José do Vale Pinheiro Feitosa
CRATÍDIAS
Referências
existem sobre o helesponto, como ao curso de Odisseu, mas o foco
desta epopéia, melhor dizendo, é a pequena cidade brasileira de
Crato. Não a portuguesa, a orgulhosa Portugal da União Européia, tão
próxima das grandes auto-estradas pelas quais vão às suas praias os
BMWs e Mercedes da Alemanha, Bélgica e Holanda. A pequena Crato do
drama da periferia da civilização, afinal mestiça, certamente filha
da Europa, do Mediterrâneo, mais que do Atlântico e portanto da
Grécia.
Os homens, mitos são
Os mortais não são
quietos como pedra, pois sonhos lhe invadem.
Mesmo ela, cristalina rigidez, vibra, como o homem, imóvel não é.
Humanos, a sacra narrativa de marcas ultrapassadas, pelos mitos
agem;
inundam as margens convencionais, cada pergunta, uma resposta quer;
todo átimo gestual, perdido na profusão de tantos, uma explicação
tem.
Se esforço houver, com os deuses e sem eles, com o raciocínio ou a
fé;
cada ato um fato, toda face um caráter, ao que todo desejo símbolo
é.
Os homens e deuses, mitos são, como em minaretes, evocam almoedem:
o ato de acelerado circular, o carro solar, estiolando o verdor
quando vem;
os tempos idos, sem retorno; vida, em raio, matéria permanente da
glória é.
Vastas visões do mundo
Como na ágora
grega, agora, no centro do Crato, na Siqueira Campos,
entre bancos de marmorito, sob a copa de palmas, teatro da vida em
atos,
o milagre do nascimento, resulta do termo grávido, o mito abre-se de
fatos.
Drama de atores com visão própria do mundo, abre-se em vida e
Tânatos.
Primeiro chega, como mágica, o mundo clássico de Gregos e Troianos;
em resposta, aponta, na cena, os racionais, intérpretes dos mundos
amplos;
há uma constelação de deuses, olímpicos, atos caridosos, protetores
mantos;
rebatem o hábito da razão, jugo implacável da mecatrônica, sem
prantos;
após, entra o capitalista dos interesses móveis, que o arrasta aos
trancos;
por último, rock, droga e cartão de crédito, o jovem, aleatório,
feito dados.
Explicitam-se os personagens
O drama: corpo
contorcido a dores, fio de sangue, prodomos do nascituro,
no cor da praça, uma mulher indigente, ao abandono em trabalho de
parto,
mancha rubra infiltra-se no tecido das calças, ao que desnuda o muco
farto,
como largas faixas encilhando, dores lombares intensas vêm por seu
turno,
do assento escorrega ao rés do chão, com entranhas em ambiente
soturno.
Chega-se até ela, um homem de fé, carregando o peso da própria
imanência,
no lapso dos afazeres, um homem racional, chega-se sem a
transcendência,
especulando, é o hábito, um homem capital, sutil como uma
transparência,
elefante na loja de cristais, um jovem, busca algo, mas cai na
permanência,
são os personagens da tragédia do circuito humano, marca da
indolência.
Para um único fato, fartas interpretações
A alvorada em
vida, contempladores, os homens apenas são manicurtos,
emerge aos atores uma roca a tecer destino, grande questão ao seu
turno,
a questão é! Não basta a cena! Ao personagem a exegese! Veio do
monturo?
Seria a prenhe fidalga? Porque tal abandono? Quem do seu ventre
nasce?
Tanta pergunta, como ramos e galhos, nem pingo que na inteligência
passe,
alegrai filhos caribocas, netos dos Cariris, ponham as idéias para
que asse,
aos deuses vitoriosos e àqueles tombados, no altar, sacrifique-se,
eu julgo,
quem importa as versões? Primaveras e verões, como estações ao
mundo,
os homens, esferas, não são, globais também, beleza é ser quimbundo,
rejubilai povo da terra, genealogia cruzada de um mor de sangue
junto.
Ao que vês, o que afinal farás?
E a questão é: uma
mulher em fase de dilatação, ao sol da Praça Central,
em volta, um homem de fé, outro de razão, consultado o feito
capital,
logo se aproxima um jovem, buscando entender a cena de certo fatal.
Do século a grande dúvida: seria a inteligência alienígena? Sem
resposta.
Algures! Porque afinal? Se ao lado tanta ignorância da inteligência
posta,
afinal mova-se ao ritmo do que teus olhos vêm, e nascer é aqui e
agora.
Bem ali, sob a sombra das palmas, ao limiar do termo e começo, é
natal.
Qual fé a engravidou? Que sêmen ao óvulo nidificou? Quem pagará
afinal?
Três homens se nutrem dos próprios hábitos para repetir-se o ciclo
de bosta;
vozes fogem ao foco afora, com teorias, na prática, ao mundo dão as
costas.
Nem deuses, nem reprodutores, apenas fazer
O homem de fé, do
milagre à frente sua, às contrações dos lisos músculos,
da luz iminente, que a mulher expulsa, vê a planície qual manada de
búfalos,
ao homem de razão diz: de Deus vontade desdobrando galhos a
caulículos;
ao homem, o arbítrio livre, vontades migratórias, febres, acasos e
impulsos;
e Deus, magnânimo, aponta a senda dos passos seus à paz do repouso,
se Deus não houvera, a fé alimentar-se-ia apenas do tempo momentoso.
Responde o homem de razão: como qualquer, os maus, felizes também
são,
desprezíveis, rivalizam com animais; entre os dois, não há
diferenciação.
O homem capital, absorto, esquadrinha a cena, calcula a própria
subtração,
O jovem, desejo súbito, como faz no impreciso, de fumaça enche o
pulmão.
Cabe a pausa reflexiva, frente ao drama?
E os fatos
implacáveis são, o curso do grão, na ampulheta, jamais cessará,
a contratura expulsatória o rumo mantém, ao que os homens também,
permanente no longo significado de suas idéias o homem de fé
continuará:
Forma, apenas isso, seria se à massa não aderisse a alma que lhe
convém,
ela, o logos entre deus e os homens, hermeneuta, a alma certo
traduzirá.
Abre os braços em condescendência humílima, o homem de razão vai
além:
entre os homens e os demais animais, mais igualdade entre tais
refletirá,
continuidade de ambos, a cura, igual do médico, no veterinário
contém,
a obra da vida, que da criação foi, o cotidiano é o ensaio que a
modificará;
a criação age no mundo e o mundo na criação, o homem pesa em achém.
Ignora-se tudo, mesmo a brisa
A brisa, largo da
praça, sopra a folha de jornal, ao que é aprisionada e lida,
haveria nas suas tabelas o pregão Nasdaq? Examina-a, divergente da
vida,
o homem capital cala-se, nos olhos, que percutem o vazio ilógico do
jogo.
Se há para quem tudo é fé, ou àquele racional, há os abrasados em
fogo;
o capital não se cala ao drama, aposta, especula, lucra, qual
avião-suicida,
troca acusações a fé e a razão, sob o olhar atento, especulador, do
tadarida;
ao que se indigna, apontando o parto em dores, o homem razão com
arrogo:
transformação, em profundas raízes, debulhando grão, luz ao mundo
novo,
será tempo vindouro, muito além do milênio, incandescendo a
lamparina,
luz em desvãos sombreados, polindo o cinabre dos metais, qual
ambarina.
Milenarismo revolucionário
Escoimados de
Deus, decantados ao demônio só, são as crenças milenares;
esperança vã, se à ordem eclesial não forem, serão farrapos feito
militares,
horda desordeira, condução da insanidade, lixo que se junta aos
milhares,
ao sacrário exclui, à palavra de Deus deturpa, rapina a fé feito
ladravazes.
De súbito diz o homem de fé e aquele de razão libera as apícolas
mordazes:
Nem os escombros resistem, a mínima parte do edifício, se
reduzirá ao pó,
o castelo da fé inabalável, ao etéreo se diluirá, nem fica o
peristilo rococó,
clérigos, adubos da nova esperança, serão, pacíficos, qual o cativo
mocó,
valores episcopais, novos rebanhos distribuirão, revolução não é
tema só,
como funil arrasta todas as águas, transpõe sobrenadantes, abranda o
jiló.
Vem um deus clássico
Um grito risca
arco sobre a praça, se desdobra sobre íris, sinal divino,
as vozes se calam, os pensamentos emudecem, é o ponto do adivinho.
Lancinantes as dores são, o ventre, botão desabrochando, desejo de
flor,
espera-se a realização dos sinais e de fato um deus clássico
juntou-se à dor:
o mundo subjetivo é a diversidade, ao contrário da objetividade
uniforme;
celeste, por assim dizer, subjetivo, de criação infinita, da corte
disforme.
A objetividade, mediana é , já a subjetividade é dispersão e
oportunidade;
cada sujeito um universo próprio, uma versão dada, determinada
cidade,
o céu da subjetividade é, sem o Deus mediador, o céu expositor, o
liberal.
Recolhe-se a luz celestial, fica a dor bestial, ao lado os homens,
em geral.
É pausa. É repetição
Levanta-se, efeito
dos ventos rasteiros, poeira de bilhões de grãos de areia,
quem irá saber de cada, se depositando, esmerilado, como realiza a
bateia?
Assim vemos o drama humano, grandes números, fluxo da banalidade;
o autor some, desfaz-se o sujeito, desejos irrealizados, podre
mocidade.
Assembléia sem decidir, tomada sem rumo, ao deus dará, nada mais há!
Há! O barro sublimado que cerâmica fez-se, um vaso e um pé de
manacá,
mas, por se falar em frutos, o que se dirá da criança que na praça
nasce?
Ao olhar atento, mente ocupada, membros dispersos, letras em longa
haste;
versos gongóricos, pensares alegóricos, a vida flui, apesar do
londrino fog,
afinal todos, a não ser o drama desenvolto, personagem de Gog
e Magog.
Apropriações
Sobe a cotação
da nova economia, Celera Genomics, ciência empresária,
nem conquista ou avanço, saber é negócio, célere feito “La
Passionária”.
A ciência da vida cresce o pregão, multiplica aplicações, é
gestacionária,
mesmo evoluindo do elementar, a ciência é uso na sua fase
relacionária,
é lastro para a inversão...eis o homem capital e a sentença
reacionária.
O jovem, hambúrguer, vídeo game, coca-cola, nem o drama ou discurso,
ignora tudo, enoja-se do líquido gestacional, apascenta-se ao dado
curso,
o drama: qual seu papel? Prateleira de mercado, mercadoria em
concurso.
Pai provedor o tutela à vontade. Fosco olhar enfastiado: hibernação
do urso.
Vontade imprecisa, desejo disperso; tudo quer, nada é; só rumo
excurso.
A felicidade é química
Intensificam-se as
contraturas, a cada intervalo menor, no centro da praça,
rés do chão, nível abaixo dos longos discursos, o parto continua sem
graça,
uma anunciação, o deus máquina entre eles, do impreciso, talvez de
Talassa:
houve tempo em que a felicidade era busca no mundo afora; cada
qual,
com seu método de conquistá-la, outros com a sorte de encontrá-la
igual;
segredos guardavam tantos da felicidade possuída, mas veio um viés
tal,
que a busca externa nada resolve. Sinapses, neurotransmissores,
cerebral;
felicidade é o metabolismo da serotonina, sofrer é afinidade de
massa.
De volta ao satélite de Netuno, o Deus foi, abandonando o parto na
praça,
os homens permaneceram como os anéis de Saturno, um sinal que marca.
Impulsos culturais e biológicos
O homem racional
aponta a parturiente: não é, o fruto, produto cultural,
mesmo que se programe, postergue o filho, a mulher na libertação
social,
sua escolha sexual não é suficiente, pois de dentro, inexorável
força vital,
um filho surgirá para somar o mol dos humanos socialmente
necessários.
Um grupo de mulheres, de filhos mais cedo e outras, tardios, ao
contrário,
todas mais férteis, tocadas pelo relógio biológico que não pára
arbitrário.
O jovem perplexo ouve e nada compreende, nem a mulher em erupção,
ou as palavras da razão, não sabe da fé, da riqueza, só o efeito da
sedução.
Ameaçado pela razão, o homem de fé se agarra ao mistério sem
solução.
Já o quarto personagem indiferente ao ato, espreita oportunidade
capital.
Entre o prazer e a tortura
Vendo-a assim,
deitada no chão, nas dores do parto, um sentimento revolve,
o espírito do homem racional: entre o úmido bacante e o seco
franciscano,
despojado face a luxúria, vive o medo do pecado, o líder Cratense é
pobre.
Sorve o gole de cachaça numa mão e na outra aplica o cilício
mortificando,
sedutor, servil, covil de crueldade; ao líder, toda culpa que ao
outro move,
jamais é sua. A ele o esplendor da anunciação em seguida vai
parando,
as luzes, apagam, os telefones se calam, o consumo cessa, passa das
nove.
Tanto cinismo assim indigna ao homem de fé: porque aos líderes
acusas,
se embaixo de ti uma alma clama ajuda e nada mais fazes que
detratar,
a ciência vitoriosa é, também, a maior catástrofe, a todos e a tudo
abusa.
Entre a fé e a razão
Jamais se viu algo
igual, uma luta de deuses às claras quanto à dos homens.
Fazia-se de subterfúgios, ameaçou o deus máquina: tudo se resume
a tijolos
- elétrons, múons, tau - e forças: forte, eletromagnética, fraca e
gravidade.
Reage furioso deus clássico: teu pecado e a preguiça que a todos
reduzem.
A forma? Imitas as casas que te abrigam. Vontade é força, como
bipolos.
Ser é artigo de lei, social dinheiro é, natureza uma máquina em
atividade.
O homem racional se alegra do mundo que seus deuses a si conduzem,
já o de fé rejubilou-se da mecanização que a ciência reduz com
dolos,
o homem capital registra os fatos, as idéias, na busca de sua
contabilidade,
rompe-se a bolsa d’água, amiúdam-se as contrações, desponta o nenen.
A ira do deus clássico
O deus clássico
continua o argumento: a razão não fez o mundo mais belo,
a ciência ampliou a ameaça do ambiente sobre todos. O que era
melhora,
fez-se apenas servidão. Conhecimento? Fortaleceu o dominador da
hora.
A cada descoberta ou nova invenção, mais um braço a esgoelar o elo,
que mantém a integridade do ser. O liberto que da ciência é certo,
integrou-se ao processo da exploração. A sujeição da natureza morta?
Apenas a troca de uma crença eclesial pela economia secular e agora,
em desespero como sempre fez, ao fluxo de caixas, tudo estratégico.
A natureza hostil é projétil, violência é o cântico apologético.
Como de costume, lançou um raio que fulminou metade das palmas.
Ao que se ira o deus máquina
O deus máquina, em
luzes de néon, rebate a ira clássica: Manipulação!
Palavras em Cristo, Buda ou Maomé, relíquias falsas sobre palma da
mão.
O combustível que tangeu massas famintas e desesperadas tal qual o
cão,
danados nas rotas da peregrinação. A paz, cuja única e possível
realização,
é a morte. A sorte, ceifada a lâminas negras que arrasam tudo feito
tufão.
A vitória da razão foi a descoberta das Américas, longas rotas
comerciais,
foi a máquina a vapor, o laboratório, a imprensa, pensamentos
racionais.
Eis a civilização do hidrocarboneto, sobre a pólvora, o ferro e os
metais.
Destruição, na ira sua, não, possuía a bomba, mas preferiu efeitos
espectrais,
jatos de luzes, canhões holográficos, focos de laser, mor efeitos
especiais.
Surpresos! Fala o jovem.
Indiferentes, o
epicrânio do nascituro da vagina brotava, ficaram surpresos,
com as palavras pelo jovem ditas: falso é o mundo a quem estamos
presos!
Nada é natural, tudo se produz pelas máquinas, que nos conduz
coesos.
Mansos, tudo artificial é, a luz do dia, a temperatura ambiente. Tal
coelhos,
em caixas de laboratórios experimentais, consumidores de produtos
coevos.
E tu! – Aponta o homem capital – Condutor deverias ser! És
conduzido.
Crises capitais, ciclo depressivo, concorrência. As cifras, por elas
seduzido,
não tens caminhos nas estrelas, apenas o chorume poluído por ti
produzido.
Diferente não és! – Acusador ao homem de fé – Eternizas o pó
evanescente.
Nem tu! – Ao homem racional – Reduzido imanente, jamais
transcendente.
Ao que os sábios respondem
Uma associação
imediata, mais denunciava identidade que contraditório.
Os homens presentes, em série reagiram, primeiro a fé: E tu? O
ilusório,
as malhas da ficção televisiva e cinematográfica, em efeito
alucinatório?
Quem sóis? – Reage o de razão – Apenas sobejo do pai um dia
revisório.
Quanto queres? – O homem capital – Dinheiro divide, mas é
consistório.
Como em coro, os três continuam: informe-se, informatize-se, fale
inglês,
negocie, despoje-se do passado, a globalização aceira os valores de
vez.
A sobrevivência, é ocupar canto entre melhores, os demais são apenas
rês,
se prestam para alimentar as trocas dos talentos que a tecnologia
fez.
Chão da praça, líquido amniótico derramado, finda-se o parto em
higidez.
Segue a vida
Os deuses
vitoriosos e os vencidos, os homens e o jovem, cada um em si,
pelas vias entremeadas de bancos e jardins, separam-se, hora é de
partir.
Carregam consigo as malhas que os contém, as travas que os sustenta,
eu vi.
A fase de decedura, antecâmara do puerpério, quando expulsa foi a
placenta.
A mulher separando o recolho, esgotada, beija a cria, como à flor o
colibri.
Segura nos braços a criatura, como oferta ao seio fizesse, ao
quadril assenta,
não importa o corpo que nascera, sabe quem viera, as pernas mal a
sustenta.
Solitária, entre palmas, imersa na brisa farta, trôpega, lentamente
se ausenta.
Consigo, no colo de afago, leva um certo projeto, ou tentação de
anfiguri,
talvez, nem suspeitas hão, para o manancial que a tudo arrastará
feito bariri.
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