário de Deus. É exatamente este o significado da palavra satan, em hebraico.[13] A interpretação que prevaleceu é a de que o Diabo era inicialmente um anjo, Lúcifer, que, por seu orgulho, rebelou-se contra Deus e tenta arrastar a humanidade para o Inferno. Em O evangelho segundo Jesus Cristo, o Diabo é um colaborador, mas também é um adversário, pois colabora contrariado, já que é o próprio que Deus rejeita a proposta do Diabo de acabar com o Mal: “quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal (...) Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus.”[14] Assim, o narrador de O evangelho segundo Jesus Cristo, concordando com Orígenes e Santo Agostinho, entre outros teólogos, mostra que o Mal não existiu sempre: passou a existir com a revolta de Satã. Entretanto, o narrador discorda de toda da ortodoxia católica, ao mostrar que o Mal permanece não apenas porque Deus permite sua existência provisória, mas porque ele assim o exige. É ambíguo também o papel do Diabo, como tentador de Cristo, já que os anos que passa com Jesus no deserto são também anos de aprendizado, em que Jesus, tendo o Diabo como mestre, é confrontado com questões perturbadoras que contribuem para o seu amadurecimento. Este caráter ambíguo do Diabo torna-o menos terrível que a aquela figura criada pelo imaginário medieval. O Diabo de Saramago é uma entidade até mesmo simpática, que orienta Jesus nos seus anos de formação; e uma figura prometeica diante de um Deus despótico. Por isto é que o Diabo, que, segundo Dante, “já foi belo e hoje é feio”, não tem aparência grotesca consagrada pela iconografia medieval[15] : suas aparições, apesar de impressionantes, nada têm de pavorosas.

A imagem de Deus, por outro lado, assusta não pela sua aparência, que, aliás, é bastante convencional: “É um homem grande e velho, de barbas fluviais espalhadas sobre o peito, a cabeça descoberta, cabelo solto, a cara larga e forte, a boca espessa, que falará sem que os lábios pareçam mover-se”.[16] Mas Deus assusta por sua onipotência e despotismo. Como afirma Maria de Magdala, “Deus é medonho”[17] ; e Jesus recorda-se dos seus contatos com Deus: “Jesus viu o deserto, a ovelha morta, o sangue na areia, ouviu a coluna de fumo suspirando de satisfação, e disse, Talvez, talvez, porém uma coisa é ouvi-lo em sonho, outra será vivê-lo em vida.”[18] Diante desse Deus, ambicioso e autoritário, que não hesita em sacrificar seu próprio filho para poder expandir o culto a sua pessoa, é que se revela o verdadeiro cálice amargo de Jesus: a lista de mártires do catolicismo, com seus respectivos suplícios, pois, assim como em Memorial do convento, encontramos, em O evangelho segundo Jesus Cristo, o traço épico do catálogo dos heróis, transformado em um catálogo de mártires[19] . Tão herético quanto surpreendente é o desfecho do romance, quando Jesus se rebela, decidindo enganar o pai, substituindo sua condição de filho de Deus, pela de um simples rebelde contra Roma: “(...) mas, se no lugar dele puséssemos um simples homem, já não poderia Deus sacrificar o Filho (...) Um simples homem, sim, mas um homem que se tivesse proclamado o mesmo rei dos Judeus, que andasse a levantar o povo para derrubar Herodes do trono e expulsar os romanos, isto é que vos peço, que corra um de vós ao Templo a dizer que eu sou esse homem”.[20] Nesse contexto, muda também o papel de Judas de Iscariote, que, de traidor, passa a ser colaborador de Jesus: “Foi então que se ouviu, clara, distinta, por cima do alvoroço, a voz de Judas de Iscariote, Eu vou, se assim o queres”.[21] Naturalmente toda esta versão implica questionamentos perturbadores para os crentes, que estão acostumados a somente repetir verdades tidas como absolutas, e, em sua maioria, ignoram os expurgos realizados na formação do cânone bíblico: o textos apócrifos, com suas versões alternativas. Há, portanto, certa afinidade entre os evangelhos apócrifos –banidos do cânone bíblico por serem considerados heréticos – e O evangelho segundo Jesus Cristo. Mas este, até mesmo por assumir sua condição de ficção, não pretende, de maneira alguma, substituir uma verdade inquestionável por outra.

 

A atenuação da superioridade de Jesus:
uma profanação delicada
 

Em Memorial do convento e O evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago incorpora elementos estilísticos-ideológicos próprios da epopéia, os quais critica através da polêmica e da paródia. Haveria também esses elementos na Bíblia? Assim como a epopéia, o texto religioso é narrado em tom solene – com pouco clima para a introdução do cômico – e tem função de memória, transmitindo uma verdade sagrada. Incorporando mitos, apresenta o maravilhoso (os milagres), tem como protagonistas pessoas superiores a nós (Deus, os anjos, os profetas, o messias), e também apresenta cenas bélicas, como a batalha de Jericó, ou de grande mobilização nacional, como a travessia do Mar Vermelho. Lembremos, contudo, que O evangelho segundo Jesus Cristo tem como principal fonte os evangelhos – o que não descarta a possibilidade de Saramago ter consultado outras fontes, como os evangelhos apócrifos, o Velho Testamento e livros sobre a história da Igreja Católica. E os evangelhos parecem bem mais afastados da epopéia que as narrativas do Velho Testamento.

A primeira é diferença é estilística: os versos heróicos na epopéia; os versículos nos evangelhos. Contudo, também os evangelhos apresentam o tom solene, próprio para falar de coisas grandiosas e divinas acontecidas “naquele tempo” (“in illo tempore”). Mas mesmo esse tempo não é tão recuado quanto o da epopéia, pois os apóstolos – a quem é atribuída a autoria dos evangelhos – teriam conhecido Jesus pessoalmente. Nem são bélicas as ações do messias. Vejamos, então, em o que os evangelhos teriam em comum com a epopéia, no que diz respeito ao critério aristotélico dos objetos de imitação. Diz Aristóteles que a epopéia tem como protagonistas pessoas superiores a nós. Ocorreria o mesmo nos evangelhos? A resposta só pode ser afirmativa se tivermos em mente uma outra concepção de superioridade, radicalmente diferente do heroísmo clássico, pois como afirma Harold Bloom “nenhum estudioso foi capaz de realizar uma comparação convincente do pensamento grego e da psicologia hebraica, no mínimo porque os dois modos parecem irreconciliáveis”.[22] Se Aquiles e Ulisses são guerreiros e de classe superior; Jesus é um messias, filho de um humilde carpinteiro. Mas tem Jesus muito em comum com os protagonistas da epopéia e da tragédia, por ser, assim como Aquiles e Édipo, aquele cujas decisões determinam o destino do seu povo; como Moisés, Jesus é um líder supremo, “o caminho, a verdade e a vida”.

Outro traço que Jesus tem em comum com os heróis clássicos é o fato de ter sido concebido pelo próprio Deus; portanto, Jesus continua a tradição clássica dos semideuses – embora o dogma da Santíssima Trindade o tenha feito confundir-se com o próprio Deus, o que não acontece com os heróis e outros seres da mitologia pagã. É o próprio Deus, no romance de Saramago, quem confirma essa tradição: “Como não tinha nenhum [filho] no céu, tive de arranjá-lo na terra, não é original, até em religiões com deuses e deusas que podiam fazer filhos uns com os outros, tem-se visto vir um deles à terra, para variar, suponho, de caminho melhorando um pouco uma parte do género humano pela criação de heróis e outros fenómenos (...)”.[23] Na epopéia clássica, o caráter semidivino dos heróis lhes confere qualidades extraordinárias, como força, coragem e inteligência excepcionais –havendo até mesmo uma espécie de superioridade do erro ou do defeito, a hybris, que, pelas conseqüências não apenas individuais como coletivas estaria na origem da noção de trágico. Nos evangelhos, Jesus, por ser filho de Deus, também tem qualidades excepcionais de inteligência e liderança, mas não empunha armas; comanda multidões, mas não exércitos[24] . Na epopéia clássica a epopéia clássica, os vencedores são premiados com as suas conquistas – embora o sentido do trágico dos gregos não permita que essas conquistas sejam fácil e longamente fruídas, sempre se enfatiza a fragilidade do ser humano, mesmo dos semideuses. Jesus, apesar de condenado e executado, apesar de não ser imperador na terra, também é recompensado, mas seu reino “não é deste mundo”. Seu maior heroísmo consiste em ser sacrificado na terra, para reinar ao lado de Deus.

“Nem sequer devia ser concebível uma santidade que não conhecesse a força dos homens e a fraqueza que às vezes nessa força há”, diz o narrador do Memorial do convento. A tensão dominante em O evangelho segundo Jesus Cristo, em relação à Bíblia, reside justamente na atenuação da superioridade de Jesus Cristo. Esta atenuação não chega a atingir rebaixamento grotesco – como o caracteriza Bakhtin –, que encontramos somente na descrição de Herodes, quando o narrador se refere aos “vermes que infestam os órgãos genitais da real pessoa e que, esses sim, a estão devorando em vida”.[25] E também ao mostrar Herodes “arrastando um corpo que fede de putrefacção, apesar dos perfumes de que leva embebidas as roupas e ungidos os cabelos pintados, a Herodes só o mantém vivo a fúria”.[26] Este tipo de rebaixamento jamais acontece na descrição de Jesus, nem da sagrada família, que não são, de maneira alguma, satirizados. Contudo, tampouco apresenta aquela aura veneranda própria de tudo que é sagrado: o Jesus de Saramago é dessacralizado, tornando-se, pela exposição de suas dúvidas e fraquezas, um homem mais próximo de nós. Podemos afirmar, parafraseando o título de um romance de Sérgio Sant’Anna [27], que Saramago realiza uma profanação delicada – embora muitos fiéis não concordem o adjetivo –, que atinge não somente a figura de Jesus, como também toda a sagrada família –(como já vimos a respeito de Maria). Isto torna o Jesus de Saramago mais humano que o Jesus da Bíblia, que é plenamente seguro de si e de sua missão. Como o costuma acontecer com os heróis clássicos, quase nada sabemos sobre a infância e adolescência do Jesus da Bíblia – exceto aquele episódio em que Jesus discute com os doutores. Mas, ao contrário do que acontece na epopéia, a Bíblia não faz a mínima referência à vida amorosa de Jesus, pois entre as virtudes do messias está a castidade – virtude que será preservada nos heróis das canções de gesta, guerreiros, porém castos.

A primeira diferença, em nível diegético, entre o Jesus da Bíblia e o de Saramago está no fato de que grande parte do romance abrange a adolescência de Jesus: o seu período de formação. O Jesus bebê é uma criança como as outras, sem nada que revele a sua origem divina: “Jesus, mas ele ainda não pode saber que é este o seu nome, por enquanto não passa de um pequeno ser natural, como o pinto duma galinha, o cachorro duma cadela, o cordeiro duma ovelha (...)”.[28] Inicialmente, Jesus, que ignora sua condição de filho de Deus, também é um adolescente como os outros, embora bem mais esperto, como comenta o narrador: “(...) a juventude é assim, egoísta, presunçosa, e Jesus, que ele saiba, não tem motivos para ser diferente dos da sua idade”.[29] Contudo, para a ortodoxia católica, com sua valorização da ascese, a profanação mais grave é a descrição da vida amorosa de Jesus, que, como faz questão de mostrar o narrador do romance, sente desejo sexual, como qualquer homem: “O corpo de Jesus deu um sinal, inchou no que tinha entre as pernas, como acontece a todos os homens e a todos os animais, o sangue correu veloz a um mesmo sítio, a ponto de se lhe secarem subitamente as feridas (...)”.[30] Mais adiante, Jesus é iniciado sexualmente pela prostituta Maria de Magdala, que se torna sua companheira. Não deixa de ser irônico que o erotismo, tão reprimido pela Igreja, seja descrito aqui, em belos termos do Velho Testamento, pela estilização das palavras do rei Salomão: “As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus seios são como dois filhinhos gêmeos de uma gazela (...)”.[31] Daí por diante, encontramos Jesus vivendo “em concubinato” assumido com Maria de Magdala. E é esse encontro com Maria de Magdala, assim como o primeiro encontro com Deus, que marca a passagem para a maioridade de Jesus. E nessa relação de Jesus com Maria de Magdala prossegue a celebração, já ocorrida nos romances anteriores, dos relacionamentos amorosos ilegítimos, porém autênticos e fortes. É a partir do encontro com Deus e com Maria Magdala que Jesus conhece não somente sua condição divina, como também as terríveis conseqüências desse privilégio. E é a partir daí que Jesus torna-se mais seguro de si. Mas essa segurança é resultado de um amadurecimento gradual, em que acompanhamos todas as dúvidas e hesitações, assim como o remorso, herdado do pai, José, que não avisara aos pais das outras crianças de Belém que seus filhos iriam ser assassinados.

Vemos, então, em O evangelho segundo Jesus Cristo, um José e um Jesus que não estão acima das fraquezas dos homens, mas dois homens, que, sendo santos, nem por isto são imaculados. Vemos também, no Jesus de Saramago, a sua inexperiência, que o narrador relata com leve ironia, primeiro no episódio da mulher adúltera, em que Jesus recomenda que só atire a primeira pedra aquele que não tiver pecado: “Arriscou-se muito o nosso Jesus porque podia ter acontecido que um ou mais dos apedrejadores, por serem de coração endurecido e estarem empedernidos nas práticas do pecado em geral, dessem ouvidos de mercador à admoestação e prosseguissem no apedrejamento, sem medo, eles próprios, à lei que estavam aplicando, por ser destinada às mulheres”.[32] A ironia torna-se um humor mais explícito no episódio do exorcismo, em que os espíritos malignos são autorizados a ocuparem os porcos, cujo resultado foi inesperado: “Os porqueiros, furiosos, atiravam de longe pedras a Jesus e a quem estava com ele, e já vinham a correr aí com o propósito, justíssimo, de exigir responsabilidades ao causador do prejuízo, um x por cabeça, a multiplicar por dois mil, as contas são fáceis de se fazer. Mas não de pagar”.[33]

As inquietações de Jesus revelam, desde o início, pelo menos um traço de superioridade: sua inteligência e seu espírito indagador. Ironicamente é uma qualidade perturbadora, que torna o Jesus de Saramago também um herege, não só em relação à tradição bíblica mais antiga, como também em relação aos próprios evangelhos. E, para exercitar esse espírito questionador seja plenamente realizado por Jesus, o narrador lhe empresta estilemas do um gênero apropriado para destronar as verdades absolutas: o diálogo socrático[34] , pois Jesus discute com seus oponentes “como se na cartilha socrática tivesse aprendido as artes da maiêutica analítica”.[35] Contudo, ao contrário dos sofistas, Jesus não tem como objetivo somente convencer os adversários, mas conhecer melhor a si mesmo, a Deus e aos homens: “(...) O que quero saber é sobre a culpa, Falas de uma culpa tua, falo de culpa em geral, mas também da culpa que eu tenha mesmo não tendo pecado directamente (...)”.[36] Com ironia, Saramago apresenta o próprio Jesus como primeiro questionador da verdade absoluta dos evangelhos. Por este e outros procedimento O evangelho segundo Jesus Cristo confronta a verdade oficial da bíblia com as versões marginais: as heresias.
 


 

Notas:

 

[1] ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s.d. p. 115.

[2] Segundo Huizinga, storia, no dialeto jônico de Heródoto, significa “aquilo que se consegue saber através de inquérito”. Opõe-se, portanto, à noção de revelação divina. Cf. HUIZINGA, J. Über eine Definition des Begriffs Geschichte. In: ______ . Geschichte und Kultur: gesammelte Aufsätze. Tradução de Werner Kaegi. Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 1954. p. 6.

[3] Salma Ferraz observa que “[alguns dos evangelhos apócrifos (Proto-evangelho de Tiago, Evangelho pseudo-Tomé, Evangelho árabe da infância, Evangelho apócrifo segundo Felipe, Evangelho apócrifo de Nicodemus) são citados em diversas vezes para preencherem os chamados ‘vazios’ da narrativa bíblica, ou seja, aqueles momentos em que o texto bíblico se cala sobre determinado período de tempo, como, por exemplo, o que teria acontecido com Cristo dos doze aos trinta anos.” FERRAZ, S. O quinto evangelista: o (des)evangelho segundo José Saramago. Brasília: Editora da UnB, 1998. p. 35.

[4] SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.18.

[5] Ibid. p. 346.

[6] Ibid. p. 108.

[7] Ibid. p. 101.

[8] Ibid. p. 311-312.

[9] LINK, L. O Diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 25.

[10] Id.

[11] Id.

[12] Mas, no mosaico de Torcello, esse trabalho é realizado pelos próprios anjos (cf. LINK, Op. cit. p. 123). Luther Link observa também que os instrumentos utilizados pelos diabos, na iconografia medieval, são os mesmos utilizados pela Inquisição.

[13] LINK, L. Op. cit. p. 24.

[14] SARAMAGO, J. Op. cit. p. 392-393.

[15] Exceto naquele momento em que nada em direção a Jesus e Deus, quando por um breve vislumbre de Jesus, lembra um porco resfolegando. Mas aqui parece que a intenção é mostrar que o Diabo não tem a mesma onipotência do Senhor: “(...) à distância era outra vez como um porco com as orelhas espetadas, ouviam-se resfolgos bestiais, mas um ouvido fino não teria dificuldade de perceber que havia também ali um som de medo, não de afogar-se, que ideia, o Diabo, acabámos de sabê-lo mesmo agora, não acaba, mas de ter de existir para sempre. (O Evangelho segundo Jesus Cristo. p. 393.)

[16] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 364.

[17] Ibid. p. 309.

[18] Id.

[19] Ibid. p. 381-385.

[20] Ibid. p. 436.

[21] Ibid. p. 437.

[22] BLOOM, H. Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a Bíblia até nossos dias. Tradução: Alípio Correa de Franca Neto, Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 41.

[23] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 366.

[24] Posteriormente, já na Europa cristã da Idade Média, os heróis reúnem as qualidades do guerreiro e do santo (ex: Rolando, Joana D’Arc).

[25] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 86.

[26] Id.

[27] Um crime delicado.

[28] Ibid. p. 89.

[29] Ibid. p. 222.

[30] Ibid. p. 270.

[31] Ibid. p. 282.

[32] Ibid. p. 352


[33] Ibid. p. 356.

[34] Lembremos que o diálogo socrático, segundo Bakhtin, é um dos gêneros que originaram o romance. (Cf. Bakhtin, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora UNESP/HUCITEC, 1990. passim).

[35] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 231.

[36] Ibid. p. 211.

 

Bibliografia:

BLOOM, H. Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a Bíblia até nossos dias. Tradução: Alípio Correa de Franca Neto, Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FERRAZ, S. O quinto evangelista: o (des)evangelho segundo José Saramago. Brasília: Editora da UnB, 1998.
LINK, L. O Diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
BRIDI, M. V. O evangelho de Saramago: a Paixão de Cristo em perspectiva. In: LOPONDO, L. (org.). Saramago segundo terceiros. São Paulo: Humanitas/FFLHCH/USP, 1998. p. 111-130.
SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
SEGOLIN, F. O evangelho às avessas de Saramago ou o divino demasiado humano ou o Deus que não sabe o que faz. CADERNOS CESPUC DE PESQUISA. José Saramago: um nobel para as literaturas de língua portuguesa. Belo Horizonte: CESPUC, 1999. p. 13-19.
SILVA, T. C. C. O evangelho segundo Jesus Cristo ou a consagração do sacrilégio. CADERNOS CESPUC DE PESQUISA. José Saramago: um nobel para as literaturas de língua portuguesa. Belo Horizonte: CESPUC, 1999. p. 50-60.

 

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