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Jornal do Conto

 

 

Jorge Pieiro


 


Comida para uma cadela
 


“O ultimo doido que passou por ali escapou com a vida amputada.”
(Javier Temprano, 43 anos)


 

Eu criava vira-latas, tinha em média 15, nunca menos de 10. Voltavam sempre à tardinha, na hora dos ossos. Com o tempo, fui acostumando as pessoas a aceitá-los e os moradores da vila passaram também a cuidar deles. Um banhava, outro revezava o dia da distribuição dos ossos, outro catava pulgas ou recolhia os alívios e havia aqueles que tratavam do divertimento dos cães ou instalavam postes em locais adequados às necessidades diuréticas ou de demarcação de territórios. Aos poucos, todos os cães passaram a ser reconhecidos na vila por nomes próprios, pelos quais atendiam, fiéis, ao chamado de onde quer que viesse, abanando o rabo ou emitindo um latido de cumprimento.

Como não podia deixar de ser, é claro, com o passar do tempo o governo passou a exigir medalhas de identificação dos cães, nome, idade e tipo de sangue, e notificar com multas aqueles que maltratassem os animais, além de outras taxas importantes para o desenvolvimento do país, tendo em vista o emergente e promissor futuro no setor de turismo.

Pois assim a vila ficou famosa na cidade inteira, no país inteiro. Delegações de turistas fretavam vôos charters para conhecer a cidade de Esquimal, a 100 quilômetros ao sul de Tegucigalpa, capital hondurenha. Era um espetáculo deparar-se com caravanas de japoneses e suas imbatíveis máquinas fotográficas digitais, grupos de terceira idade provenientes dos mais diversos países da Europa, franceses em sua maioria, e em menor quantidade, uns gordos americanos com filmadoras portáteis e uns poucos insuportáveis turistas brasileiros, universalmente reconhecidos por uma genética falta de educação... e todos eles voltados para as poses daqueles cães, especialmente amestrados para estrangeiros.

Eu já nem ligava tanto para os cães, posto que a boa ação diária havia se transformado em negócio. Tinha, é claro, alguns fiéis amigos, mas por infelicidade, cheguei a pagar uma multa por desagravar um deles, que tivera a ousadia de me confundir com um poste.

Por tantas, angustiado, deixei a vila, resolvido a esquecer tudo. Fugi sem me despedir dos fiéis. E até de Liliana, por quem nutria um carinho mui especial. A angústia aumentou e, longe daquele mundo maravilhoso, deixei de sair de casa, como normalmente fazia. Até que uma vez resolvi deixar a bronca de lado e fui passear pela vila. Infelicidade. A vila não era mais a mesma. Os cães eram outros, as pessoas também. Com uma ponta de medo, pensei em Liliana. E não foi sem remorso que, tomando o caminho por ruelas antes queridíssimas, dei de cara com ela, tremia de frio. Tirei meu casaco. Ela me reconheceu, grunhiu. Nossos olhos choraram. Ela sentia fome. O que fizeram com você, Liliana?, eu me perguntei, mas, no mesmo instante, a resposta pairava sobre o mundo cruel que se vinga com unhas quando administra a vida, isso valendo para o rei e para o cão. Filosofia sem nenhum gosto, despedi-me de Liliana, prometendo nunca mais voltar. Certamente ela morreria de frio e fome, e eu me livraria do pesadelo e do remorso.

No entanto, disposto a sacrificar toda a minha vida, passei noites em claro. Estava ferrado, a unha me tomara. Que fazer?

Dias depois retornei à vila com um machado. Não tinha dinheiro, não tinha mais nada. Havia me deixado também ser administrado. Era um doido a mais, apenas. E no mesmo local onde a havia deixado, consegui reencontrar Liliana. Ela estava nas últimas, agasalhada ainda no meu casaco. A alguns metros de distância, olhei em seus olhos de gaze. Peguei o machado e tirei toda a roupa. Com cuidado, me aproximei, me ajoelhei diante de sua cabeça, cobri-a com imenso carinho e, acertadamente...

... cortei o pênis, a dor foi imensa!!!, e joguei-o para Liliana, come, pequena, come!