Jorge Pieiro
O guardião
“Atirem-se contra os ventos...!
Atirem-se com a boca de Deus...!
Entre a perna e a vida, o silêncio lamuriento do abismo...
(Georg Schattenmann)
De repente,
voltou-se para a rua e encompridou o olho ao abismo se abrindo
diante da sua incapacidade de voar. Caía uma chuva morna, pássaros
aqueciam as asas nos fios de alta tensão. Tiwã, comprido, espécie de
obelisco dinâmico, de um lado para o outro há 5 dias, percebeu o
volume da sua inanição. Estrelas saltavam dos cordeiros que levava
dentro da cabeça. Faíscas experimentavam distorcer as cores
primitivas e dar ao artista o senso do impossível engrandecimento do
colapso aonde se dirigiria. Desconfiara há muito tempo da Pedra ao
final da rua, invisível aos olhos da castidade. E carregava a
certeza de que a aparição inconsciente da Pedra havia causado os
estranhos sintomas que passaram a tomar de conta das mulheres do
lugar e da sensação de algo se reproduzindo no ventre delas, como se
uma gravidez coletiva houvesse rompido a barreira bilionésima do
sentimento do Reprodutor Universal. Fora a Pedra, o falo espiritual
soerguido de dentro das entranhas que fecundara todas as mulheres,
rebuscara Tiwã com sua voz rouca aos longos cabelos obedientes ao
vento. E afirmara ter sido aquele fato o motivo de todas as mulheres
desistirem de seus sangues de várias cores, ao primeiro som da
buzina da manhã, aquilo tornado pastas de várias cores pigmentadas
de vermelho.
Tiwã tomou
conhecimento dos sacos se acumulando sobre o asfalto, trazidos pelo
Estivador invisível. Fora pressentido, chamado para seguir naquela
direção, onde a esta hora reinava a noite calada e a inexistência
dos automóveis-vagalumes com os seus tripulantes anestesiados pela
ironia de estarem vivos. Afinal, era o dia seguinte à Grande Festa
que deixara adormecida a cidade. E apenas Tiwã, cumprindo o aviso,
partira sonambulicamente às cores que, possivelmente, comporiam a
sua tela mais instigante, na qual cavalos decepados correriam sobre
uma multidão de homens e mulheres berrando sobre o vermelho-fogo de
um inferno crepitante e, por detrás de todas as capas que os
protegeriam de amarelo, penderia a sombra do espectro indefinido,
esclarecido apenas o seu estranho riso de escárnio, enquanto a
dentadas, morderia a lua...
Tiwã
embrenhou-se na chuva e sentiu o corpo experimentar o desejo. Correu
para o lugar, sobre o qual, hipoteticamente, estabelecera-se o
futuro pai de todas as alegrias. E o corpo dele imantou-se de tal
forma que se dispôs a fecundar o chão da Terra, queimando a mais
sagrada vagina de todos os tempos universais. Mas, em seguida,
desesperou-se por ter pensado por um segundo e interrompeu-se,
inválido entre tomar a pasta das cores impossíveis ou fecundar a
Grande Mãe com o seu pênis experimental. O olho invadiu o espírito e
a mente cumpriu seu momento de verdade. Quem mais saberia, senão
ele, que a Terra engravidaria seus vulcões com o esperma de artista
faminto? Quem mais ousaria conhecer o futuro impiedoso desbrumado na
tela por vir a ser-se?
Pairou a dúvida.
Contivera-se, no entanto, na vez de Salvador. Cumprir o desatino.
Com o silêncio à disposição por muito tempo, gritou e partiu para a
ação. Entre os dentes, os vegetais se incrustavam com o limo e a
eternidade pareceu competir com o destino.
Então, ao fim da
chuva morna aquecendo o mundo, as mulheres, todas elas,
ressentiram-se do espírito da Pedra que as engravidaram e destruíram
seus maridos com os maiores beijos de amores, como nunca dantes
acontecera. Num passe mágico, a Pedra sumiu dos olhos de Tiwã
definitivamente, tanto quanto nunca fora vista. E o artista, alheio
aos potes com as pastas de cores impossíveis, deixou-se levar.
Agachou-se no solo, no asfalto solitário do meio da manhã sem sol e
preencheu a grande fenda com o seu esperma denso, e os rios correram
de águas caudalosas além das margens, deixando o húmus engravidar a
esperança por outra pedra por vir a existir na tela imaginária do
milênio seguinte...
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