José do Vale Pinheiro Feitosa
Eis o nosso João de Barros
-
Ramo lá macho véi! Ramo João! E cuma é
mermo a histora? Há! Há! Há! - Tu achou o peba dentro do bueiro mermo? Há! Há! Há!
- Há! Há! Hi! Hi!
- Sim sin-ô! Foi dentro do bueiro
mermo queu achei! Foi lá mermo!
- Há! Há! Há! - Cuma é qui pode,
João? O bicho tava preso onte de noite dentro do camburão fundo e
cum uma tábua presa por uma preda? Nem dava pru modi o bicho se
assubir e ném pru modi sair pela boca! João! João! Tu ti apruma,
caba véi!
- E tu num viu quano eu peguei o
peba no bueiro?
- Nóis viu, João! Isso nós viu! O
qui nós num sabe é cuma o bicho saiu de dentro dum tambô de 20
litro! Aina mai cum a boca do tambô fechadin-a .
- E nem eu sei! Num posso dizê
cuma foi! Eu num vi o bicho saino!
- Tá certo João! O peba já vortô pru
lugá dele de novo. Agora, macho, eu arrenego essa tua expricação! É
difici um peba se amocegar nim ferro! Déxa prá lá!
- Há! Há!
- Fi..Fi Fiiii
-Fi
Fi...Fiii...Fi Fi...
I
João de Barros, chapéu
de massa na cabeça, barbicacho longo descendo pelo queixo até quase
a metade do tronco, costeletas grossas pelas laterais do rosto,
tórax largo e braços musculosos, assobia olhando para cima e
balançando lentamente os braços com as mãos enfiadas nos bolsos.
A atitude de João se casa
perfeitamente com o figuraço que ele é. Um perfeito romântico. O
maior cavalheiro que já conheci até hoje nas minhas andanças através
desse sertão nordestino.
Ele é da quarta geração
de agregados de poderosos fazendeiros da região do Cariri. João de
Barros, filho do velho Zé de Barros, irmão de Lavínia, Raimundo e
Rosa, é um camponês pobre que tem por patrimônio uma montanha de
trabalho interminável que já estava lá antes mesmo de começar a
escravidão de índios e negros. No sítio Batateira ele nasceu e,
feito uma brisa da manhã de mês frio, ele se espalha pela redondeza.
Enquanto sua gente pega
pesado no eito, João vive aventuras e flui pela vida através do sol
claro, das sombras escondidas, de paragens de flores cheirosas, do
encanto das meninas, do tibungo na água fresca do poço,
correndo no lombo de animal e comendo as frutas do sítio.
Ainda há poucos dias o vi chupando
uns quinze pés de cana e depois soltando tantos arrotos que
pronunciou todas as vogais duas vezes. Esse sujeito, de fato é
diferente de todas as pessoas que conheço.
II
A tensão aumenta enormemente! Todos
estão com a respiração em suspenso, um suor frio nascendo na testa,
prenuncia um desfecho de embate entre homens de valentia
inigualável. Aí, na sala de projeção do cinema, João de Barros vive
toda a sua fantasia. Ele entra no enredo da ação. Ele é Bill the Kid,
Apolone Cassidy, Durango Kid, Roy Rogers ... é todos os heróis do
filme de cowboy.
Bom desenhista, ele vai retratando
seus cowboys com as armas apontadas, chapéus, cavalos e bandidos.
Tudo isso nos muros das casas e nas paredes do Grupo Escolar. Com um
pedaço de carvão ele faz seu crayon heróico para a execução
de suas fantasias e o testemunho dos passantes.
João de Barros é manso e insinuante.
Mete-se em tudo que acontece; estando-se no seu raio de
deslocamento, lá está o herói. Se, no entanto, o assunto é trabalho,
ele prefere o distanciamento crítico. Nestes assuntos ele é da mesma
opinião dos teóricos da lei das incertezas, não intervir para não
mudar a natureza do objeto estudado.
Se podemos classificá-lo como malandro, não se pode chamá-lo
preguiçoso. Não é destes que vivem deitado, dormindo e a vida
passando. Ele passa o dia pelo mundo à cata do que fazer e do que
comer. Ele vai por aí, sem nenhuma vergonha, abocanhando as coisas
que ficam no seu caminho.
Prima virgem com ele não existe. É
um rei nas jumentas e nas burras. De conversa mansa, vai explorando
os desejos do corpo. Fome ele não passa, arruma uns trocados de
qualquer jeito e, objeto dando sopa é recolhido; o pequeno furto é
sua aptidão. Mas não se abala se é pego. Argumenta, dando um jeito
de amansar as pessoas, sem falar alto e sem exaltar-se.
Ao invés do calo grosso das mãos,
ele folheia gibis sem saber ler bem e assiste a filmes em inglês, só
ouvindo o speak english dos gringos. Agora vá conversar com
ele sobre o assunto, que repete tudo direitinho. Passa horas
contando as histórias dos cinemas, inclusive repetindo os diálogos
dos personagens e estabelecendo a escala de valor de cada um.
João de Barros sonha na vida,
esquecendo-se que a sua era para ser apenas trabalho. É um
cavalheiro em eterna aventura cinematográfica; evolui nos braços das
mocinhas, enfrenta os perigos da vida, luta capa-e-espada com
pedaços de cana, atira com o dedo indicador numa rapidez jamais
atingida pelo mais veloz pistoleiro do oeste. Um aventureiro desses
não vai se abalar porque suspeita-se que tentou surrupiar um peba.
III
- Hé! Hé! Hé! Tu tá dizeno isso
por que num qué me pagá os dez merréis que prometeu prá quem achasse
o peba. Fica inventano banca não, macho! Ramo me dá o dinheiro aí!
Eu tô contano cum esse dinheiro.
- Não sinhô. Tua estóra já foi
acatada e isto já é suficiente pru modi valê cuma tua paga.
- Que é isso macho! Num me
atrapaia não. Tu devia de dizer que num ía dá nada! Mermo assim eu
ía achá o peba prá tu. Num foi pru modi dinheiro não! Mais tu dixe
prá todo mundo que ía dar 10 merréis prá quem achasse o peba e eu
achei ele escondido na boca do bueiro.
- Por quem João? Quem escondeu o
bicho lá?
- Hé! Hé! Ele mermo foi prá lá e
foi eu qui achô ele.
- Munto rápido João. Tu foi
direitim no rumo do peba. Vem cá ! Olhe aí! Tá veno?
- Veno o quê macho?
- Esta preda tapano a boca do
bueiro. Foi arguém qui botô ela pru modi escondê o peba aí. Tu num
tá veno que nós sabe que foi tu mermo que foi direitim pegá o bicho
aí? Tu é mentiroso, né João!
- Tá certo tu num qué pagá mermo
né? Eu me aconsolo cum a quebra da tua promessa. Fi Fi Fiii... Fi Fi.
Fiiii.
- Há! Há! Há!
As pessoas riem de João de Barros
que sai de fininho quando se vê perdido com as evidências
apresentadas pelo opositor. Este, pelo contrário, está furioso com a
argumentação sem fim do malandro. Mas os demais riem gostosamente da
presepada do aventureiro e de sua tremenda cara-da-pau.
João vai para casa. Vai diretinho na
busca de uma bolachas com café. Bebeu o líquido quente calado,
ouvindo a ladainha da mãe sobre a vagabundagem dele. Depois de
terminado, senta-se num banco perto da soleira da porta da frente da
casa e corta um fumo de rolo para um cigarro. Fuma devagar pensando
neste mundão cheio de coisa para fazer e de quanto ele tem coisa prá
construir. E João não tem tempo a perder.
O nosso personagem se levanta do
banco, deve ser mais ou menos umas sete horas da manhã, de um
domingo do mês de julho. Vai no rumo da roça. Não se assuste com a
contradição. Lá é que os capotes de Dona Leonarda fazem seus ninhos.
IV
Pá Pá.Pá..Pá Pá.Pá..Pá Pá Pá...
- Bichinha! Ô Bichinha! Vá vê
quem tá batendo palmas lá na porta da frente!
Pá Pá Pá ..
- Bichinha! Ô Bichinha, quede
você?
Pá Pá Pá - Ô de casa!
- Fernandina, vá ver quem tá lá
fora!
Pá Pá Pá ...
- Diacho! Esta menina nunca está
quando é preciso. Já vai! -
Dona Leonarda se levanta da máquina
de costura com raiva e vai para a porta da casa para ver quem está
batendo palmas.
- Quem é?
- Sou eu, Dona Leonarda!
- Quem? Ah! É você João? O que
você quer? - A senhora
em tom severo reconhece a visita.
- Eu vim vendê uma duza de ovo
prá sin-ó-ra.
- Você já tem galinha João? Desde
quando?
- Foi mãe qui mandô vendê prá sin-ó-ra!
- Sua mãe não. Às cinco horas eu
encontrei com ela na missa e perguntei se tinha ovos para vender e
ela me disse que havia vendido as galinhas por que você está dando
fim nos ovos que elas põem.
- Mais estes são dos bom. É duma
galinha qui comprei.
- Comprou hoje? De manhãzinha bem
cedo e as galinhas já puseram? Pois sua mãe disse que você nunca
teve galinhas, quando perguntei se não haviam ovos das que você
dizia que possuía.
- Mais mãe nunca viu esta
galinha. Quem cuida dela é Zefinha e hoje de manhãzinha o jipe de
seu Aldegundes passô por riba dela. Por isto, eu tô cum disgosto e
vô vendê os ovo que ela pôs.
- Como João? Quer dizer que hoje
no almoço tua mãe vai comer galinha?
- Não, Dona Leonarda! A bicha
ficô toda esbagaçada, musturada cum arêa, bosta de gado e óleo do
jipe que atropelô ela.
- João estes ovos não prestam. Se
são de uma galinha apenas, eles estão muito velho. Eles estão bom é
para chocar.
- Não, Dona Lonarda! - O rapaz se
engasga com os argumentos da senhora e enrola a língua.
- Leonarda, João.
- É mermo. Dona Leonarda. -
Respira fundo, coça a
cabeça e volta a argumentar. - Eu comprei eles das galinha de
Ciço Socó. A senhora pode vê que eles ainda tão com bosta madura.
Elas botaram eles hoje mermo.
- Para que você comprou tantos
ovos?
- Prá dá uma ninhada na minha
galinha. Mais o distino num quis. O homi matou a galinha e arribô no
ôco do mundo, nem percurou sabê de quem era a bicha. Eu tô munto do
disgostoso e vim vendê os ovo prá sin-ó-ra. Eu sei que a sin-ó-ra
compra ovo pru modi vendê na bodega.
- Está certo João. Mostre-me os
ovos. - O rapaz abre um
jornal com os ovos dentro e os apresenta para a senhora.
- João estes ovos não são de
galinha. Estes ovos são é de capote!
- Será qui seu Ciço me inganô?
- Pelo que eu sei o Senhor Cícero
Socó nunca criou capote.
- Mais Dona Lonarda! Tem galinha
que dá ovo deferente, será que as de seu Ciço num são doutra marca?
- Não, João, estes ovos são de capote,
nisto não me engano e tem mais, eles são das capotas do meu quintal.
Tenho notado as capotas agitadas e as ninhadas diminuíram. Os ovos
de capote estão sendo retirados do ninho. Em dois ninhos que eu
venho acompanhando, os ovos estão diminuindo.
- Isto é bicho do mato dona
Leonarda. Pode adeixar queu mato eles ligeirim. Nunca mais vai sumi
ovo das capota da sin-ó-ra.
- Não precisa João! Pode deixar,
eu não quero você rondando os ninhos das capotas.
- Eu tomém tô precisano de
din-ê-ro. Hoji é domingo e vendo a duza beim baratim, por apena
quinze merréis.
- Não, João. Você está vendendo o
que já é meu.
- Não, Dona Leonarda, estes ovo
eu comprei caro. Foi por este mermo valô qui tô vendeno prá sin-ó-ra.
- Tome, João. Eu estou lhe dando
cinco cruzeiros pelo seu trabalho de apanhar os ovos. E esta seja a
última vez que você vai mexer nos ninhos das capotas.
- Dez mirréis, dona Lonara. Eu
fico sastisfeito cum este din-ê-ro
- Pegue oito, João e vá embora
que eu tenho de costurar.
- Mais dona Lonarda! ?
- Leonarda, João. Aprenda a
falar direito.
- Pois é, ao meno nove mirréis.
- Um, dois,...seis, sete, oito.
- Nove Dona Leonarda!
- Está bom. Pegue mais um
cruzeiro.
- Té mais, Dona Lonarda. -
O malandro pega, com satisfação,
as notas de dinheiro.
- Leonarda! Ô João Burro.
V
João de Barros sai satisfeito. Já
tem dinheiro para a sessão das 10:30 horas no Cine Cassino. Falta
arranjar mais algum para assistir à sessão da série de Nyoka, às
13:30 horas. Ele mantém a firme convicção de que também assistirá a
sessão das 16:00 horas no Cine Moderno, emendando com a de 18:00
horas que é o mesmo filme.
Pensativo, andando na direção de um
povoado chamado Acampamento, vai pensando como inteirar os demais
ingressos. Nas vizinhanças da casa grande da Batateira, ele vê Dona
Amélia, a dona do sítio que está acompanhando um plantio de flores
nos jardins. João se dirige diretamente para ela.
- Dona Melha! Ô Dona Melha!
- O que é João? Não venha com
conversa de dinheiro que você ainda não terminou de passar o
ciscador no quintal.
- Ë que a cunha do cabo do bicho
se soltô e num deu tempo de ajeitá, por que Dona Gisélia mandô eu
fazê compra no Crato.
- O quintal tem sujeira demais,
falta muito para terminar.
- Amenhã! Bem cedim eu termino o
seiviço.
- Você não termina, João. O
tanque de lavar roupa, a água da horta, a limpeza do algodão; tudo
serviço que você ganhou o dinheiro e não terminou.
- Fi.Fi. Fiii....Fiiii....Fi. Fi.
João de Barros assobia baixinho e
fica calado ao lado da patroa. No seu jeito manso e insinuante ele
sempre ganha alguns trocados da velha, sem contar os objetos e
animais que ele toma por empréstimo involuntário. Fica ali ao lado
dela, carregando um jarro de flor de um lado para o outro, arrumando
um canteiro com o bico do sapato. Vai derrubando as barreiras
lentamente.
Se já vendeu para Dona Leonarda,
velha sertaneja, calejada, viva e experiente, os ovos da propriedade
dela, é capaz de façanhas maiores. Mesmo com relação a Dona Amélia,
viúva do Coronel Joaquim Pinheiro Bezerra de Menezes, que lhe deixou
fortuna razoável e que é dura de se enganar. Para João de Barros
barreiras não existem, a não ser aquela que ele usa como trampolim
para mergulhar no açude. De um modo insinuante, mas contínuo, tendo
certeza de que é só preciso argumentar, ele termina por completar o
orçamento do domingo.
VI
Volta em casa e troca de camisa. Põe
um chapéu novo e passa a mão nos extratos de Lavínia, sem que ela
note. Vai até o pote e bebe uma caneca de água. Por volta de nove,
sai apressado pela porta da cozinha, de modo furtivo para que
ninguém mais o atrapalhe.
- João prá onde tu vai?
- Vô no Crato.
- E qui hora tu volta?
- Mais tarde mãe. Eu vô passear
lá.
- Se tu chegar de noite eu não
guardo o de comer.
Piti...Piti...
João dá uma cuspida pelo canto da
boca e sai de casa.
Hoje ele está demais. Chapéu preto
com a aba anterior afunilada, discretamente puxado para frente,
cobrindo um pouco o rosto. O barbicacho é todo trançado com fios
dourados. As calças pretas, a camisa quadriculada de tons
avermelhados e brancos, desabotoada na altura do peito. O cinto
largo e com uma fivela desenhada se apresenta na cintura,
destacando-se da camisa cujo pano está passado. Nos pés calça botas
pretas, de salto alto.
João sai para mais uma aventura,
desce pelo caminho de casa e ruma para seu destino, vencendo, com
animação, os três quilômetros que o separam do Cine Cassino.
- Pronde tu vai, João?
- Vô pru cinema, ramo?
- Mamãe num deixa. Que filme tu
vai vê?
- Passar o dia todim veno filme,
pois hoji tem cada um de arromba. Se num fô, eu cego.
- Eu vou assistir o das 16:00
horas.
- Deixô eu ir simbora, que tá na
hora.
VII
São nove horas e trinta minutos.
João de Barros, já está na fila da
bilheteria do Cine Cassino. É o primeiro a comprar o ingresso. Logo
a seguir já está nas grades de entrada junto à urna de ingressos,
esperando a abertura para ter acesso à sala de projeções. Não
examina, com a minúcia que lhe é peculiar, os cartazes das próximas
atrações. Só após a sessão encerrada é que se deliciará com os fatos
passados na tela e com as grandes possibilidades que o futuro
anuncia para as de Breve Neste Cinema.
Ao final da sessão, João de Barros
vai examinar os cartazes de cinema e vê que a programação promete um
filme de Tarzan, dois Cowboys e outros que lhes parecem
capa-e-espada.
O método de leitura dos cartazes
dele é sui generis. Primeiro, ele identifica as figuras e os
letreiros que anunciam os créditos do filme e o dia do lançamento.
Depois, através das fotos e imagens, ele procura identificar os
artistas e o tipo de filme. Finalmente, ele espera que alguma pessoa
leia o cartaz e comente com alguém. As reações das pessoas o ajudam
a formar um juízo, a respeito da qualidade da fita.
Examinado os cartazes, ele vai até a
porta do cinema e do alto da pequena escada fica observando o
movimento da praça Siqueira Campos à sua frente. O sol quente e o
horário, próximo ao almoço, deixam a praça vazia, mas um rapaz da
Batateira que vai passando o avista e vem conversar com ele.
- João, tu vi o filme?
- Vi.
- É do bom?
- Foi o mais mió filme que já vi!
- É mermo?
- É macho. Uma coisa da gota serena.
Assim que eu cumprei o ingresso fui logo prás corrente de entrada
para ser o premeiro da fila. Num tardô e já tava cheim de gente
esperano pru modi entrá. Tomém o filme é bom demais, se chama “Duelo
ao Pô do Sol”, só tem artista do bom e do mió. E tome a chegá gente
e começar a impurrá; mais do meu premêro lugar ninguém me tira. Aí
cum pouco chegou o porteiro cunversando cum dois lanterninhas. O
disgraçado vei na maior banca, aquele fio duma égua, bem devagarim,
coçando o saco, numa cunversa mole, im veiz de abrir a porta pru
modi nós se sentá. Quano ele abriu a corrente, num instantim eu tava
sentano na segunda fila, bem no mei do cinema e pertim da tela. Era
gente correno, saltando em riba das cadeiras, se impurrano e falano
arto. O cinema ficou cheim e era a maior converseira. Tinha gente
berrano, dano recado prás outra, pru modi num se perdê na saída do
cinema. Mais macho, se parecia com gado no currau, todo mundo
mugindo um pru outro. Aí deu o premero sinau. Eu loguim se assentei
e tirei meu chapéu pru mode as pessoas num jogá coisa nele. Vei o
seguno sinau e eu botei as botica dos ói na tela pru modi num perdê
nada. Eu doidim pru modi o filme cumeçar, mais tem aqueles Jornau
cum currida de bicicreta e jogo do Santos. Passô uns trêili de filme
e só tem do bom. Deu um trêili de um filme do Zorro. Vai sê colurido
macho, Zorro cum a máscara, aquela rôpa azul dele, o cavalo bem
branquim e cum Tonto. Mais macho véi, se tu perdê o filme tu tá
disgraçado. Ô filme bom da gota serena! É bom demais rapaiz. Eu vô
vortá outro dia de noite pru modi vê ele de novo.
VIII
Nisso, alguém chama pelo
interlocutor de João e antes mesmo que ele contasse o enredo do
filme, o amigo se despede e marca para continuar a conversa outro
dia. João, que está em pé na porta do cinema, tem sede e assunta o
ambiente para ver por onde vai começar a busca da fonte.
Vai passando do outro lado da praça
um adolescente com um carrinho de picolé e João resolve matar a sede
e a fome com picolé.
- Ei minino cuma é o picolé?
- Quinhentos réis.
- De que é que tem?
- De munta qualidade, o que é que tu
quer?
- Quais são os gosto?
- Baunilha, morango, chocolate...
- O que mais?
- Castanha, leite, banana e
abacate.
- Me dê um de castanha!
- Pegue, me dê o dinheiro.
- Peraí, deixô terminar de chupar
o bicho.
- Mais eu num vou ficá aqui. Eu
vô pru outro lado da praça.
- Aqui tu vai vendê muito mais
picolé, tá na frente do cinema.
- Mais já terminou a sessão e
todo mundo foi prá casa aimoçar.
- Me dê outro picolé de baunilha!
João chupa picolés de todos os
gostos. Aliás falar em chupar é apenas uma força de expressão, pois,
na verdade, ele vai mordendo o gelo do picolé e mastigando-o aos
pedaços. Naquela sua conversa mole e comendo picolé, já deve três
cruzeiros e cinqüenta centavos. O picolezeiro da Sorveteria
Cascatinha vai ficando, pois o freguês é do bom. Mais um pouco o
rapaz pede a João para tomar conta do carrinho e vai urinar num bar
da esquina.
IX
João de Barros, se passando por
vendedor de picolé, atende seu Ramiro Paiva, que vinha da casa do
padre Frederico e, no percurso até casa, tem sede e resolve chupar
um picolé.
- Rapaz, quanto é um picolé?
- Mil réis!
- Este picolé por um cruzeiro não está muito caro, não?
- Não sin-ô, este são especiá, só
vende eles nos dia de domingo.
- Me dê um de chocolate!
Seu Ramiro de fato está com sede e
embalado, pelos elogios de João aos picolés, chupa dois e paga a
conta com uma nota de cinco cruzeiros.
- O sin-ô num tem trocado não. Eu
só tenho nota de dois cruzeiros.
- Deixe-me ver.
O comerciante puxa um bolo de notas
de dinheiro e vai examinando-o, enquanto João mantém na mão direita
uma nota de dois cruzeiros e, na outra, a nota de cinco cruzeiros
que seu Ramiro lhe havia entregue. Finalmente, o homem encontra os
dois cruzeiros trocados e distraidamente o entrega a João. Nesse
momento passa a empregada doméstica chamada Guiomar e faz uma
brincadeira com João. Seu Ramiro se interessa pela beleza da morena
do pé de serra e João, aproveita para envolver o velho com a moça.
Quando a moça sai, João de Barros vai logo lembrando que tem de ir
para o outro lado da praça com o carrinho de picolé. O velho
satisfeito com os encantos da morena vai para casa sem perrceber que
nesta enrolação João havia ficado com cinco cruzeiros dele.
- Tu demorou munto!
- É que aproveitei e comi um
cachorro quente e bebi um guaraná. Apareceu algum freguês?
- Não, num deu ninguém. Tomém tá na
hora do aimoço.
- É mermo, eu vou prá praça da
Sé. Té mais!
O esquecimento do vendedor, aumenta
o lucro de João na venda de picolé. Chupou sete picolés de graça e
ainda apurou sete cruzeiros. Senta-se satisfeito no banco da praça,
sob a sombra de um pé de ficus. Aproveita para observar o vai-e-vem
da cidade, seus carros, suas bicicletas e as pessoas circulando.
Nada mais animador para quem vem das brenhas das roças e florestas.
Passa um senhor e ele pergunta pelas
horas. Eram 12:45 horas.
X
João resolve ir andando para o Cine
Rádio Araripe que fica na rua Nelson Alencar, a três quarteirões da
praça. Lá, quer assistir às 13:30 horas, a mais um capítulo da
série de Nyoka. Logo João está enturmado com a moçada que vende
bombons e chocolates, cigarros a granel, trocam e vendem revistas em
quadrinhos ou, então, negociam pedaços de fitas de cinema,
conseguidos nos cortes e emendas, quando a fita quebra durante a
projeção.
O nosso herói compra várias fitas.
Quer vendê-las mais tarde para José Bezerra que de maneira inventiva
consegue projetá-las na parede com se fosse um projetor de slides.
Zé Bezerra pegou uma lâmpada
elétrica queimada e, com habilidade, retirou todo o miolo dela e a
encheu de água. Fixou a lâmpada no meio de uma caixa de sapatos, fez
uma janela na frente e outra do lado oposto. Então, com um espelho,
reflete a luz solar diretamente para as janelas da caixa de sapato
que, passando através da caixa, se projeta na parede. A imagem da
fita aumenta várias vezes, pois o formato arredondado da lâmpada faz
efeito de uma lente.
João fica olhando os cartazes e vê
que na próxima semana, vai passar um filme de Masciste e logo faz
plano para assistí-lo. Em seguida, vai para a Praça da Estação que
fica próxima e, no Bar Social, come uma gostosa salada de frutas com
uma bola de sorvete e calda de morango por cima.
XI
Volta para a portaria do Cine
Araripe.
- Almirzinho como é que Nyoka vai
sair do perigo da série?
- Difícil, não é? O carro caiu no
abismo e explodiu!
- Os bandidos foram para o local
do desastre e depois saíram satisfeitos. Não tem como sair daquele
perigo.
- Pois não é, rapaz! Até aparece
um corpo de gente pegando fogo dentro do carro.
- Hé! Hé! Hé!
- Olha aí Dedé, João de Barros
está mangando da gente!
- Por que, João? Tu sabe como ela
sai do perigo?
- Premero, ela tem que saí do
perigo, se não nóis num tava aqui assistino a série. Cuma é que nós
vai continuá assistindo a série se Nyoka morrê? Hé! Hé! Senão, ela
deixava de ser a série de Nyoka. Hé! Hé!
- Mais houve outras séries em
que o artista morria, perto do final da série e a de Nyoka só faltam
dois capítulos.
- Num dá certo não, macho. Se
Nyoka morrê, num tem mais nada pru modi contá. A série só tem graça
cum Nyoka!
- Então, João, diga com é que ela
sai daquela enrascada?
- Oxém! Tem munta maneira de saí.
Ela pode sartar do carro, antes dele cair e incendiá no precipiço,
mas...
- Como João? Se dentro do carro o
corpo do motorista pegou fogo e quem vinha dirigindo o carro era
Nyoka?
- É cuma eu ía dizeno e você me
atrapaiou... Nyoka tava dirigindo, quano o carro dos bandido se
aproximou e fechou o carro dela. Assim que ela levou a barruada do
outro carro, aí nóis num sabe o que ela fez enquanto o carro
disgunvernado saiu da pista e se despencô.
- Mas João, na hora que ele pega
fogo a gente vê, nitidamente, Nyoka se incendiando e morrendo no
volante.
- Quer apostá Dedé cuma ela sarta
e eles vão dá um jeito de aparecê outra pessoa morreno no lugar de
Nyoka?
- Viu Almirzinho, como João de
Barros sabe tudo? Ele lê direitinho o que vê na tela...
- Ora, Dedé eu num sei lê cuma tu
e Aumizin, mas se o assunto é filme, eu traço tudo. Qué apostá um
ingresso para a sessão das 16:30 horas no Cine Moderno, cuma Nyoka
vai saí do perigo do jeito queu falei?
- Tá certo João, cruza os teus
cinco cruzeiros com o meu e entrega para Almirzinho.
Desta maneira, João de Barros
consegue dinheiro para a próxima sessão de cinema. Ele já sabia como
seria o desfecho do “perigo da série”, através de Mário que a
assistira quando morara em São Paulo. Terminada a sessão no Cine
Rádio Araripe, João estava com uma fome destas que matam o bispo.
XII
Mas, antes de mostrá-lo lanchando,
vamos procurar o significado de um dia como esse. Um domingo,
vivendo aventuras heróicas no cinema, passando no meio de muita
gente, ouvindo automóveis em quantidade, pisando calçadas macias,
vendo casas bonitas, inúmeros bares, sorveterias e merendeiras;
sentando-se em agradáveis e sombreadas praças e se encantando com a
beleza de mulheres ricas, enfeitadas e perfumadas.
São coisas que não impressionam a
uma pessoa que mora no Rio de Janeiro e nem em São Paulo. Mas para
João de Barros, um camponês simples e pobre, nascido e criado nas
brenhas e somente convivendo no interior de uma cidade nos dois
últimos anos, é uma grande aventura.
Embora morasse a apenas dois
quilômetros da cidade de Crato, ele, até os 17 anos, viveu na beira
de rios e açudes; chupando cajá e siriguela, no meio de canavial e
dos engenhos; montando em burro à cata de presepadas. Desde pequeno,
sem trabalhar firmemente, vive atrás de um rabo de saia, sorvendo as
frutas da natureza e também as que têm proprietários. Já negociou e
dedicou muito tempo às atividades de passarinhos e gaiolas. À noite,
brincava nos terreiros com a meninada, procurando samba para dançar
ou roda para conversar e jogar baralho.
João de Barros é um aventureiro em
busca de novidades e de “moinhos de ventos”. E foi o maior “moinho
de ventos” de todos os tempos que pegou, definitivamente, a alma
do rapaz. Vejamos como ocorreu na narração do próprio:
Foi a arrumação mais forte da min-a
vida! Meteu as un-ia bem no mei do meu cachaço e saiu puxano meus
miolo todim prá ela. Eu fiquei ingual um príncipe prisionêro na
torre de ouro da bicha e nunca mais saí de lá.
Eu já havia ouvido falá do bicho, mai num intendia dereito o que
era.
Seu Zé do Vale chamou para eu ir com os fii dele. Eu fiquei mei
descunfiado, num sabia dereito o que ía se passá. Os menino
brincavam cum eu, me fazeno assombro.
Só prá entrá no Crato eu já tive medo, magina quano entrei no prédi
grane e bonito do cinema. Me sentei na cadeira e fiquei com tudo
quanto é de neivo frumigando. Min-as venta ficavam só inchano e
secando, parecia cavalo vei esperano pirigo. Cada veiz qui um menino
falava arto eu se assustava. O pior é qui tin-a um mistéro que eu
num intendia.
Percurei pru tudo quanto era canto pru modi vê se incuntrava os
tocadô e num cunsigui sabê de one aquela musga, bem da bunita saía.
Aí se apagô a luiz, o povo ficô todo calado e a musga tomém. Macho
vei eu só fartei cagá de medo. Se o povo se tin-a calado, é por que
coisa boa num tava acunteceno.
O pió é qui logo, eu aina neim tinha amiorado do medo e ouvi um
estrondo, cuma uns badalo de sino beim do grossão. Se medo matasse,
eu tava mortim naquela hora.
O mais pirigoso é que as luiz foram se apagano e todo o povo só
ficava oiano prá um pano bem grandão na nossa frente. Macho, quano
eu vi, o capirôto do panão cumeçou a se mexer. Vige, que coisa mais
ispritada do mundo.
Pru tráiz do panão foi apareceno um beim esticadim, mais bem
branquim, se parecia cum pano de visage na escuridão.
De repente, cumeça a aparecê umas letras bem grandona e uma musga
istrondando tudo.
Mais rapaiz, óia só a disgraça que vai me acuntecer, pois num é que
cumeçou a aparecê umas pessoa que davam umas deiz da gente, aquilo
era qui era monstro de istora de trancoso.
Eu já me agarrei na cadeira da frente, pronto pru modi sartá longe,
se os monstro tumassem o rumo d’eu. Ôiei nim vorta e tava todo mundo
cum cara de abestado, tudo filiz cum o perigo. Aí, acunteceu o pió
de tudo.
Lá estão uns monstros se perparano pru modi subir numas bicicreta
gigante. Ficam tudo impariada, eu escuito um tiro e as bichas
disparam na minha direção.
Oxém, lai veim as bicicreta feito a gota prá riba d’eu. Opa! Opa!
Opa!. E saí na maior desembestada, num sei nem pur one pisei, só se
alembro que no mei do camim atropolei aquele véi bem gordão que toca
tuba na banda de musga do Crato.
O homi caiu feito uma melancia e eu, correno tanto, chega o pé batia
na bunda. Só fui aterrisar dentro daquele tanque d’água que tem
dentro do Cine Moderno. Aí, de tudo aquilo qui passei foi meu único
momento de sorte e de paiz: pois dentro do tanqui num vin-a nein-um
navi passano pru riba d’eu.
XIII
Bom, voltando ao lanche de João.
Ele pára no Bar de Bantim e fica
observando o que comer. Bantim, atrás do balcão, vai a desforra
jogando gozação em cima do freguês que havia achado uma perna de
barata dentro do sorvete que comia.
O freguês diz:
- Olha aqui Bantim, a beleza de
higiene da tua sorveteria.
Bantim se aproxima, examina o achado, imprime seriedade ao exame e
diz:
- Guarde bem direitim, isto é uma
promoção, quando você juntar a barata todinha, tem direito a um
sorvete de graça.
João de Barros acha muita graça com
a brincadeira do dono da lanchonete, mas se acautela para também não
ser alvo da gozação dele. Chama, então, o rapaz que serve no balcão:
- Acuma é um sanduíche e mais uma
banana cum avêa?
- Ah! Tem um bauru beim bonzim,
só prá tu. Se tu quizer eu faço ele bem grandão. Se tu quizer eu
dou.
- Quanto custa tudo?
- Se tu me der o que quero, num
custa nadinha.
- E o que tu qué?
- O qui tu tem de mió... Bem
durona.
- Ai é? Só isso por um sanduíche
e uma bananada?
- Se for bonzim cumigo, aina
ganha outro.
- Mim dê aí.
João de Barros descolou um gostoso
lanche. Promete encontrar-se com Milton, um baitola que serve no Bar
de Bantim, depois da sessão das 20:30 horas.
XIV
No Cine Moderno, aos domingos,
passam três filmes diferentes em cinco sessões: uma matinal às 10
horas; matinée às 13 horas e vesperal às 16, 18 e 20:30 horas. O
principal, sempre uma fita selecionada, passa em sessões
consecutivas a partir da vesperal e que termina por volta das 22:30
horas. A esta hora, Milton esperaria em vão, pois João já havia se
esquecido do compromisso. Acabado o lanche, João faz uma rápida
caminhada na vizinhança e vai para a entrada do Cine Moderno.
A sessão principal de hoje é “O
Cavalheiro da Távola Redonda”. É dia de Exposição Agropecuária,
a maioria dos freqüentadores da sessão é de crianças. Como acontece
neste tipo de aglomeração e ainda mais com a excitação pela
aventura que o filme promete, o corredor de entrada e o pátio
interno do cinema está uma bela algazarra. No meio de menino
correndo, outros se esbarrando, alguns se xingando e envolto no
barulho de vozes, um tanto atordoado, João de Barros avista a coisa
mais linda do mundo.
Uma baita de uma coroa, dos seus
trinta anos, boazuda, morena, cabelos negros e lisos descendo até os
ombros. João fica agitado e não consegue tirar os olhos daquele
corpo talhado pela emoção de todos os desejos carnais.
A mulher é solteira, doutora em
odontologia, professora do curso colegial e independente. Está
acompanhando duas crianças filhas de uma amiga e sai pelo corredor
de entrada do cinema, a observar os cartazes espalhados tanto pelo
corredor, como pelo pátio do cinema. João imantado segue a mulher
por onde ela vai. Finalmente pára e, demoradamente, fica observando
os cartazes de um filme cowboy com Kirk Douglas no papel principal.
Está atraída pela foto do artista, sem camisa, mostrando o tronco
musculoso, em pose de luta. Os cabelos assanhados, a face dura e
violenta, o corpo forte e viril do pistoleiro, esquentam as emoções
da dentista. Na realidade, não apenas lhe acende um lampião de
acetileno, ela vislumbra uma explosão violenta e saciadora.
Em que plano as coincidências se
encontram?
Logo ali ao seu lado, João de
Barros, com seu ajustado chapéu sobre a testa, os botões superiores
da camisa desabotoados, mostrando as travas fortes de seus
peitorais, com um pé apoiado sobre um banco, a saboreia com os
olhos.
É bater e valer. Imediatamente o
objeto do desejo da mulher se transporta da fantasia para a
realidade. Ela fica tão emocionada que não consegue segurar um
sorriso largo e convidativo para o nosso herói. Ele não se afasta
mais de dois metros dela. Na entrada da sala de projeções, próximo
ao início da sessão, no ruge-ruge, no empurra-empurra, João
encosta-se por trás dela e como uma pororoca, o nível se eleva.
Ele está assustado de ter feito a
loucura. Deixado se levar pelas cabeças, quando podia ter se mantido
mais discretamente. Está se expondo a um grande perigo,
principalmente por que ele não sabe o estado civil da mulher.
Nem sempre o que se espera do perigo
acontece. A mulher imediatamente sente o que despertara em João e ao
invés de afastar-se, roça-se de leve ao sabor dos passos lento da
entrada da sala. João fica maluco com aquela reação e não a larga
mais. Senta ao lado dela, que excita-se com os odores que se evolam
dos efeitos da testosterona no aventureiro. Ela não mede
conseqüências. Deixa as duas crianças na fila da frente e através do
escuro da sala de projeção vai com João para cadeiras mais atrás que
estão vazias. Aí no meio da aventura carnal, ninguém deu notícias de
Lancelot e nem do Rei Artur.
XV
As crianças devolvidas às amigas.
Um início de noite de um domingo
morto, nada melhor poderia acontecer com a dentista. No próprio
consultório escalam montanhas e visitam vales profundos. O Cowboy
não cai do cavalo saltador, segura boi bravo e dispara nas campinas
pelo puro prazer de gostar. De todo modo e maneira, misturando tudo
que Deus lhes deu, adicionando complemento aos vazios preenchidos,
navegam insaciáveis. Muitas horas depois a única fome que lhes resta
é a de alimentos. A necessidade de reposição de energias consumidas
no enorme esforço físico. O quê comer? A dentista convida o nosso
João de Barros, aquele que nunca pára de sonhar, dormindo ou
acordado, para comer um “baião de dois” no restaurante
O Pau do Guarda.
João de Barros desmonta uma serra de
“baião de dois” com piqui e carne de sol. Bebe uma cerveja,
sentindo um frio na barriga, da bebida gelada e fermentada que desce
pelo esôfago e pelo estômago, lhe causando sensações novas e
desconhecidas. Está eufórico com o dia de aventuras; satisfeito, de
barriga cheia e entusiasmado com os vapores do álcool.
Um grupo de amigos da doutora joga
baralho e João reconhecendo que é sueca se propõe a entrar
na roda. O jogo é apostado, mas os valores iniciais são baixos, de
apenas dez cruzeiros. O malandro não brinca em serviço, é esperto no
jogo e logo junta cento e cinqüenta cruzeiros. Nunca tivera tanto
lucro na vida. Amanhã é dia de feira, a dentista tem que dar aula
bem cedo e à tarde tem consultório. Se oferece para levar o
aventureiro até o alto do seminário e ele transborda de alegria de
tanto luxo. Do alto do seminário até em casa é um pouco mais de um
quilômetro de uma descida suave. Ele ainda provoca a doutora,
chamando-a para continuarem a brincadeira. Mas a dentista está
cansada e precisa interromper a ligação com o camponês sem criar
compromissos e constrangimentos para ela na sociedade do Crato.
XVI
- Ramo? Ainda tem munta noite prá
frente!
- Não João, tenho que trabalhar
bem cedo. Você gostou, não foi? Eu também! Este segredo é só nosso e
de mais ninguém. Quando você tiver problema de dente pode ir no meu
consultório, eu te ajudo.
- Pode deixar que eu gostei munto
da vossa missão. Sei que vô ficá cum ela na sodade. Eu sei que esse
filme teve um fim. Se fosse uma séri, eu tava no pirigu da séri. Me
agarrano em tudo quanto era ramu das raíze, do tronco e da copa do
côipu saboroso de vossi missê.
- Há! Há! João, deixa de ser sem
vergonha! Adeus!
A moça volta para as luzes da
cidade. Para o mundo da aventura moderna, cheia de novidades e
caudalosa feito as águas caindo na cascata.
Já o Cowboy, segue sob o teto do céu
estrelado, através da escuridão que se abre na direção do vale do
rio Batateira. João que quase nunca bebera, ainda sente os efeitos
da cerveja do jantar e olhando estimulado e ao mesmo tempo
apreensivo com os perigos da noite, abre o vozeirão para o silêncio
do desconhecido que o tempo trás:
Alô! Noite de todos os mistéro do
mundo!
Se abre que vô penetrá no teu
ventre fundo.
Alô! Iscuridão adone mora vidas
istran-ia!
Dê passage prum passagêro das
tua intran-ia.
Alô! Noite que se oferece pru
viajante!
Deixe eu gozá teus prazê e
arrespeitá teu tino.
Deixe estrela acesa no camim,
brisa refrescante.
Deixe vir a caipora e Vicente
Fino.
Alô noite traiçoêra! Aqui rai um
cóboi distimido
Valenti descoberto no cinema, num
é hora de amolecê.
Te acautela que vô intrano feito
pun-iá midido,
Me agasaiano nim ti inté o dia
aman-iecê.
João fala para a noite do mato.
Do interior rural, o oposto da
cidade, dos carros e dos cinemas. Ele arranca para a escuridão com a
disposição do cantor de um musical de hollywood. Vai satisfeito na
sua aventura, no passo de sua bota de vaqueiro, mastigando as pedras
e a areia da estrada de piçarra. No meio de todo o universo só ele e
o barulho das mordidas de sua bota. No lado esquerdo, os vultos das
casas dorminhocas do bairro do Recreio e, no seu lado direito, os
vultos distantes do babaçual, das fruteiras e o vazio rasteiro do
brejo e seu imenso canavial.
No seu passo animado, vê as luzes
tênues por entre as frestas da janela da casa grande de Celso Gomes
de Matos e, logo a seguir, as luzes poderosas do Seminário da
Sagrada Família. Mas esses sinais são passageiro, logo João penetra
no corte de um morro e seu horizonte se estreita. Quando chega na
parte mais alta do corte, já no seu final, João de Barros se arrepia
todinho.
Aquele que nunca pára, estanca com
medo. Não quer acreditar, mas todas as evidências de sua
sensibilidade são de que é exatamente o que sente e pensa. Diante de
si está a mais estranha de todas as criaturas da noite: Vicente
Fino. Aquele que cometeu uma heresia contra os mandamentos de Deus e
da Igreja e como castigo vira animal doméstico todas as noites. Está
ali, João não tem nenhuma dúvida, na forma de um grande porco,
deitado bem no meio da estrada.
- O qui tu qué, Vicente Fino?
Além de mi assustá? Pai mim dixe, que se eu num tivé medo, que tu
fala cum eu. Quero sabê o que tu qué? Fale cum eu? O que tu qué?
O porco parado no seu caminho não
responde nada, continua passivamente descansando com seu respirado
de gordo, só fungando. João coça a cabeça, mas não tem coragem de
passar pelo lado do porco, permanece numa distância estratégica
tentando falar com o animal. Aí fica o jogo de empate. Nem o porco
responde e nem os dois se mexem.
A situação permanece a mesma por,
aproximadamente, dez minutos. João começa a desconfiar que está
fazendo papel de besta. O porco não é Vicente Fino coisa nenhuma e
ele, ali parado, perdendo tempo. João, finalmente, sorri amarelo da
besteira e se promete nunca contá-la para ninguém. Sai desconfiado
pelas costas do porco e ele, tranqüilamente, não balança nem uma
orelha.
O sonhador fica com raiva. Fez papel
de abestado, passou quase quinze minutos com medo de um simples
barrão. O que mais o irrita é aquela cara sem vergonha do porco,
como se tivesse mangando do rapaz. Aí, João não agüenta, volta-se
novamente para o porco e o vê ali paradão com a maior cara de pau.
- Ah! Porco fio duma égua, ina
cuntinua me assustano. Esse bicho é de Ontoim de Júlia e bem que
merece uma boa paulada pru mode o dono aprendê num deixá ele sorto.
João pega um pedaço de madeira que se
encontra no acostamento da estrada e bate forte na garupa do animal.
Desce o pau com toda a força que Deus lhe deu, estimulado com a
raiva devido ao medo do qual se envergonha.
A reação do porco quase mate o nosso herói de susto.
- Vá bater na puta que te pariu,
seu filho duma quenga!
Por essa reação, João não esperava.
Fica destrambelhado, não tinha mais nenhuma esperança que o porco
falasse e nem desconfiava que soubesse tanto palavrão.
É a voz do porco estrondar e João,
numa reação imediata, sai feito a peste, no caminho de casa. Só não
vai gritando feito cachorro após uma pedrada, pois precisa
economizar fôlego para ganhar a maior distância possível de Vicente
Fino. Só pára mesmo, quando vê as luzes dos lampiões de um
acampamento de ciganos na beira do rio.
XVII
Pára de pronto.
O coração quase saindo pela boca, a
respiração mais rápida que fole de ferreiro. São os sinais do cometa
João fugindo das labaredas das palavras de Vicente Fino. Engole a
saliva, estica os dedos das mãos para relaxar e começa a caminhar
bem devagar. Vai se aproximando do acampamento dos ciganos
observando o movimento deles se preparando para dormir.
João gosta de se aproximar daqueles
cavaleiros errantes, sempre estão de passagem pela Batateira e o
nosso Cowboy não perde oportunidade para garimpar algo entre eles. É
verdade que nunca trata de negócios com eles, pois sabem enganar com
facilidade. Jamais jogaria baralho ou apostaria com eles. Mercadoria
de cigano, só se for tacho de bronze, mas como João não tem dinheiro
mesmo, fica uma coisa por nada.
- Boas noite, Ganjão. Ói eu de
vorta na sua terra de novo.
- Boa noite, Migué Cigano. É
mermo. Ina pouquim ôstru dia prá trás, tu passô pur aqui.
- Nós tamo indo pru Piauí.
- E tu conseguiu se casá cum a
moça do bando de Celestino?
- Sim. Ela vem aí. Ô Sara, vem
cá!
- Boa noite.
- Sara, esse é meu amigo João de
Barro. Cuidado cum ele que é munto do esperto.
- Boa noite, seu João.
João de Barros, com as mãos na
cintura faz uma mesura para a moça e permanece na sua mais refinada
postura de pistoleiro romântico. A moça gosta do jeito dele e o
deixa dizer-lhe alguns gracejos galanteadores, enquanto o marido se
afastava um instante para atender um chamado do pai.
Miguel volta e diz:
- João vou dormir....boa noite.
Sara, depois que tu terminar de tomar banho, vá se encontrar comigo
na barraca.
O rio Batateira ainda está cheio, o
que não é muito comum nesta época.
A ciganinha vai tomar banho no rio e
João de Barros disfarçadamente aparece na outra margem fazendo-lhe
sinais. Ela está numa curva do rio, um pouco mais abaixo, protegida
da visão dos passantes da ponte pelas canas bravas que margeiam o
leito do Batateira. Ela está nua, com as roupas largadas na margem
seca, lavando os cabelos negros e compridos com bastante espuma de
sabão, em pé, com o tronco e a cabeça inclinados na direção da água,
passando as mãos suavemente sobre a cabeleira cujas pontas se
espalham na correnteza do rio. João, refeito da aventura
odontológica, vendo aquela cena de fantasia erótica, já está,
mais uma vez, excitado.
XVIII
A mulher percebe os chamamentos do
rapaz, mas continua lavando os cabelos, como se não tivesse
percebido. Ele assovia para ela que, fingindo surpresa levanta a
cabeça com a água de sua cabeleira escorrendo por todo corpo. João
só falta atravessar o leito ali mesmo.
A moça sorri e vai na direção dele,
nua como Eva no paraíso. Vão mais para baixo na direção da
correnteza do rio e numa curva mais adiante, onde a margem forma uma
pequena praia de areia branca, se embolam, se misturam na paisagem
de vida abundante que se reproduz e cresce na área.
Não obstante, serem indivisíveis do
mundo de seus corpos e da natureza em torno de si, ouvem passos
molhados sobre o leito raso do rio. A moça levanta a cabeça para
melhor escutar e tapa suavemente com uma mão a boca ofegante de
João. Em seguida ela se levanta para melhor observar o que está
ocorrendo. Dirige o olhar na direção a montante do rio. Mas, no
segundo a seguir, se volta para jusante das águas e não mais
encontra nem sinal do nosso aventureiro. Se encantara como a mãe d’água.
- Sara, porque tu está tomando
banho tão longe?
- Vai para lá, José! Eu estou sem
roupas.
- Sara, tu tá sozinha?
- José, Miguel não vai gostar de você
me ver nua e se tu não sair já, eu vou contar para ele.
- Sara tinha mais uma pessoa aqui
com tu, eu vi ela saindo!
A moça veste a roupa rapidamente e
sai praguejando contra o primo do marido. Ele deixa a moça se
afastar e desconfiado fala alto:
- Eu vô ti procurar seu fela da
puta! E vou arrancar os teus colhões antes de olhar prá tua
cara-de-pau, seu safado!
João, escondido dentro da cana brava
gela de medo e tem de soltar a urina devagarinho. A sorte é que o
cigano imaginou que ele se esconderia mais para baixo no rio e não
na direção do acampamento. Procura e não acha, mas tem a convicção
de que vira a sombra de um homem correndo tão logo se aproximara da
prima. Mais de vinte minutos depois, após ter a certeza de ter
ouvido os passos do cigano vingador sumindo de rio acima, ele sai do
esconderijo ainda nu, com as roupas nas mãos para não se molharem.
XIX
Dispara por entre a soca da cana,
com o badalo balançando entre uma coxa e outra e só relaxa, quando
chega embaixo de uma grande copa de mangueira, que fica no centro do
canavial. Aí, a junção do que comera com todos os reflexos possíveis
de medo, redundam numa grande adubação da área em que está. Como diz
o outro: soltando os dois emes, medo e merda.
João veste-se e lembra-se
imediatamente do fundo, morno e aconchegante, da sua rede. Já está
perto da meia noite.
Dedé e Almirzinho são netos de Dona
Amélia e moram no caminho de João. Os dois estão com sede de
vingança do rapaz pela perda da aposta no Cine rádio e ficam
satisfeitos quando vêm o Cowboy distraído e pensativo parado no
fundo do terreiro da casa deles.
- Almirzinho! Tu tá vendo o que
vejo?
- O quê?
- João de Barros, lá no terreiro.
Vamos dar um susto nele?
- Vamos nos esconder no fundo do
quintal e encenar aquela piada da assombração.
- Qual?
- Tu vais ver.
Os dois meninos estavam fumando
escondidos no terreiro da casa e por isso estão acordados na hora em
que João volta de sua jornada de aventuras. Sem que o rapaz perceba,
eles se escondem rapidamente por trás de uns pés de avelós. Dedé
pega um tubo longo e grosso de ferro, coloca na boca como uma
corneta e faz:
- UUUUUUUU.
- Hí! Hi! Hi! Até eu fiquei
arripiado com o barulho fantasmagórico que saiu do tubo.
- Imagina o João, vai se cagar de
medo!
João de Barros, aquele que nunca
pára, sonhando ou acordado, já está perto de casa e não pensa em
outra coisa do que na sua rede de dormir. A consciência já começa a
embotar, arriando o corpo, agarrando o aventureiro. Fora um dia
produtivo e o descanso é bem merecido. João, o maior desbravador que
já conheci, procura o castelo dos sonhos para se abrigar. Vem um
vento frio pelas costas e faz o nosso herói se arrepiar. A noite vai
alta e chegam as assombrações da escuridão, numa voz do além que
congela o viajante.
- João! Ô João. João! Ô João.
O medo do passageiro da noite é
tanto e a estupefação tal, que ele cai de bunda no chão com as
pernas bambas pelo caudal de adrenalina nas extremidades.
- Vala minha Nossa Sin-ó-ra de
Fátima! Afasta esta assombração d’eu!
- João! Ô João. João tu quer
enricar! Ô João.
- Meu Deus protetô, ajuda este
pecadô a suportá taman-ia provação.
- João! Ô João! Tu quer enricar?
- Min-a Santa Luzia, qui alumia
nosso camim, mim dê luz qui a aima qué dar uma botija prá eu.
- João! Ô João. Tu que enricar?
- Quem? Eu? Eu? Enricar?
- Sim, Ô João. Você mesmo! Ô
João.
- Eu? Enricar? Uma botija de
din-eiro. De ouro? Arguém deixô ela interrada e morreu? O sin-ô qué
qui eu vá arrancá ela?
- João! Ô João. Tu quer enricar?
- Eu. Eu. Eu. Eu. Eu acho!
- Sim João! Diga. Quer enricar?
- Sim eu quero enricar!
- Então, viu João!
- Vi sim sim-ô . Eu ouvi tudo.
Pode dizê qui eu quero!
- Então, João.
- Pode dizer Dona Aima. Eu quero
enricar!
- Então João.
- Diga logo pelamô de Deus! Eu
quero enricar!
- Então, João....
- Sim. Eu quero....
- Então João: VÁ TOMAR NO CU.
- O quê? Vá você sua aima fresca,
sua baitola. Vá você qui gosta, sua aima iscrôta.
- Há! Há! Há! Há! Há!
XX
Nesta altura, Dedé e Almirzinho não
se contêm mais.
Caem na maior gargalhada que podem
dar. A raiva de João com a alma estava um quadro verdadeiramente
patético. Ele batendo com o pé no chão da estrada, rodando de tanta
raiva e esticando o pescoço para mandar a alma tomar naquele lugar.
Os dois meninos bolam no chão de tanto ri. O nosso herói vê logo no
primeiro Há, de que zona celestial vinha aquela alma. Fica no
chão mesmo, quieto, aparvalhado, olhando a cena dos dois se
contorcendo de riso.
De repente acontece a erupção do
vulcão. De onde menos se espera, nasce a imensa energia de forças
até então desconhecidas. João pula do ponto em que está, pára e
devagarinho, em passos de pernas abertas e braços arqueados vai se
aproximando dos dois meninos. Parece um grande gorila.
- AAAA! Rô Rô Rô Iáaa. Rum Rum
Rum - Rô Rô.
O gorila está possesso, berra a todo
volume, dá saltos mortais de todas as alturas, pula em cima dos
galhos das árvores pesadamente e evolui ameaçadoramente em direção
aos dois meninos. Eles, assustados com o animal, tentam vencer o
imobilismo do pânico e não conseguem sair do canto. Com o terror
aumentando, se despregam do lugar e saem numa carreira tal, que
levantam muita poeira, visível até mesmo no escuro da noite.
- Há! Há! Há! Há!
João de Barros vai à desforra em
cima dos dois meninos que o assustara. Ele sabia que o gorila da
série de Nyoka impressionara Dedé e Almirzinho. O gorila da série é
odiento e feroz e por esse motivo, utilizado pelos bandidos. Daí o
pavor que os dois têm quando assistem a ótima interpretação que João
dera ao papel de gorila. João chega ao terreiro de casa ainda rindo
do susto dos meninos, excitado de todo aquele entrevero emocional.
XXI
Como perdera o sono, resolve
sentar-se numa pedra que fica no terreiro de casa e cortar fumo para
fazer um cigarro.
Enquanto desenvolve a operação
tabagística, vai pensando naquele dia de aventura. Os inúmeros
moinhos de vento que enfrentara e as enrascadas em que se metera.
Está satisfeito consigo mesmo, pois em todas as situações, saiu como
um cavalheiro. Fora artista em todas as ocasiões.
Quem vê João neste momento, há de
encontrar no seu rosto um largo sorriso de satisfação. É um grande
fim de aventuras para o camponês sonhador, e nem por isto, menos
realista da situação de esforço inútil que fazem todos os demais, no
sol a sol e na desesperança em desesperança. Por isto João está
satisfeito com tudo que faz e agora é deitar na rede e sonhar.
- Eu quero fumo! Fumo! Eu quero!
João de Barros dá um salto de susto
tão grande que cai no meio do terreiro. Não sabe de onde vem aquela
voz que pede fumo.
- Quem é que quer fumo?
- Quero fumo!
João sente chicotadas nas pernas e
grita de dores. Tenta correr e aí elas aumentam.
- Eu quero fumo! Me dê fumo!
João compreende que não adianta
correr de uma Caipora invisível; o melhor que faz é dar logo o fumo
que ela pede.
- Pegue eu tenho fumo no bolso,
se a sim-ó-ra quisé tem mais lá dentro de casa.
Entrega todo o seu pacote de fumo e
imediatamente corre para a porta de casa, arrebentando o trinco de
entrada. Chega dentro do seu quarto com o coração disparado. Se
enrola no fundo da rede e não se mexe mais. Nesta noite, vai dormir
com sede e com a bexiga cheia, sem coragem de sair da rede.
XXII
Uma flecha é disparada atingindo um soldado bem do lado dele. A morte do
companheiro o enche de ira e ele dispara com seu rifle sem cessar.
Os índios são mortos aos montes e Dedé e Almirzinho no papel de
pajés de assombrações fogem com as mulheres e crianças.eu Ramiro
Paiva é o velho general matador de índios. Os casacos azuis da
cavalaria americana, estão em luta com um grupo de sioux fugitivos
da reserva. Os índios são chefiados por Miguel Cigano, um valente
chefe indígena. João de Barros, o maior batedor a oeste de Pecos,
tenta salvar a dentista no papel da professora seqüestrada da
escola, na frente de todos os alunos. João de Barros conhece uma
índia irmã de Miguel Cigano e resolvem fazer amor numa paixão
devastadora. Os dois têm muitos filhos, que são muito danados e
gostam de ir para a rede dos pais e lá costumam fazer xixi, molhando
os pais durante o sono.
- João. João. Acorda João.
- Hum!
- Acorda! Dona Amélia já tá
perguntano por tu!
- Hein. Hum Hum.
- Levanta, seu cabra
sem-vergonha. Tá com a maior poça de mijo debaixo de tua rede. Eu
não vou lavá. Hoje voce vai drumir em rede fedorenta. Onde já si viu
um cabra véi cuma tu, se mijando na rede! Se alevanta seu caba
sem-vergonha.
João se espreguiça e
boceja fundo. Olha para os lados devagarinho e depois para a mãe.
- Mãe, hoje é dia de feira?
- Lai vai! Num sabe neim o dia da
sumana!
- Mãe? Quanto a senhora vai
gastar na feira?
- Para o que vô comprá uns
cinquenta mil réis.
- Tome cem mil réis e depois nunca
mais diga que eu num adjutóro im casa.
- Deixa de sê besta e mim dá logo
esse dinheiro.
E João de Barros fica na rede só
rindo da mãe, que sai cheia de satisfação com a fartura daquela
semana.
THE END.
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