Jorge Pieiro
Meu tio e eu
o tio era magrinho. contava nos dedos a idade, de brincadeira,
tantos dedos eram poucos para tanta. tinha a pele muito pálida e um
gênio danado. era dele que eu gostava. muito mais que dos outros
treze. eu sabia que ele tinha visões. talvez por isso julgavam que
ele fosse doido. quando chovia, ele corria comigo na rua, na lama.
gritava e ninguém agüentava os gritos. – com essa lama eu viro deus!
e rolava no chão. eu seguia. a gente rolava feito dois porcos e
sentia o chão quentinho. parecia uma fogueira, o chão. era um fogo
sagrado. de vez em quando, o tio gritava. um grito fiiiiino... bem
diferente da voz. pra mim, o grito era um cordão azul que ia saindo
da garganta dele. os treze tios, acho, sentiam era um gosto de arame
farpado na garganta. aí o cordão ia se enovelando e ele engolia o
novelo e sorria pra mim. eu corria pra ele. a gente se abraçava. ele
batia na minha cabeça com a mão. – com essa lama eu fui deus! – ele
dizia. depois que a chuva passava, a gente se escondia, pra deixar a
lama secar. o tio ficava irritado, eu ficava calado. como ali era o
galinheiro, ele saía pegando as galinhas pelos pescoços, e arrancava
os com uma só dentada. eu tinha vontade de experimentar, mas se eu
fizesse o mesmo os tios castigavam. com a lama endurecida no corpo,
a gente parecia uns cavaleiros de armadura. eu acho que era isso que
o tio achava. as galinhas eram os inimigos. bom, mas pra entrar em
casa, a gente tirava a lama, a armadura. eu ligava a manqueira do
jardim e jogava a água no tio. ele chorava. eu ficava com pena. a
lama amolecia. – com essa lama eu sou só um anjo! – soluçava. eu
sentia que era também como um anjo. a gente ria até a barriga doer.
a gente se entendia. por isso eu gostava dele, muito mais que dos
outros treze. mas o tempo foi rápido. o tio foi ficando igual a um
cordão azul, igual àquele que eu imaginara. foi se transformando num
novelo, ovalzinho, recheado. um novelinho, cada vez mais. e eu fui
ficando forte. não era magrinho. cresci e crescia cada vez mais. até
que um dia, o tio me chamou. – agora vou ser deus para sempre! – ele
riu e se engoliu, como um novelo. naquela hora, senti que o novelo
tinha se enganchado na minha garganta. eu achei que fosse ele. a
alma dele. a vida dele. não sei. meus outros treze tios suspiraram
aliviados. e eu passei muito tempo calado. triste. fui ficando
magrinho. os tios se preocupavam comigo. mas eu não dava atenção a
eles. quando chegou a época de chuvas, eu chorei muito. lembrei do
tio. saí escondido de casa. na rua comecei a rolar na lama, um
porco, roncando. e o novelo desapareceu da garganta. foi quando deu
vontade de gritar. e gritei. – com essa lama eu viro deus! meus
outros treze tios quando souberam, rasgaram as peles dos rostos.
eram mesmo umas máscaras! tentaram me castigar, mas não puderam
mais. eu já era grande. aí, dessa vez, foram eles que choraram.
sentiram um gosto novo de arame farpado na garganta...
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