José do Vale Pinheiro Feitosa
É guerra meu
irmão.
Ele
1.
Uma tática de
guerra.
Manobra
corriqueira. Quantas vezes a realizara.
É tão parte de
sua vida como o é, a da agulha na máquina da costureira. O trocador
e o motorista na condução. O balconista, o pedreiro, o encanador, o
lavador de carros. Como faz a doméstica todo dia na faxina, fogão e
lavanderia.
Na espreita,
preparando uma cilada para vagabundo.
2.
Os seus trinta e
três anos de polícia, afinal, fora desta vida contra bandido. Gosta
mesmo é do serviço de rua. Come o topado para se aposentar longe do
distrito. No dia seguinte, nunca mais falará com certos colegas.
Detesta
puxa-saco e prefere esta vida de detetive do que sub-treco de
qualquer coisa. Prefere a pura ação, longe do papelório, do
picareta, mau-caráter e dos covardes. Longe do degenerado na mesa de
chefia, atrás da plaqueta de palavras compostas, que identifica, na
realidade, o quanto já se vendeu para os esquemas.
3.
Por isso, com
toda esta carga de sujeira, na luta contra vagabundo e os
mau-caracteres, ele ainda está, neste momento, mais de três da
madrugada, num beco da Favela do Escondidinho.
Ela
1.
Pregando o mesmo
botão na roupa como faz deste que se casou e saiu da casa dos pais
para ir morar com ele.
2.
Teve uma vida
tranqüila, no Quintino, era como uma vida de cidade do interior.
Inocente,
pacífica e sonhadora. Sempre soube da ruindade do mundo. Desde
criança que não é chegada a ilusões, mas a escola, a praça, a
brincadeira nas ruas, o cinema no Méier e na Tijuca, as tardes
assistindo programas de televisão.
Os holofotes
sobre as debutantes, no braço do pai entrando no salão do Tijuca
Tênis Clube. Não são ilusões, são boas memórias do passado.
Ele
1.
Refaz,
mentalmente, a cobertura dos pontos de fuga do vagabundo.
2.
Gosta da P2. O
serviço é de investigação, desafiante e quando se decide o desfecho
é rápido e limpo. Levar uma grana, de vez em quando, num aperto de
bandido, não se constitui nem na migalha que o pessoal do distrito
faz. Na P2 os companheiros são solidários e não tem esta de passar o
outro para trás.
3.
Puxa o croqui da
operação do bolso da calça e sob um poste de luz, por trás da
esquina, o examina:
4.
Está lá a turma
do PVG identificada nos pontos de espera.
Pê de Paraíba, Vê de Velho, no caso ele e G do Guilherme. Todo mundo
sambado no tempo de polícia. O Eme, de Miranda, lá na lixeira, junto
da entrada do beco do buraco, também conhecido no morro como beco
dos velhacos.
5.
Se o otário
vier pela Rua Rainha Maria da Penha, o Gê deixa que ele passe,
fechando simultaneamente a entrada do beco e a rua. Ele e o Paraíba
completam a armadilha. Caso o pilantra venha pelo beco, o Miranda, o
novato, avisa no walk talk e fecha o beco por baixo.
Ela
1.
Quantas vezes nas missões noturnas dele, ficara com insônia,
procurando se agarrar em qualquer coisa.
2.
Por último se agarra no próprio elemento da sua solidão: a espera.
Está sempre esperando algo. Mesmo quando ele está em casa. A espera
ultrapassou seu objeto criador.
Do efeito do furacão que ele foi em sua vida no bairro do Quintino.
Desceu do bonde na frente do cinema na praça Saens Pena. Como Cyl
Farney ao encontro de Eliane. E foram felizes para sempre.
Se a espera não viesse e substituísse tudo. A espera é um grande
vazio. No momento que é preenchida com a presença do esperado, deixa
de ser espera. Não no caso.
O vazio da espera não mais se foi.
3.
Como foi o furacão lhe apertando com tesão no muro da casa dos pais
dela.
E foi chegando, transformando fantasia em realidade, eriçando
desejos, tomando conta do seu corpo. A maior de todas as surpresas
da vida, como, por exemplo, experimentou ao nascer, deixou a vida de
feto por um novo sabor.
Mais que mamar, saborear, se refrescar ou se agasalhar. Encheu-lhe
as pequenas lacunas da plena vida de adolescente.
Ele
1.
Reexaminar os detalhes é o fator de segurança, definitivo numa
operação.
2.
O símbolo da morte na casa do vagabundo, apontado no croqui da
favela.
As igrejas, as tendas e o posto médico. O Gê fica semi-escondido, um
pouco abaixo do nível da rua, entre a capela católica e o depósito.
De lá ele tem a visão completa da rua e quem a vem subindo não o
enxerga.
De onde está, vê o Guilherme, mas o trecho da rua depois dele, está
fora do ângulo de vista. O Paraíba está nas suas costas, vigiando a
Rua Princesa Solange da Silva, atento à casa do vadio e cobrindo
quem desce da vila esperança.
O morro dorme.
3.
A madrugada vai alta.
Só raramente se ouve um automóvel subindo a rua Barão de Petrópolis.
No rumo do túnel da rua Alice.
Dois detetives da 3ª DP devem estar num carro na curva da Barão de
Petrópolis, em frente à Escadaria, esperando para avisar quando o
Filho da Puta chegar na favela.
4.
Desde das três horas da tarde que se está na cola dele.
Se espalharam em pontos diferentes das saídas do Jacarezinho, até
que ali por volta das duas horas da madrugada os viram pegando o 473
na direção da Saens Pena. Lá ele pega o 416 e desce na rua Estrela
na esquina da Barão de Petrópolis.
Em quarenta minutos chega na favela.
Ela
1.
Outro dia na fila do banco, um destes aposentados do INPS lhe cantou
sem a maior cerimônia.
Pela primeira vez perdera a máscara de mulher bem casada. Mulher com
apenas tesão pelo marido.
No olhos do homem, vira, perfeitamente, o que também queria. Um
calor de tesão, o coração disparado, com vontade de integrar-se ao
feitiço hipnótico. Quase permanecia parada, fitando com demora,
aqueles olhos ardorosos. Descobrira o que ainda havia nela e não
sabia.
A próxima emoção foi o constrangimento. Nunca demonstrara para outro
homem o que os olhos deles viam nela. Ele moço ainda, aposentado,
mas não passando muito dos cinqüenta anos.
Afinal a solidão faz-nos companheiros de nós mesmos.
2.
Uma mulher séria, mas que gosta.
Como uma outra qualquer ela gosta, e ao se descobrir nos olhos dele,
se transforma em cúmplice do desconhecido. Nos últimos vinte anos
nunca, nada, antes, havia penetrado o vazio da espera em que se
transformara.
3.
Chuleando o tecido. Sob uma lâmpada quente de cem watts.
Esperando.
Uma alegria, um bom fim de semana, um bom aluno na escola em que
ensina. Um homem misterioso que ultrapasse os limites da fidelidade
ao polícia.
4.
Com ele tivera um casal de filhos.
Tanto lutara que o rapaz ingressou na carreira bancária no Bradesco
e a filha? Repete a vida dela.
Está noiva de um delegado, com pensão de outra família para pagar.
Que saiba, o marido nunca teve outra.
5.
Mas o furacão passou, como tudo foi passando na vida dela.
O pior é que deixara na passagem um rastro de entulhos.
Restolhos de sua adolescência e do plano histórica da sua origem
familiar.
Ele
1.
O bip do walk talk toca.
Gê avisa.
Sinaliza com as mãos para o Pê. Um pedaço de jornal arrastado pelo
vento lhe assusta.
Tudo tem risco.
2.
Um teco é sempre uma incerteza.
Ninguém sabe aonde se alojará.
Um armadilha sempre pode desarmar na tua mão.
Olha o Paraíba e faz sinal para que se atente à casa da família do
delinqüente. A avó dele, a mãe, um sobrinho, uma irmã e outro
marginal, o Paulo, irmão do patife. Este Paulo já chegou no morro e
está dormindo.
É covarde e
perverso.
3.
A espera da tocaia tem temperatura certa para cada momento.
Há uma variação de calores e frios e uma alternância entre eles.
Sempre que o alvo se aproxima, em volta da espera fica quente. Por
isso gotas de suor se formam lentamente na testa.
De onde está observa o Gê se colando na parede da igreja, para ficar
mais escondido.
4.
Não escuta, mas interiormente soam os passos do malandro subindo o
morro.
Estão no compasso do coração, tocam na cabeça como estivesse com um
estetoscópio de médico, simultaneamente ouvindo a rua e o seu
próprio peito.
Nervoso, faz mais um sinal de atenção para o Paraíba.
Ela
1.
O Encantado ainda tem disso.
Terreiros remanescentes aonde, ainda, cantam galos.
O anúncio das matinas, mais uma espera. Do sol, do amanhecer. E
quando chegar, teme o que ele vai revelar. A espera e o temor do
futuro.
Da notícia ruim.
2.
Quem vive com polícia é assim.
O furacão trouxe a surpresa, mas seus ventos também trouxeram a
insegurança, que é viver com um agente de segurança. Desconhecendo
se pode contar com ele no futuro. Tudo pode se acabar com uma
simples notícia: foi alvejado num tiroteio.
Vítima de uma cilada.
3.
Seus trinta e oito anos estão revelando fraquezas.
A vista começa a ficar cansada, a costura de vez em quando fica fora
de foco.
A ponta da agulha espreita.
4.
A vida mudou de rumo.
O passado no Quintino, o sonho de um futuro cinematográfico, com um
lindo homem.
Ele veio e foi mudando o foco da vida. Depois que trepou com ele,
ficou viciada. Não sabia ficar nem um minuto longe.
Coladinha ao seu calor.
5.
A vida tinha nele um foco, que oferece feito uma fonte.
Dele mourejava todos os sinais de alegria e energia da vida. Quando
chegava, tudo em volta ficava iluminado e cheio de vigor. Tudo se
movimentava com algum sentido, muita vitalidade, arrebatando o que
estivesse em volta.
Tudo em volta se ampliava em razão de sua presença.
6.
Sem contar os apalpos no muro.
O rasgo de uma energia feito ereção de forças interiores, irrompendo
na superfície e se aprofundando nela.
Até que no nascimento do filho a ausência dele se transformou em
espera e a verdadeira face da vida futura se revelou.
Aguardando algo acontecer.
Ele
1.
No momento do desfecho não se pensa nos
por quês.
Todo o pensamento é como se fará. Por tua iniciativa ou pela
iniciativa do demônio.
Teu corpo fechado ou aberto para as maldades do inimigo. E numa
cilada tudo pode se precipitar de um modo diferente.
Por tudo que faças de proteção, ainda continuas como folha de papel
ao sabor dos ventos.
2.
Mais de trinta anos de serviço e se vive todas as situações.
É uma vantagem, mas o desconhecido continua à frente. Por descuido
ou ignorância de como o elemento vai se comportar no embate, o
polícia, não deve dar ao canalha a menor possibilidade de reação.
Uma azeitona quente na testa e tudo de repente se acaba.
Nem há tempo sequer de sentir dor.
Ela
1.
A agulha descuidada penetra com dor na ponta do dedo indicador.
Aperta-o para que o sangue pare e em seguida chupa o dedo.
Na espinha um desconforto da dor fina, que sentida na ponta digital,
na verdade se revela na coluna.
É o cansaço da espera.
2.
No relógio de parede da sala, são três horas e quarenta minutos.
Não tem isso de toda mulher. Não adianta fazer a pergunta, embora
nunca a deixasse de fazer: a que horas tu voltas? Ele nunca
respondeu.
Balbucia qualquer coisa, inicia um assunto distinto e se vai.
Arrumando a arma na cintura, guardando a carteira de dinheiro.
Ele não sabe, mas esta mudez
explicatória, só amplia o vazio
interior. É o silêncio dele uma espécie de bomba de vácuo.
O vazio da espera.
Ele
1.
Um rato atravessa o beco da favela e penetra embaixo da laje de um
barraco.
Passa através da vala negra que desce o morro de cima a baixo. Por
entre pedaços de armação de cimento, lixo variado de papeis,
plásticos, alumínio, flandres...
Supostamente está numa rua, mas tudo não passa de um beco estreito,
que mal dar para passar um carrinho de mão ou suportar o cruzamento
de três pessoas. São becos na maioria da largura de uma calçada de
vilas do subúrbio.
Impróprios para um tiroteio.
Poucos abrigos para se posicionar, ricocheteio freqüente das balas.
Pisos irregulares, com buracos, escadas, rampas úmidas, declives
agudos. Pirambeiras de vez em quando.
Um cenário muito desfavorável para a ação.
2.
O Gê se mete por baixo da laje de piso da igreja.
O canalha aparecerá a qualquer momento.
A ação vai se desencadear.
Ela
1.
O galo, no bairro do Encantado, canta mais uma vez.
Vai na geladeira beber um copo d’água bem gelada. Fecha a porta do
banheiro com muito cuidado.
Ao verter a urina, dá-se um movimento ao contrário.
Tudo que é esperado lhe volta.
2.
Não houve um vazio de tesão.
Houve um vazio de ausência definitiva. Vazio da materialidade da
presença do corpo dele.
Houve excesso de uma ausência perigosa, cheia de presságios e medos
do futuro. Quando ele vem com tesão, tudo volta, mas a próxima
saída, coloca a vida no mesmo plano vazio.
Com sempre em missões, o vazio é permanente.
3.
Não adiantou o esforço do pai com os deputados amigos dele.
Tinha toda a chance de ficar numa boa, se não fosse o próprio
delegado titular, pelo menos era um assistente. O distrito está
cheio deles. Não custava nada ele aproveitar as chances que o pai
poderia abrir na polícia.
Nada adiantou, ele tem o vício das ruas, do perigo, do tiro e das
armadilhas.
Ele
1.
No momento do chumbo quente tem que enxergar o
bandido.
Assim que o vadio surge no campo de visão, já sabe o que vai
acontecer.
Não sabe explicar a sua ciência. Mas agora mesmo vai divisar o
vagabundo e imediatamente saber o que lhe acontecerá na ação. É como
um dom da natureza.
Tem de encarar o marginal. Encontrar a estampa do bicho.
Para revelar o seu próprio futuro.
2.
O pilantra está do outro lado.
Sempre esteve.
Já ele, que nasceu aqui nesta favela, desde criança, ficou do lado
contrário ao dos canalhas. E por isso está aqui em mais uma ação de
rotina.
No mesmo lugar que nasceu e se criou. Hoje esta meninada se lhe
encontrar não o reconhecerá. Mas se ouvirem falar do seu nome, vão
se cagar todinho.
O Portuguesinho, com ficou conhecido no morro, assusta ainda hoje.
Assusta pela valentia e coragem. A fonte do medo dos patifes, é que
nele não tem covardia.
Só tem ação.
3.
E no distrito só puxa-saco e mau-caráter. Por isso a P2 mete medo em
malandro.
Vagabundo sabe que ela não vem para brincar.
Ela
1.
Sede aplacada, bexiga esvaziada, retoma a costura.
Os panos.
Os tapetes do Tijuca Tênis Clube, arrasadora, uma princesa, invejada
pelas concorrentes e adorada pelos rapazes. Muitos colegas do São
José. Todo dia o pai, ao sair de casa para o consultório
odontológico dele na Saens Pena, a levava para o colégio.
No final das aulas, feliz com a vida social da Tijuca e alegre por
voltar para o seu doce Quintino, pegava a condução na Praça.
2.
Desde o ginásio, depois na escola Normal, sabia.
O príncipe encantado iria surgir, de repente. Trazendo um
encantamento específico para ela. Ignorando todos os obstáculos.
No intenso movimento da Saens Pena.
3.
Teve muitas dúvidas sobre vários namorados, pelo menos com dois
quase concluía que eram os verdadeiros príncipes encantados.
Mas desde o momento, que tirou o pé do estribo do bonde, atravessou
a rua e veio para a fila do cinema para comprar ingresso, soube.
Era o furacão da sua vida.
Ele
1.
Surge.
Um homem.
Baixo, atarracado, gordo, subindo, lento, o morro. Muito diferente
do vagabundo.
Gê se esconde por completo, e ele dá sinal para o Paraíba.
Em seguida se dirige na direção de Pê e ambos se escondem na
escadaria de acesso à Vila Esperança. Por trás da casa de Seu
Antônio Preto, aguardam a aproximação do homem.
Se o homem vier para a vila esperança, terão que imobilizá-lo até a
ação terminar. Não vai ser bom para ele.
Se for um dos velhos vai reconhecê-lo e espalhar no morro. Ele só
subiu ao morro porque era tarde e dificilmente encontraria alguém do
tempo antigo.
Mas não podia ficar desmoralizado por um babaca menor.
2.
O vagabundo havia lhe passado a perna em mais de oitenta pila.
Toda a turma do PVG e o delegado da terceira DP foram feitos de
otários pelo marginal. Tinha que lhes entregar a grana do acordo com
o pessoal do Querosene. O sacana era o avião. Inventou um assalto
para desviar a verba.
Prá comprar pó.
Ela
1.
Uma lufada de vento entra pela janela de casa.
O som deixado por ela nas folhas das árvores em volta, trás um
toque. Uma mistura de clima e ação de características imemoriais.
É o som de todas as madrugadas que os ouvidos humanos captaram desde
a sua mais remota história. O som de folhas tangidas pelo vento,
quando mais nada em volta participa do coreto barulhento de uma
grande cidade.
Só ela e o vento. Ambos, num estado indefinido, na madrugada.
Nem dia e nem noite.
2.
Como tem sido a sua vida.
Uma espera, uma fase de transição que nunca termina. A transição
para os braços dele, para o despertar da mulher nela.
A transição para o apartamento que o pai lhe dera na Tijuca e ele
nunca foi morar. Está, ainda hoje, alugado barato.
Os dois ainda no Encantado.
3.
Os dois e seus frutos, todos felizes na piscina do Tijuca Tênis
Clube.
Ilusão.
Ele nunca foi porque não topa com o tipo de gente que freqüenta o
clube. A luta por uma escola particular para os filhos e ele
resistiu na Escola Pública em que ensina, ela sabe das deficiências.
Que chance as crianças teriam no futuro?
Ele
1.
Passa o homem.
Pelo jeitão, ele reconhece ser o Félix, o presidente da Associação
de Moradores e irmão do Luciano, que é da Polícia Civil e segurança
do Roberto Marinho da Globo.
Se promete nunca mais vir em outra missão ali no morro.
O pai ainda mora lá e pode ser vítima de uma covardia.
2.
Veio porque este
filho da puta levou o dele.
O dele ninguém leva.
Está chegando ao fim desta vida de polícia e tem uma poupança para
organizar num futuro muito próximo.
Salário de detetive aposentado, não dá nem para as roupas da mulher.
3.
Vão tomar a mercadoria que o
meliante comprou com a grana deles e
lhe dar uma boa lição.
Vagabundo vai aprender a regra do cão.
O que é dele é deles, o que é dos outros, vão investigar.
Não pode dar mole, todo otário quer ter seu dia de glória. Todo
morro da terceira RA tem que saber com quem Pitico se meteu.
E levou o troco.
Ela
1.
Pai é para brigar com os erros e desvios dos filhos.
O dela tinha o projeto de casá-la com um médico, dentista, advogado
ou engenheiro.
Um dia, no jardim de casa no Quintino, esperava o furacão chegar e o
pai lhe dissera palavras marcantes.
Polícia caça, mata e morre. A sua personalidade é formada por
inimigos e elementos de luta. Passa muito próximo da marginalidade e
nas suas roupas respingam a sujeira. Costumam lavar a roupa suja em
casa e na rua. Os vizinhos os vê com desconfiança, a sociedade com
temor, o bandido como inimigo e os poderosos como instrumentos de
suas vontades. Ser mulher de polícia é muito difícil.
Ele
1.
Retornaram ao ponto de espreita.
O vagabundo está demorando.
Nestas horas a condução fica muito rala. O
bandido deve está
esperando o 416 na Saens Pena. Não vem de taxi, pois motorista
nenhum pega um negão daquele até boca de favela. Só lhe restam as
canelas ou o mercedes.
E aparecer na sua frente, cansado da subida.
2.
Conhece a avó e a mãe do
filho da puta.
O pai morreu de cachaça. A irmã vive com Alcides, preso no galpão da
quinta e ainda tem uma boca dele para alimentar. A mãe, dona Maria,
é uma negra com cara de africano. Veio direto das plantações de café
para os morros do Rio. Ela parece uma tola. Não dá notícia dos atos
dos filhos. A avó reza diariamente na Assembléia de Deus e grita por
Aleluia como se a princesa Isabel não tivesse feito o que fez.
Tem o ranço de escravo.
Ela
1.
O mundo não é feito de ilusão.
A matéria da vida é a decepção, a perda ou o irrealizado. Pelo menos
no seu caso. Mas se um erro houve, este não foi a sua escolha.
Foi a classe média com seus mitos que lhe arrebataram para um setor
ilusório. Onde as luzes brilham, os espelhos reproduzem, a fantasia
abunda, a máscara é necessidade e a vida uma ficção de romance
barato. Onde a tradição é lastro, a família passaporte e o futuro
uma malha de amigos do pai.
Foi na classe média que a espera se iniciou.
2.
O furacão e sua tesão.
Seu destemor e vigor físico, parecia conduzi-la para um patamar
acima da plataforma em que estava. A plataforma do prazer físico e
psíquico.
A transportou, mas a deixou lá sozinha. De vez em quando a visita.
Tem peças da volta, mas o corpo inteiro jamais ficou.
Ele
1.
O latido dos cães, na madrugada do morro, não é um detalhe.
É a própria natureza das coisas.
Sem o cão vadio, o gato insinuante, o porco chafurdando a vala negra
e os ratos atacando e se escondendo, não haveria favela.
Com gente existem os bichos.
2.
Isso o pai lhe disse, desde que tomou conta de si mesmo.
O pai que abandonou uma vida miserável em Portugal, por outra
igualmente difícil no Brasil. Quando chegou na favela era a década
de quarenta, estes terrenos eram dos Alemães.
A Vila Esperança, que está às suas costas, era, no começo da favela,
uma vacaria. Os mais velhos ainda chamam o lugar por este nome.
Poucos moravam aqui. Seu Zé Branco lá perto da Gomes Lopes, outros
paraíbas espalhados por aí, meia dúzia de capixabas e de mineiros.
A mãe é uma mulata do estado do Rio. Veio de Itaperuna onde
trabalhava numa fazenda.
Ele ainda está ali recordando a saga familiar.
Ela
1.
O badalo do relógio de parede da cozinha.
Repete os toques. São quatros horas da madrugada.
Estampidos distantes assustam. É o canto noturno das favelas do Rio.
Os marginais se destruindo e o relógio marcando o tempo.
Do povo decadente dos morros.
2.
Trapaceiros.
Perigosos.
Malha de doenças da ignorância, da sujeira, da preguiça. Karma dos
vencidos. Indiferentes ao lixo e a vala negra, mal cheirosa,
impassível em frente de suas portas, por baixo de suas cozinhas
fétidas.
Os cômodos apertados da promiscuidade.
Vidas pastosas que se ligam em explosões de ódio e paixão.
Ao contrário do povo da Barra da Tijuca.
Os imergentes da sociedade carioca.
3.
Quem sabe?
Nunca soube, se a essa hora ele não estará em luta com algum
marginal do morro. Porque subir em morro ela prefere não fazer, só
para visitar o pai dele e assim mesmo por pouco tempo.
O morro mete medo.
Tem pavor de sua violência. Fez um acordo com ele. Não o
pressionaria para ir trabalhar num distrito, mas nunca subiria ao
morro para uma ação policial.
O morro sempre fora seu amor e ódio.
Ele
1.
Que venha.
Agora é bandido.
Lembra-se do molequinho na Princesa Solange da Silva. Frágil,
magrinho e medroso. Isto ele continua até hoje.
Um covarde perigoso.
Mas era uma criança soltando pipa na laje, correndo nos becos,
subindo e descendo escada. Indo e voltando para o Colégio João
Alfredo. Sua mochila de material escolar, sua farda puída e
encardida. Subindo a Barão de Petrópolis com os livros numa mão e a
pipa na outra.
Mais na frente o viu com pedras na mão enfrentando uns garotos da
chácara. O policial se lembra de seu tempo de enfrentar otário no
morro. Recorda-se do molequinho se aproximando e, com o maior
respeito, tentava imitá-lo com os seus gestos.
Agora é outra coisa.
2.
Na festa de escolha da Rainha do Morro.
Quando a Solange foi eleita, princesa e Penha rainha, ele havia
expulsado de uma vez só, cinco babacas do morro. Todo mundo no maior
esforço pela Solange e os adversários querendo sujar o resultado.
Tinha uma paquera com Solange e grampou os cinco. Primeiro pegou o
Zé Geraldo no terreno da madame.
É lá que funciona o bloco de carnaval e onde realizam-se as festas
do morro.
Ela
1.
Quem vive da espera, vive do passado.
Mas o passado dele nunca foi assunto seu. Ele mesmo reafirma, até
hoje, que a vida começou quando a conheceu.
Foi um espécie de começo virtual.
2.
Um jovem detetive.
Lindo, todas as meninas que estavam na fila de cinema suspiraram por
ele. Olhos verdes, cabelos negros, lisos e sedosos, era um Elvis
Presley mestiço.
Gozado, nem naquela concorrência toda teve a menor dúvida de que ele
era dela. Outras poderiam pensar que um gato daquele seria muita
areia para o caminhãozinho delas, mas jamais duvidou que o seu
cacife era do tamanho do dele.
E foi a força de acreditar na fantasia classe média, que o fez
segui-la como encantado. Jamais lhe deu uma cantada. Em momento
algum pediu para namorar.
Não esperou nadinha.
3.
Veio descendo do Bonde, distraído tirando dinheiro da carteira.
Olhou para o fim da fila. Mas desistiu no mesmo ato, assim que a viu
já próximo da bilheteria. Chegou, não perguntou sequer o seu nome.
Falando com intimidade de conhecidos de milênios, tomou vaga ao seu
lado, pagou-lhe o ingresso e juntos foram para entrada. Não se
lembra do momento, mas quando se deu conta estava de mãos dadas com
ele.
Quando a sessão terminou saíram abraçados.
Menos de uma semana estavam namorando, formalmente, no jardim de
casa.
Ele
1.
Nunca se deve respeitar
marginal.
Vagabundo valente é bom para outro otário, para vítima da guerra do
pó.
A vadio covarde não se deve dá as costas e nem perdoar nada.
Bandido
bom é bandido morto. Sempre surgirá um canalha em algum lugar e o
polícia sempre será uma necessidade.
Não tem jeito para
patife. Só se acabassem o dinheiro. Como o
dinheiro não se acabará nunca...
Emprego de polícia sempre existirá.
2.
Fazem parte das desgraças necessárias para a sociedade.
Como os médicos em função das doenças, os coveiros em razão das
mortes e os padres por conta dos pecados.
Mas bandido é bandido e polícia é polícia. Nunca se deve confundir
os dois.
Mesmo que sejam faces de uma mesma moeda. Não existe nada entre ele
e o otário com quem ajustarão contas.
Ele é ele e o outro é o outro.
Ela
1.
Alvo do desejo.
Outro dia, passando através da Casa Mattos da tijuca, um
negão da
segurança, falou em tom que ela ouvisse: coroa gostosa.
Quando tudo parece passado, uma frase dessa transporta para o
presente possibilidades esquecidas. De repente sente-se em campo
aberto. Não é apenas um ponto no qual o turbilhão do furacão gira. É
um móvel que desloca olhares.
Esta capacidade germina, cresce e frutifica em plena aridez do
vazio. Olhar-se no espelho e não apenas ver um dilúvio de rugas,
desabamentos, erosões da superfície.
Deitar-se e, na transição entre vigília e sonho, dimensionar o
vazio. Mas compreender que até mesmo a sua imensidão tem limites.
O vazio é um recipiente de vácuo, de frágil vidro, no interior da
pressão atmosférica.
2.
O desejo revelado em voz alta.
Uma frase de contato, o homem se declarando. Teve nela o efeito de
uma chegada. Um efeito de preenchimento. Uma dose de corpo em
movimento.
Como um plug na tomada de energia.
O negrão a fez ferver.
3.
Recorda de tal enquanto se lava.
Sobre o bidê.
Uma saliência, desavergonhada, sobre sua xoxota. Os dedos lhe
apertando, lhe espremendo, lhe revelando.
Ficou tão quente que até envergonhou-se de abrir-se da forma que
fez. Como tudo no Furacão, foi chegando, se encostando e penetrando.
No muro do jardim da casa dos seus pais ela gozou pela primeira vez.
Depois outras infindáveis. Todo santo dia aquele muro testemunhou os
mesmos suspiros de prazer.
O que mais a excitava era a tesão dele.
E a dela ecoava sob os galhos da roseira.
4.
Indicava os modos como se pentear.
E todo penteado o afogeava ainda mais. Que roupas deveria usar, sem
calcinha ir para o muro. Imaginem por quais sentimentos andaram. Até
mesmo quando ele, com olhar guloso e voz desesperada de paixão,
começou a lhe proibir de sair sozinha, com determinadas roupas.
Seu homem não queria nenhuma sobra para homem algum. Nunca foi tão
dele.
Coroa gostosa foi o seu muro de jardim dos trinta e oito anos.
E dos vinte anos de casada.
Ele
1.
O Guilherme agita o braço esquerdo.
Ele o vê.
O Gê até esqueceu de apertar o bip do aparelho. Era evidente a sua
tensão.
Com o coração disparado, feito um novato qualquer, jogou um maço de
cigarros no Paraíba. Sentara-se no batente de um barraco e
cochilara. Pê levantou-se assustado e ele lhe faz sinal de silêncio.
Demonstrou-lhe que dessa vez era o Pitico.
O momento chegara.
O comportamento nervoso do Gê que praticamente se enfiara sob a laje
da igreja, identificava que só poderia ser o traidor. Ladrão sem
vergonha, balbucia para ele mesmo.
Raiva, modo eficiente de espantar cansaço, sono e lerdeza das longas
horas em vigília.
2.
Estimular-se através do ódio ao
marginal e suas canalhices.
No momento do desfecho todos os nervos devem estar ligados. Todos os
feixes de músculos em tensão para disparar o movimento.
A arma na mão já está destravada.
Bate na capanga para sentir o volume das caixas de bala.
Ela
1.
Isto não se comenta e nem se confessa.
A gente faz na gente mesmo.
É uma sensualidade de você consigo mesmo.
Por onde o Negão da Casa Mattos entra e faz dela o que mais quer.
Exercício de preenchimento do vazio.
2.
Uma mão sobre o púbis.
No monte de vênus. Os dedos afoitos nas bordas dos grandes lábios.
Suaves.
Com conhecimento de causa. Como só uma mulher sabe.
Uma perfeita coincidência da ação, sobre os pontos de sedução e da
vontade com o realizado.
O Negão baixa nela como um santo no terreiro de macumba.
E atuada vive na cama da madrugada o duplo hermafrodita. Sem
despedidas, separações, abstinências, dependências.
Sem curto circuito.
Uma perfeita harmonia de desejo e umidade.
Aumentando a cada toque, a cada avanço sobre os pequenos lábios.
Extasiando-se nas incursões superiores da vagina.
Molhada, agitada.
Contorcendo-se de prazer sobre a cama.
Ele
1.
Nada de novo.
Os mesmos becos, os mesmos ratos, a mesma abundância de lixo e
esgoto aberto. Poças d’água na vala negra que não corre, a favela
dorme.
Poucas águas servidas.
2.
A expectativa é a espera em estado agudo.
Todo o teu corpo funcionando como as turbinas de uma avião no
momento que vai iniciar o vôo. Ainda parado, mas funcionando em alta
aceleração.
Como se estivesse em velocidade na pista de decolagem.
3.
Interessante, desta vez não sente as pisadas do
espreitado subindo a
rua.
Sente que está completamente separado do
bandido. Apreensivo, sempre
evita isso em qualquer ação.
O Polícia tem que trazer o
vagabundo para dentro de si. Ser o
próprio malandro, para antecipar que passos dará.
Não gosta desta distância em relação ao
canalha. Não sente nada
dele.
Esta dicotomia é perigosa.
Jamais se pode ser um protagonista da ação. Muito menos um
observador impassível. Estes personagens se perdem no enredo.
O polícia tem que se fundir no bandido.
Ela
1.
Surpreende-se com o volume dos seus próprios sussurros de prazer.
A janela aberta do quarto pode filtrar algum ruído para os vizinhos
do apartamento de cima. Mas pouco está ligando para o exterior.
O Negão nela, ela no Negão, ela o Negão, o Negão ela.
Fecha um círculo perfeito nas suas circunstâncias.
2.
Deslizando sem atritos sobre o clitóris.
Com a perfeição de seus próprios dedos, sabedores da suavidade da
abordagem e da voluptuosidade necessária ao momento de orgasmo. E
não adianta dispersar concentração. Pode prolongar o prazer por
minutos a fio.
Por que não mais um reinício na direção de um segundo orgasmo.
Lentamente nas faces internas das coxas.
3.
As luzes do quarto perfeitamente apagadas.
O lusco-fusco das luzes da rua. Ela na cama e o Negão nela.
O Negão insaciável.
Ele
1.
Uma onda de calor domina o ambiente em volta.
Não consegue sequer espiar de soslaio para o Paraíba às suas costas.
Tudo se concentra na rua. O Gê espremido sob uma laje, pela primeira
vez ouve os passos do Luís Carlos.
O bandidinho está chegando para cair na armadilha. Mas os passos
estão lá fora na distância.
Não batem na cabeça dele.
O PVG é uma irmandade de um por todos.
Mas como nunca sente a solidão de cada um nesta ação.
2.
No inevitável do chumbo quente.
No repente de seu efeito, estragando o que pode ser reparado, mas
deixando seqüelas incapacitantes em outros e a irreparável morte em
muitos. A perna e braço esquerdos do vagabundo já começam se
insinuando na curva lá da rua abaixo.
Seus olhos não se despregam do Guilherme.
Ele se mexe muito quando é para estar absolutamente imobilizado e
silencioso.
Ela
1.
Querer.
Saber que gosta e realizar. Uma das supremacias do livre arbítrio de
cada um.
Se decidir a fazer e concretizar. Uma seqüência de atos perfeitos.
Pode redundar em remorsos. Sensação de pecado.
Em práticas desviantes. Corrupção da sanidade mental.
Pode.
Mas ela gosta. E mais uma vez faz.
Suavemente nas dobras das coxas.
Querendo mais.
2.
No que a vida de casada não tem sido pródiga, se descobriu fértil.
Em fantasia.
Simulações e realizações.
É aí que está a novidade.
3.
A realização.
O prazer que sente é real. Seu corpo revela este estado
integralmente.
Quase gritando de prazer entre os lençóis.
Num crescente de fantasia. Fruto do concreto dos seus dedos.
Originadas nos pontos erógenos. Das práticas eróticas.
Na solidez do corpo satisfeito, das fantasias rotineiras, argumentos
para mais uma vez realizar.
Ele
1.
Porra!!!
Balbucia com raiva do Gê.
Um veterano fazendo uma merda desta no momento da ação.
Já tinha que
está estático há muito tempo.
Vê a metade esquerda do corpo de quem vem.
Não tem mais nenhuma dúvida é o canalha.
Justamente aí o Gê resolve pôr a cabeça para fora da laje. Ainda não
dá para o vagabundo vê-lo, mas o movimento pode gerar ruído e o
filho da puta se afastar da armadilha.
Merda!!!
Ele parou.
Ela
1.
O relógio da cozinha toca uma única vez.
São quatro e meia da madrugada.
Estes momentos nunca parecem se bastar. A vontade é continuar
sempre. Cada vez coçando mais, roçando e gemendo.
Cada vez mais se bastando a si mesma.
2.
No mínimo vale como um exercício físico, liberando endofinas.
Vai
assim, resolvendo desejos insatisfeitos.
Sem traição à fidelidade matrimonial, mas sabendo que gosta e
realiza o que gosta.
Num ponto sem inimigos, adversos, contraditos.
Um campo de preposições e conjugações.
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