Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

José do Vale Pinheiro Feitosa


 

Quem sou eu?

 

I

Eu sempre, desde criança, na minha querida Friburgo, ou na fazenda em Trajano de Moraes, achei a idéia de maturidade, podre. E maturidade, consolidada em sistemas mentais, ideológicos, conjunto de idéias, princípios, bancos de informações ou conclusões filosóficas, é um balaio com frutas verdes, maduras e podres. Nem todas as goiabas testadas na “casca do alho”, muitas absolutamente em moda e aquelas desprezadas para as quais, alguns chegam até a tapar o nariz.

A atual onda liberal, travestida de lantejoulas, falando inglês americano, deitada no leito do consumo em moda, é o pacote maduro. Quem não quer adorar o bezerro de ouro? Quem, desde o início dos impérios, não deseja um modo de viver farto, de fardo leve, e pleno de poderes sobre os outros homens.

Em princípio, apesar dos imensos códigos religiosos, éticos e filosóficos, os membros de todas as religiões e correntes filosóficas, sem exceções, adoram o bezerro de ouro.
 

II

Minha avó materna é judia, um dos meus bisavós era chinês, tenho um pai árabe, mãe descendente de gregos e alguns retalhos de portugueses. Todos adoram o bezerro de ouro.

Os financistas judeus, os investidores árabes, toda a patuléia européia, os pioneiros quakers do novo mundo, o cardinalício com a voz piedosa do representante romano de Deus na terra. Todos fazem negócio.

Seja publicamente, pois é esta a regra, ou na intimidade da vida particular, o negócio é a regra. Se vende para uns que queiram comprar o que você tem. Se vende o que você é em termos de posição social.

Como uma religião nas qual o indivíduo não existe e sim o sistema, todos se entregam ao mercado e no mercado vão achar algo para o seu bolso.

E logo assim que começam a descobrir o mundo, haverá, desde o início, o compromisso em consumir e, se possível, acumular direitos. Como tua pouca vida, mesmo que curta para teu desejo, é assim mesmo longa para acumular bens, alimentos e serviços, o que fazes do excedente? O que na verdade fazes é comprar o lugar para ti e teus descendentes na fila dessas necessidades no futuro. Não importa se o futuro é longínquo ou próximo.
 

III

Se não comeres os cereais e as carnes até um determinado tempo, ficarão impróprios para uso. E tua vida ultrapassa em muito esse tempo. O que significa que todo o sucesso do sistema é a venda antecipada de ingressos.

Os lugares mais confortáveis e próximos do palco do capitalismo, estando desse modo reservados, estimulam quem os adquire a conservar em cada detalhe as posições que hoje ocupam. Por isso se tem medo das novidades que não sejam apenas de consumo. Daí todos resguardarem em suas latas de conserva, de prateleiras empoeiradas, as esperança de que tudo se mantenha. Só tem uma coisa que contraria, é preciso que todos aceitem o jogo da fila organizada.

E hoje toda esta civilização é contaminada de cabo a rabo por cotoveladas na fila nunca antes ordeira. E não pode haver culto ao bezerro de ouro se a fila se desorganiza. Não existe paz cerimonial que suporte a algazarra que as maltas fazem no ambiente do culto.
 

IV

O que assusta na maturidade é o medo de se reduzir a um simples número da ordem histórica global. Resumir o teu universo à superfície polida, reluzente e hipnotizadora do bezerro de ouro global. O brilho está onipresente em todos os shoppings. As vitrines, os balcões, as gôndolas, as passarelas, os automóveis, os aparelhos eletrônicos, os salões etc.

O fetiche da mercadoria.

Horas e horas ocupados em sonhar, desejar, brigar, morrer e matar pela moeda. É o grande sinal. In hoc signo vinces.

Se no passado, foi tão identificado com sua materialidade, hoje, o padrão ouro virou número virtual, virou uma entidade simbólica e abstrata. Quase dizia que é o próprio Deus. Embora para todos seja um poderoso instrumento dele. O que vale nessa religião, no sentido de religar ao seu Deus, é que o homem se diviniza, no mundo moderno, através de uma natureza dual. Se transforma na própria identidade da linguagem binária dos computadores. Tem ou não tem, é ou não é. Positivo ou negativo, aceso ou apagado.

No mundo liberal, com a marca indelével dos Estados Unidos da América , o lastro da moeda se forma na fusão do ideal de vida, do agente motivador e do ordenador, inclusive da violência desagregadora

Seja o ouro, seja a palavra do Banco Central do Estados Unidos da América, seja o fluxo eletrônico dos derivativos nas bolsas de valores.
 

V

A maturidade sistêmica. Agregada aos valores gerais da sociedade globalizada. As mercadorias baratas dos asiáticos, as excelências tecnológicas do grupo dos sete, as frutas exóticas, as embalagens de alimentos, tudo isso faz parte deste balaio que é a chamada maturidade.

A forma física mais próxima de sua descrição é a do deputado e ex-ministro da economia brasileira, Roberto Campos. Este é o nosso mundo.

Medíocre mundo. Incapaz de lidar com as dificuldades inerentes a ele mesmo.

Quando pergunto a mim mesmo o que sou, na verdade, surgem enormes dificuldades, cujo o significado da pergunta se estiola. No rumo dos sistemas mentais da moda, na verdade é impossível sequer formular a pergunta, “quem sou, de onde vim, aonde vou ?”. Quanto mais intentar respondê-la.

Surgem tantas possibilidades, tantos contraditórios, tantos interesses predominantes, que não há sentido em realizar a pergunta.
 

VI

Aqui, sentado no meu apartamento na Gávea, com um casal de velhos amigos, fumando, coletivamente, um cigarro de maconha, aí, então, é que se afigura de melhor forma o que é o mundo moderno.

O que um hábito em particular, de algumas milhares de pessoas, tem de paradigmático para os tempos liberais? Eu não sei exatamente responder. Mas sei que o mais certo e destinado, o mais orientado e planejado cidadão, o mais radical transformista, redundam no mesmo que a embriaguez da maconha.

Ou seja, mais uma contemplação das nossas entranhas medíocres, dos nossos sonhos supérfluos, das nossas decisões seriadas. O que na verdade não tem nada a ver com a droga. Tem que ver com tudo que resume o fluxo das gerações humanas, seu papel contemporâneo e o estabelecimento de bases futuras.
 

VII

O que se vê é bastante infantil, irracional e distante das mais longínquas pretensões da originalidade. Ou de onde se originou.

Aliás as pretensões nem sempre são formuladas na gente mesmo. Com grande freqüência são destinadas alhures. Pelo conjunto da sociedade.

Historicamente existiram muitos modos de nos colocarmos na vida, de organizarmos nossas pretensões e realizarmos nossas ações. Mas como sempre tivemos o amadurecimento dos sistemas no balaio de goiaba, e radicalizamos as frutas maduras.

Agora este é um momento cheio de possibilidades, reduzido ao formato ilusório do dinheiro e da mercancia. Pondo o criador de pernas para o ar, no desespero consumista de criaturas efêmeras e descartáveis.

E como recolocar os homens no centro deles mesmos? Essa resposta está aí mesmo, nas possibilidades, ainda ignoradas, presentes, mas inutilizadas, que nos rodeiam como espectros. Só um novo renascimento do eixo sobre o próprio homem, será capaz de entender aquilo que temos e não sabemos usar.
 

VIII

Um renascimento que estruture o enorme volume de informações, seja prático em termos racionais, acessível em termos utilitários e instrumental em razão do homem. Um renascimento de todos esses parâmetros modernos, tão defendidos, mas defenestrados na volúpia da adoração do bezerro de ouro.

Na alienação de si mesmo, na submissão aos sistemas, aos mercadores dos produtos, guia da obediência embriagada. Obediência que reduz aquilo mesmo que tu és. Os grandes segredos sempre foram dados da realidade.

O segredo é o resultado prático que, embora permaneça desconhecido, é um dado concreto do momento atual. O segredo é que os processos de geração, organização e difusão de dados amplos, desde de parcelas matemáticas até a registros completos de determinadas culturas, abrem enormes possibilidades.

Podem gerar conflitos entre os homens. Ser utilizado por força de interesses privados ou coletivamente organizados, capazes de apenas ampliar
 

IX

Quando me fizestes herói e me perdi, virei o reverso da moeda e procurei o esquecimento dos comuns. Ainda que me quisestes rico e vendedor, pelas calçadas andei mendigando sem propósitos e objetivos. Na ordem de me tornar pacato cidadão, de endereço conhecido, feito roedor de porão, consumi os teus e os meus sonhos de futuro. Na contracapa aonde escrevestes ordem, eu li revolução. Na mistura rala, encontrei pedaços de pedra, na superfície cruenta da rocha, encontrei a gelatina do limo.

Mas multipliquei-me em más opções. Da minha fraqueza fiz-me potente. Do meu pequeno tamanho fiz-me gigante e do isolamento fiz-me formigueiro. Da extensão dos meus frágeis dedos surgiu um cano fumegante. De repente sou capaz de num mesmo ato, em menos de segundos, esvaziar tudo que o outro é. O mesmo é capaz o outro sobre mim próprio, e quando o sangue escapar-me, vai-se todo o cabedal de filosofia. Quando todos se juntam um mal maior se propaga ou se concentra. Como a planta do formigueiro no dicionário do Aurélio: “árvore da família das poligonáceas (Triplaris nolitangera), de inflorescência dióica em panículas aveludadas e pilosas, cujo fruto é aquênio, e cujas flores e cálice, por causa dos pêlos que contêm, produzem, quando em contato com a pele, coceira e ardor semelhante à picada da formiga; formigueira, pau-de-formiga”.
 

X

Quando penso sobre nós, uma decepção terrível me acomete. Uma melancolia se infiltra, mas um tédio ensurdecedor me invade, e nada mais resta para os outros. Pior do que um saco vazio, pois este se reconhece despovoado. E não se trata de algo despojado no sentido franciscano, trata-se de uma avalanche que recalca todas as manifestações. Trata-se de um buraco negro.

Se a lua nasce por detrás das arcadas dos edifícios, mais parece um ciclo repetitivo e sem maiores singularidades. As estrelas lá no alto se repetem como sempre fizeram as luzes da cidade no seu movimento de acender-se e apagar-se. Quando o dia nasce, mais um dia, a mera repetição deste tédio dual: a noite e o dia. Os carros ensandecidos no rush das vias urbanas, os ônibus transbordando corpos com pêndulos ao sabor das acelerações. Tanto faz as sete, as nove e as onze horas, pois daí em diante o sol repete o mesmo passo do dia anterior e deita-se no horizonte. Luz e escuro, claro e noite, sois apenas uma repetição sem originalidades.

Ao sabor médico direis, talvez, um sinal de depressão. Ao sabor humano reconhecerás sofrimento. Ao sabor dos ventos direis movimento, mas ao gosto do julgamento aconselharás uma roleta russa. Nenhuma e nem outra te escapará do ciclo dual das noites e dos dias, pois fora desse percurso a vida não há. Não havendo vida, não existirão palavras e sem estas as respectivas letras expressivas.

Na décima ordem, fiz-me alfabeto romano. Na décima numeração fez-se algarismo arábico, na décima lei fez-se o mito mosaico, mas na décima palavra eu ainda encontrei o sistema binário. A ele prisioneiro permaneci. E assim ficaria, se das brumas da embriaguez um telefone me recorda: és prisioneiro da dualidade dia e noite. Um telefone me chama. É algo novo, um telefone me chama.

 

PENUMBRA
 

Nem claro e nem escuro. Pode ser um estado transitório, mas nunca se sabe o destino quando nele se encontra. Mas uma voz do outro lado da ligação se põe fora do novelo em me encontrava com estas palavras:

- Doutor José? Sou eu! Tô escondido! Tô Baleado! É o Luiz Carlos! O Pitico! Do Escondidinho!

Luiz Carlos Prestes veio-me o nome revolucionário. Algo maior do que os nossos pequenos cantos de apartamentos, do que nossas prateleiras de tijolos repletas de livros estruturalistas e existencialistas, da revista da Civilização Brasileira, da revista da Vozes, dos textos de sociologia e antropologia. Prestes o herói de um século de sangue, de um século de revolução. Quando no máximo fomos mochileiros na cordilheira dos Andes, procurando encontrar os caminhos de Tché Guerava e nos reduzimos a contar a aventura aos colegas de faculdade, quando o supremo desafio foi dormir numa cabana indígena em Copacabana, na beira do lago Titicaca. Por quais caminhos andei, na busca a meia luz em torno do nome Luiz Carlos.

- Doutor? Ë o Pitico!

 

 

 

 

 

22.09.2005