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Jornal do Conto

 

 

Jorge Pieiro


 


O mágico



 

Só uma vez. Mesmo assim chegou e abusou do desencanto da platéia. Abriu as mãos, engoliu com elas todas as ilusões e instigou os espectadores ao desvario. Ágil, preciso, Mr. Kaletzip contornou o atrito das palavras e consumiu os selos da audição.

Todos se prepararam para ouvi-lo, sem pensar, e o que era desconhecido para eles era a maior certeza na vida do prestigitador. Já não eram tolos por ficarem atentos. Assim, perdidamente incoerentes em sua vontade de participar da grande mentira, os espectadores despiram-se e sonharam.
João tinha os dedos nos seios de Marília. José invadira o soluço de Jandira. E Gabriel anunciara com clareza o seu desejo nos abismos de Clarinha. Berta acudira-se na boca de Felizardo. Soninha mordia o peito de Alaor. Vera com a língua era uma víbora no ouvido de Natanael.

Eu vi. Vi com esses olhos amarelados pelo tempo a ternura nos gestos daquela gente. O bicho que era dentro de mim um estranho, reconheceu-me. Mas ali eu já não podia sorrir ou lamentar. A vida de verdade era lá embaixo.

Mr. Kaletzip deixou-se e envolveu-se na multidão. Deixou-se para ser mais um mais que comum. Beijou os lábios de Dorinha. Ela retorceu-se e gemeu. Abraçou Gardênia e sentiu a grande flor da primavera desabrochando. Torceu por encontrar Cecília. Até que se deu ao acaso de encontrar-se novamente.

Os dragões se amavam como nunca. No meio daquele fogaréu, o cearense beijou a cruz feita nos dedos e choveu-se sobre o campo apenado de Augusta. Deu-se o verde como o diabo ao pecado.