José Hélder de Souza
Calunga, o homem de um tiro só
Na pia batismal
da igreja matriz de Conceição do Pereiro, nos idos de 20 para 30,
recebeu o nome de Antonio Silvestre, mas era conhecido mesmo como
Calunga, por ser feio e mal-ajambrado, como os bonecos de barro.
Tinha nome bucólico mas não era nada bisonho. De ingênuo pouco
tinha, tendia mais para argúcia e picardia, era o que o povo costuma
chamar de mija-mansinho, embora fosse de falar rasgado. Criou-se ali
mesmo no Pereiro, mas, quando ficou taludo, o pai o mandou para a
capital, Fortaleza, queria vê-lo sentar praça. Morou na casa de um
tio, na beira da lagoa de Messejana, até completar a idade de entrar
para o Exército. Lá, conforme o desejo do pai, devia mudar de vida,
aprender a ler e deixar de ser, como ele, um pobre plantador de
roça, na terra dos outros.
Calunga, de
fato, no quartel do 23º Batalhão de Caçadores, mudou de vida. Não só
aprendeu a ler, como apurou sua arteirice. Largou a casca de matuto
serrano e, com dois anos de quartel, virou um perfeito citadino. Com
meses de farda, depois da dispensa dos quarenta dias de recruta,
entrou na gandaia, andou à malta pelo puteiro da praia do Mucuripe,
frequentador do cabaré “Canção do Mar”, engalicou-se e, dizem, mas
não foi provado, mandou para as caldeiras de Pedro Botelho o praça
Otaviano que o desfeiteou, numa farra na casa da Mandica Peituda. O
certo é que Otaviano amanheceu de olho duro, com a barriga aberta
por um golpe de sabre-baioneta, quando largou, madrugadinha, o
serviço de sentinela, numa beira de mato, no fim do grande cercado
do 23. Na achada do corpo, o Calunga estava de serviço no outro
extremo da cerca do quartel, perto da Avenida Rio Branco, na guarita
do lado direito do portão. Aberto inquérito policial militar, nada
foi apurado sobre a autoria do assassinato. Ficou só a desconfiança
de que foi ele o matador, que a desavença foi grande no cabaré da
Mundica, motivada por uma quenga nova na zona.
Antonio
Silvestre largou a farda para trabalhar com o major Juvêncio
Pereira, seu conterrâneo, filho do velho coronel da Guarda Nacional,
Salustino Pereira, quando o militar conseguiu, com o beneplácito de
seu pai e chefe político de Conceição do Pereiro, sair do quartel
para a política, eleito deputado estadual, na primeira eleição
depois da queda de Getúlio, nos quarenta e seis. Silvestre, quando
na tropa, foi ordenança do major Pereira. Dada a baixa, ficou como
um faz-tudo na casa do deputado e uma espécie de guarda. Patrão e
empregado, por motivos da política estadual, passaram a ir muito da
capital até Conceição do Pereiro. Calunga na direção do Chevrolet.
Com o andar dos tempos surgiram desavenças, e o deputado, para sua
maior segurança, armou o Calunga com um revólver 38 cano longo,
conhecido do povo como “Colt cavalinho”, que ele traria sempre na
cintura por muitos e muitos anos. Cada defunto que aparecia na
região do Pereiro, morto à bala, na calada da noite, o povo dizia
ter sido obra do Calunga e seu grande revólver, principalmente
quando o finado tinha alguma diferença com o major. Os cadáveres
tinham um só furo de bala, no meio do peito ou na testa, entre os
olhos. Para não estragar o couro — diziam.
Passou o tempo,
o major Pereira cresceu na política, foi para a Câmara dos Deputados
e o Calunga crescendo junto, bem recompensado, dono de casas no
Conceição do Pereiro e até um sítio no alto da serra. Chegou a ir
para a Capital Federal por uns tempos, mas preferiu viver mesmo
entre os seus, onde era conhecido e respeitado. O patrão foi eleito,
depois, para o Senado e, quando fazia campanha para governador,
morreu num desastre de avião.
Nessa altura,
perdida a proteção do major Pereira, Calunga, já meio velho, achou
prudente se afastar, principalmente quando viu o grupelho do
militar-político debandar e alguns irem pousar até mesmo nos galhos
dos adversários do falecido, e a casa grande dos Pereira ficar vazia
de gente da política. Sumiu, sem o poder que o livrasse de encrenca
com os muitos inimigos que fizera ao longo de sua carreira de
capanga do major, encostou as armas, foi morar no seu sítio do alto
da serra, voltou a ser plantador de roça, só que em terras suas.
A política de
Conceição do Pereiro, sempre quente, ferveu quando o José Fernandes
Proença, o Proencinha, achou de mandar na política da cidade e
enfrentar o que restava dos Pereiras nas eleições para deputado. O
prefeito, Júlio Proença, seu tio, apadrinhava a candidatura, fiado
nos votos que tivera na última eleição. Lá um dia, na boca da noite,
na rua do Feijão, por trás da igreja, o Prefeito, quando vinha da
casa de sua rapariga, foi alvejado nove vezes. Cone daqui, cone
dali, acudiram o homem e o levaram para operar na Santa Casa.
Salvou-se, apesar do número de furos de bala, uns cinco dos tantos
que lhe desferiram. O maior escândalo político dos últimos tempos. O
governador Jorge da Rocha mandou apurar, no seu governo não podia
haver crime de cangaceiro. Ordenou ao próprio Chefe de Polícia,
Joaquim Belém, comandar os trabalhos para apurar o atentado. Belém
instalou-se em Conceição do Pereiro com um magote de gente da sua
secretaria. Quem foi, quem não foi, com dias de investigações, não
se apurou nada.
No auge das
diligências, estendidas a outras partes do Estado, o prefeito Júlio
Proença já tendo alta, curado dos buracos de bala, o Proencinha
achou de levantar a suspeita de ter sido o Calunga. Um reboliço,
devia ter sido mesmo o velho pistoleiro do Major Pereira.
— Vão buscar o
homem — ordenou o Chefe de Polícia.
Um delegado
militar, Tenente Macário, e uma volante da meganha subiram a serra.
No outro dia, de manhã, o Calunga chegou, debaixo de ordem, ao
quartel. Interrogado pelo próprio homem do governo, negou
terminantemente, com seu jeito de falar rasgado. Diante de tanta
segurança, Belém exigiu que ele provasse sua inocência.
— Doutor —
respondeu o Calunga —, se tivesse sido eu, o homem estava morto.
Quer ver, veja!
Pediu para dois
soldados estenderem um cordão um palmo acima do chapéu do Chefe de
Polícia e distanciou-se uns cinco metros, mais ou menos a distância
em que o Júlio Proença levara nove tiros. Ficou de costas para o
doutor Belém, até dizerem pronto. Virou-se e, com um revólver
emprestado pelo Tenente Macário, sem dormir na mira, com um só
disparo, partiu a linha em duas, sem sequer triscar no chapéu do
doutor Joaquim Belém.
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