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Jornal do Conto

 

 

Jorge Pieiro


 


Perdido na cola



 

Em Madri, encontrei um egípcio da região de Nubia, nascido Soliman Taha Dahab e comprei dois livros dele. O filho do Nilo era tão alternativo quanto são tantos artistas brasileiros. Num dos livros, li um brevíssimo conto, La Cola, que ouso traduzi-lo sem autorização, mesmo porque seu paradeiro me é completamente desconhecido. Eis a tradução:

“Um dia, veio à cidade um homem do povoado. Quase desmaiando, apoiou-se numa parede. Permaneceu assim um tempo, até que passou um outro homem ao lado e perguntou-lhe o que esperava ali. O homem disse-lhe que seu único problema era o açúcar e, sem mais, pôs-se o segundo homem detrás dele. Depois de um tempo se pôs outro detrás. E outro. E outro, até formar uma cola que chegou até o final da rua.

A razão de haver uma cola na rua significava que ali se estava repartindo provisões.

O homem do povoado seguiu depois ao médico e, após duas horas, voltou com seus medicamentos.

De repente, encontrou-se com a multidão na cola e sem perguntar a ninguém pôs-se nela. Esperou muito tempo.

Temendo a partida do último trem de regresso ao povoado, foi em direção ao início da cola que se encontrava em outra rua, e começou a perguntar à gente a razão de todo o mundo estar ali esperando.

E todos responderam ao homem do povoado, que veio para se curar da enfermidade do açúcar : “- Estamos esperando o açúcar!”

Dessa anedota da cola, chegou-me a imagem de 111111. Um atrás do outro. No Brasil ficou estabelecido: pessoas, uma atrás das outras, formam uma fila, ou cola, se essas pessoas falam a língua espanhola. E é fila indiana, caso essas pessoas se encontrem alinhadas, mesmo se necessariamente não trajadas com esmero.

Por aqui, porém, a palavra cola tem outras conotações. Uma delas se apresenta como cópia feita clandestinamente nos exames escritos. Quem não se lembra dos tempos de escola? antes do início das aulas existia a fila para as rezas em intenção ao padroeiro (e eu nem sabia quem era Dom Bosco), e já se fazia uso da tradicional cola de provas... Atualmente, as escolas reduziram as rezas e foram obrigadas a oferecerem mais tempo para o preparo de colas. Pois bem, colar e filar passaram a ser verbos bem manipulados, em surdina, por muitos espécimes pátrios.

Voltando a Madri, entendi que para comprar um tíquete de embarque, num dos guichês da Estação Ferroviária Chamartin, a saída era ficar na cola. Ali, na cola do da frente. No Aurélio, estar na cola é o mesmo que estar na cauda, no rabo (ih!), no rastro, no encalço. No encalço, talvez, aonde leva o faro agudíssimo de um fila brasileiro...

Esperando a vez, em Cuba, os companheiros se mantêm em tais colas, tanto para comprar um gelado ou uma fatia de oleosa pizza, como para adquirir ração pela caderneta. Em experientes e pacientes filas indianas... Em Paris, as filas para visitar o Louvre são uma lombriga bem nutrida, tanto quanto era nos portões dos estádios brasileiros ou em direção aos banhos de Auschwitz, ou se como ainda se formam nos escassos Postos de Saúde, nas filas da Previdência, ou nas confissões individuais em Fátima, Canindé ou Jerusalém...

Por aí, tudo bem. Só fica difícil de encarar uma bicha para se ter acesso ao Mosteiro dos Jerônimos. Aí, sim. Em Portugal, em Fátima mesmo, a coisa complica para o brasileiro desavisado, no momento em que o lusitano de vasto bigode vem acudir o desorientado.

- Pega aquela bicha, pá!

Pode-se pensar que é uma ofensa, mas descobre-se envergonhado que é saudável e natural entrar na bicha. 111111. Um atrás do outro. Questão de educação. Fila indiana. Oh! Calcutá...

No final das contas, paciência... O absurdo pode acontecer com tantos significados. De cola, de fila, de bicha. Se não resta açúcar para adoçar a sobrevivência neste patropi, descerre-se pelo menos o afeto para rogar à humanidade para que saia dessa. Um atrás do outro, à espera da repartição de provisões de autodestruição...