José do Vale Pinheiro Feitosa
Foi o fim do mundo no Crato
Assis Valente, compositor, nascido em
Senhor do Bomfim, na Bahia, um dos preferidos de Carmem Miranda,
participou do tema com um samba de primeira: "Anunciaram e
garantiram que o mundo ia se acabar. Por causa disso a minha gente
lá de cada começou a rezar. E até disseram que o sol ia nascer antes
da madrugada."
Como sabemos, Senhor do Bomfim tem
tudo a vê com o Crato. Eqüidistante de qualquer capital nordestina,
é o Crato o epicentro da região. Especialmente no miolo da praça,
pois lá fica o centro do Universo. Nada escapa, qualquer
acontecimento é onisciente. Desde uma fagulha que acende o falso
sinistro da mercadoria para roubar do seguro até um sobrenome
mundialmente famoso que tem parentes na cidade. Por isso mesmo que é
natural se dizer: "só no Crato" ou mais ainda "nem no
Crato". Mas um dia aconteceu.
Foi um dia qualquer. Clima ameno, sol
claro, capaz de iluminar até pensamento escondido; estudantes na
escola, trabalhadores no trabalho; os do escritório e os outros do
balcão; a limpeza urbana e os da saúde curando doença. Tudo normal.
A vida de sempre, entre uma calçada e outra, no labirinto das ruas;
respirando nas praças; o "pelo sinal" na frente das igrejas; susto
dos juros alto na porta dos bancos; as sementes para o plantio, tudo
andando como sempre andava.
Se tudo andava, era o mesmo de sempre,
quem haveria de suspeitar que o fim estaria próximo. Ninguém, menos
ainda o adolescente com tanta paixão que é capaz de morrer por ela;
o velho que lamenta a vida para espantar a morte; o perdedor que
denuncia a quebra das regras ou o penitente que espia com olhos nos
pecados futuros.
O professor Edmilson da geografia da
Universidade Regional do Cariri acabava de chegar em sala de aula,
era a 14ª hora daquele dia. Em tais horas, ao sair-se de dentro do
ar condicionado dos automóveis no ambiente quente, os óculos se
umedecem e por isso o professor os retirou para limpar-lhes os
vidros. Os alunos na modorra pós prandial, de olhos cansados,
esperavam o professor concluir a tarefa. Bosquinho atendia os
últimos fregueses do almoço, por trás do balcão de seu box no
mercado. Muita gente estava no embalo que costuma realizar os sonhos
das sestas medianas. Os cratenses, como Sodoma, viviam na paz dos
seus espíritos.
Os passarinhos estavam silenciosos
devido ao clima daquela hora. Nenhum urubu enfeitava a vasta toalha
do céu azul. Raros carros voltavam do almoço para o trabalho e
alguns alunos atrasados suavam até chegar ao templo do saber. Todo o
clero realizava a sesta, os comerciantes se recostavam nos balcões
com a preguiça da baixa contagem de freguesia. Os bancários fechavam
os balanços das operações, os motoristas de praça até esqueceram as
histórias vantajosas e sob a copa das árvores, entre cochilos e
pensamentos enevoados, aguardavam uma corrida ao menos "para fazer
um chá".
Quer dizer a cidade estava
despreocupada. Nada poderia tirar-lhe o sossego. Apenas era um morno
silêncio dorminhoco. Quem trabalhava ou realizava alguma tarefa ou
eram os restos que sobraram da manhã ou o começo lento do que viria
pela tarde. Era tudo tão igual que nada poderia ser acrescentado,
nem a última notícia da televisão ou mesmo a abertura do Vídeo Show
tinha algo que não fosse o mesmo de sempre. Apenas esta narrativa
monotemática.
E aí?
Nem suspeitem. Num segundo, antes que
o professor Edmilson desse o último toque no enxugar das lentes dos
seus óculos, que Bosquinho ensaboasse o último prato, o padre
pigarreasse o seu ronco, aconteceu.
Nossos olhos piscaram e ao final os
óculos do professor Edmilson já se espatifavam na lajota da sala de
aulas. Bosquinho, de olhos arregalados, se agarrando às bordas do
prato feito a última materialidade da vida. O padre mais ofegante
pelo chamamento de Deus que pela apnéia do sono. Gente se abrigando
do perigo por toda cidade. A cachorrada vadia, feito um gás se
expandia em todas as direções, em seus latidos loucos e
desesperados. Jumentos murchavam as orelhas em amplo sinal do
inevitável. As verdureiras do mercado viraram seus balaios,
esparramando mercadoria ao redor. Reações divergentes: quem
dormitava encostado nos balcões tanto se soltara dos braços que
apoiavam seus queixos, tendendo a arriar a cabeça, quanto se
empertigaram de tal forma em sinal de alerta, com tanto vigor, que o
fruto só poderia ser um torcicolo.
A lista do mundo se acabando, ao
contrário deste, continuaria por muito mais. Ninguém ficou
indiferente no Crato. As rolinhas voaram do ninho, os gatos
faiscaram seus olhos desde os monturos em que se escondiam. Os ratos
cruzaram a praça da Sé, as pessoas que estavam na praça ou correram
para qualquer rumo ou ficaram congeladas de pavor. Vicelmo que
descansava na rede após o noticiário do meio dia, levantou a cabeça
acima da varanda, se lamentando por não ter mais tempo para alardear
aquele fim de mundo. Perdia a reportagem, mas não o vício de querer
sua manchete. Literalmente o Crato se acabou. Como alguém de lá
certamente diria: só outro Crato. A mais dolorosa conclusão
de que nada mais tinha jeito mesmo.
Mas sobre ruínas, embaixo do sufoco
dos destroços, das lágrimas das perdas, dos gritos do fim,
certamente que a curiosidade da cidade jamais se apagaria. Terminada
aquela cena dos dois últimos parágrafos o que se ouvia:
- Qui diacho foi
isto?
- É a guerra
mundial. O estouro da bomba atômica.
- Não, foi o
terremoto que destruiu tudo. Estamos todos mortos, naquela fase em
que os espíritos ainda não concluíram que passaram para o outro
mundo.
- Qui nada isso é
a Pedra da Batateira que veio abaixo. Agora vem a água inundar tudo.
- Isso é maldade
dos Americanos, são eles atacando o Brasil para os russos não
pegarem nós para eles.
- São os
pecadores. Estes meninos fumando maconha, os pais de família indo ao
cabaré, as mulheres andando com a bunda prá fora. Isso é castigo do
céu.
Mais um tempo e começaram a se
preocupar com os parentes e amigos. O quê acontecera com eles? Do
quê teriam sido vítimas? Onde estariam?
Daí concluíram que estavam ainda vivos
e que o estrondo que viera do céu não provocara nenhum estrago
material. A não ser os óculos do professor Edmilson. Tudo mais
estava o mesmo. Quer dizer, a exceção do cérebro fervilhando de
pavor e o coração galopando de ladeira abaixo, nada com seus corpos
acontecera. O epicentro do fim do mundo teria sido bem aqui, bem
junto ao peito e no centro do medo em suas cabeças. Sobras do fim do
mundo foram em busca dos amigos e dos pontos de encontro para
entenderem o que lhes havia acontecido.
Ali pelas quatro horas, após passar na
ótica e por lá se demorar entre a encomenda e a troca de experiência
com os comerciantes, o professor Edmilson foi para o box do
Bosquinho, pois, certamente, lá se condensariam os vapores daquele
incerto acontecimento.
As teorias foram tantas que somente
pela vontade de um novo Diderot, quem sabe fosse este o médico José
Flávio Pinheiro Vieira, em uma nova Enciclopédia, poderia catalogar
o volume imenso do conhecimento recolhido. Bosquinho vendeu muito
caldo, mas quase atrapalhava o próprio negócio pois sempre esteve no
centro das inúmeras rodas que se formaram. Teve explicação para cada
momento, cada ato, cada um com sua sentença. Ali pelas cinco e meia
da tarde, chegou a notícia que uma senhora do sítio Currais morrera
do coração perante os céus em explosão.
Naquela noite os sonhos foram
revolutos. As infiltrações dos pesadelos foram muitas e variadas.
Crianças tiveram que ser acalentadas pelos pais. Casais dormiram
agarradinhos pelo sinal do renascimento. O Crato se acabara, mas, em
um segundo, renascera novamente. Todos satisfeitos por serem
redivivos.
Alguns dias após, através de colchas
de retalho da mídia, afinal tudo se explicara.
Quem provocara o desastre no Crato
fora o Presidente Miterrand da França.
O quê?
Você tem toda a razão de estranhar.
O Concorde dele, entre Brasília e a
Venezuela, rompeu a barreira do som sobre o Crato e a cidade se
acabou.
Foi o fim do mundo no Crato.
José do Vale Pinheiro Feitosa
Salvo da tragédia porque morava no Rlo de Janeiro. Sujeito covarde.
|