Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

José do Vale Pinheiro Feitosa


 

Riacho do Meio do Nascer ao Pôr do Sol

 

 

- Mariquinha tu já preparou o milho das galinhas?

- Ninhora sim!

- Ô Zefinha! Tu já começou a moer o milho do pão?

Fazenda Riacho do Meio. Cedo e viajo. Meu cavalo branco, chamei Gato Preto. Enganei a cor de nascença. Ele tá rosado, é o braseiro da alvorada. Brisa fria no mundo, orvalho se espalhando nas folhas e na rama do pasto. Frio tangido: é o calor do patrão que bota todo mundo de pé.

Gato Preto mói pedrinhas, chão molhado, riacho cheio. Os bichos da noite se calaram. Agora é a vez da arrelia do mundo cheio de viventes do claro dia. Cabeça vermelha, a pabulagem dos sapos nas poças d´água e, tomando a vereda de um lado prá outro,  os anjos, nos corpos das borboletas, fazem sianinha nos ares.

O caminho é peregrinação da vida. Cada via é estação de calvário. Cada cerca na beira é negação. Toda qualidade é uma diferente coisa. As veredas são os primos passos do nascido, cada coisa é uma lição para o aprendiz e cada ato, uma experiência para quem não a tem. Já as estradas carroçais, são passagens da vida: do amamentado ao comedor de feijão; do menino passarinheiro ao rapaz namorador; do homem casado para a viúva, cocó e saias pretas. O chão firme, a nossa casa, o meio da feira ou o fundo da rede; o tempo todo, ficam na beira do precipício. Só que não se vê o danado, como vejo este aqui.

Sobe e desce ladeira. Carrega o mundo, de baixo a cima e de cima a baixo. Escorrega na barranca. Nossa vida. Roça mato, coivara, bota fogo, planta, limpa e, na colheita, vem a seca, leva tudo ao nada e nós à privação. Luta severina, água é tudo, pingo é falta; temporal, insuficiente; no futuro, é certo que falta.

Cercas: nós vive e nós morre. Sem engano. Como a argola de ferro no mocotó do escravo. Aprisiona fazendeiro e, por ela, mata irmão, trai amigo, deixa família sem pai. Prisão de quem tem e num tem terra.

Cancela é coisa de duas serventias: entrada da prisão e a fenda da liberdade. Num há cancela de sentido só e uma que num dê em outra. Nunca se sabe: é saída ou entrada? Saio do Riacho do Meio ou entro nas terras de Belisário? Meu caminho. Procurar Belisário, agrimensor e tradutor dos astros. Conversa boa, domingo, linda manhã de inverno, prosar no terreiro de sua casa, um bom afazer.

Hoje é dia de gente na casa de Belisário. Café com rapadura, tapioca e bolo de milho verde. Dona Lica, cedo, espalha cadeira, ajeita banco para as visitas e de Belisário vêm os cumprimentos: Bom dia! Como vai cumade?  - Vamos chegando! - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Seja favorável a conjugação dos planetas!

Bondade do anfitrião, deseja vida melhor, sem distinção, amigo de todos. Os visitantes têm sentido diferentes das coisas. Meninos se juntam, correm em bando e tomam banho no açude da frente. Rapazes prosam, ouvem a charla dos mais velhos, flertam com as filhas de Belisário. As morenas mais bonitas da redondeza. Amanhecer é como mulher bela, dá chama no coração do homem. Queira Deus que estas fulô tenham ventura da saúde, se conservem belas, num se arruinem na sífilis dos coronéis ou acabem sob a rodilha do pote d’água.

Eis a casa de Belisário, bela fazenda. Amarro o cavalo debaixo do umbuzeiro. O terreiro tem é gente. Bunga. Fan. Lô, Zé Barbosa  e até Raimundo Bezerra. Lá está seu Belisário. Vou cumprimentar ele.  

- Seu Belisário! Como vai Dona Lica e a família?

- Seja bem vindo a nossa casa seu João Jacó.

- Agradecido. O dia tá bonito, de noite chove de novo! Ontem caiu mais de 50 mm, faz anos que não vejo inverno tão forte.

- Seu João, as experiências e as cartas celestes dizem que é ano de muita chuva.

- Mas é bom diminuir, seu Belisário. Se continuar assim, acaba arruinando o feijão, o milho e, desgraça maior, pode até mexer no algodão.

- Mas seu João Jacó, toda desgraça e bondade vêm de Deus. que dá o frio conforme o cobertor.

- Queira Deus seu Belisário.

- Bom dia seu Zé Barbosa! Dona Biluca vai bem?

- Tudo na graça de Deus seu João Jacó.

- Seu Belisário, hora desta e seu Zé Barbosa, duas léguas depois de mim, sentado no seu terreiro?

- Bom dia moçada! Já estão dando as caras e mal chegaram do forró na casa de Zé Miguel?

- Com vai seu Raimundo Bezerra? Seu cigarrinho, né? Fumo gostoso, bem curtido, é uma beleza.

- Bom dia seu João! Gato Preto deu cavalo bonito. Vi Chico Véi atrás das reses, este bicho é bom na capoeira e no campo aberto. Veja Zé Barbosa, cuma ele  faz bonito lá no prado!

- Num é Reimundo. Como vai o seu João Jacó? Dona Maria Júlia vai bem de saúde?

- Vai seu Zé Barbosa! Bem e com  força. Quase me deixa sem andar a cavalo depois que descobriu que tive no forró do casamento de Idelfonso.

- Ah! Ah! Ah! Ah!

- Vocês tão rindo do quê? Pensam que casamento é brincadeira? Tão pensando que vão andar pelas estradas atrás de rabo de saia e de “rala bucho” como este na casa de Zé Miguel?

- Mas Seu João, fico só pensano adonde ela chegou no senhor pru mode num podê nem se assentar.

- Deixa de ser besta Bunga!  Quero vê  tu no eito. Ver tu continuar brincando? Lô, mão na boca, roendo unha. Termina por também roer as palavras e se esquece de falar com as moças. E tu Fan?  Parece uma flor com esta camisa amarela.

- Que num murcha, seu João!  Cum força, vontade de limpar o mato! Aposto que acabo minhas quatro tarefas antes das duas do senhor?

- Só perto da tua roça! Ainda tenho mais de seis tarefas de legume, sem contar algodão, jerimum, quiabo, andu e melancia. Cuido de mais de trinta cabeças de gado, bode e porco.

- Não vá na brincadeira dos moços seu João. Se a conversa né séria, continuam que nem menino.

- Como penso seu Belisário. De quando em vez, falar das meninices para vê se aprendem. Falando em brincadeira, já ouviu dizer nos homens da lua, num tal de foguete?

- Eu de mim não acredito. Lá num cabe gente seu João? Mal dá prá São Jorge e o Dragão? Seu Belisário acredita nisto? E o fogo da lua? E quando ela fica minguante e nova?

- Peraí Raimundo, primeiro a Seu João! A lua é muito é da grande, viu seu João! Cabe muito mais do que este Ceará velho. É ela só miúda como nós vê o Serrote do Cachimbo. Quando tamo no pé dele, é bem cem vezes maior que daqui. A lua, é mais longe que o fim do mundo. E num tem fogo não, viu Raimundo!. Pegue um espelho e bote ele pru sol, aparece uma réstia de luz forte que encandeia. O mesmo que a lua, ela tem a réstia do sol igual ao caso do espelho. Tem fogo não, mas o sol tem. Ele tá pegando fogo desde o princípio, alumia lua e  planetas. Agora a lua é muito da grande. A bicha é tão grande, que mexe com  as ondas do mar e o destino das pessoas.

- Tenho de me calar. O senhor tá dizendo! Respeito quem me dá hospitalidade.

- Felicidades! Bom dia para todos! Bunga pega a mesa no oitão, bote ela aqui no centro.

- Seu João Jacó com vai Dona Maria Júlia? Terminou a rede de ponto cruzado?

- Não dona Lica. Pegou dor d’olhos. O inverno trouxe muita mosca e mosquito.

- Café, tapioca, cuscuz, queijo de coalho assado, batata doce na brasa, leite e costela de carneiro assada. Aprochegue-se seu Zé Barbosa. Os moços de rosto cansado. A vida de farra! Vou falar com a mãe de vocês! Seu João quer uma costelinha de carneiro com pão de milho? Raimundo o café tá quente! Ô Belisário venha comer.

Comida boa na casa de Belisário. Lica num envelhece, cabocla formosa. As filhas, são a estampa dos pais, lindas flores: Helena, a baixa Matilde e a fina Fernanda. No terreiro fico só um pedaço. Depois converso em particular com Belisário. Resolvo meu assunto hoje. Volto com a certeza das minhas razões.

- Dona Lica o seu café tá muito bom. Da tapioca à costela eu apreciei. Esta costela então, tá boa em três coisas: na carne macia, na medida do tempero e no tempo certo de assar.

- Cumpade Belisário e o novilho de carneiro tá dando bom na criação?

- Tá cumpade Zé. Tá cum rebanho da manga aqui de trás, na beira do açude grande.

- Mas pai, o carneiro que tamos comendo num é o que seu Zé Barbosa deu pru senhor?

- Não menina. Este é outro. O que ele me deu, chamo Serrote, é o melhor  reprodutor que já tive.

- Mas papai, eu acho...

- Não menina! Vá pegar as xícaras vazias. Ô Lica chama Fernanda aí. Vá ajudar tua mãe. Vai.

Será que seu Zé Barbosa vai acreditar na estória? Ele se senta com a cara entre a dúvida e a conformação.

- Seu Belisário tá famoso com esta história de planta das terras? Num vi nenhuma, mas me disseram que é a fotografia das terras vista de cima.

- Pois é, seu Raimundo. Vou fazendo as medições do teodolito e régua, mas boto no desenho, como vendo as terras de cima, como voando em riba da asa de um urubu.

- Me disseram que o Senhor está fazendo umas plantas destas para Antônio Esmeraldo.

- É verdade, seu Raimundo.

Será que seu Raimundo Bezerra está sabendo dos meus motivos aqui? Não gosto desta conversa.

- Seu Belisário quem são estas pessoas que andam de avião?

- Olhe Fan, tem homens e mulheres. Até criança de colo. Tem moças fardadas, as mulheres mais lindas que já vi na minha vida. Nos aviões pequenos andam umas cinco pessoas, mas nos grandes vai um magote de gente.

- Qualquer pessoa  pode andar neles?

- Pode! Qualquer um. O povo vai sentado numas cadeiras, como nós aqui, igual as poltronas do "Expresso de Luxo". Tem cinto para se amarrar na cadeira contra o balanço dele.

- Quer dizer que até eu posso andar num?

- Você não Fan! Com que dinheiro? Para andar na máquina de voar? É dinheiro muito!

- Com o apurado daquela roça do arisco dava para andar?

- E tu vai comer o que durante o verão? Lagartixa?

- Ah! Ah! Ah! Ah!

- Seu Belisário , mostre uma destas plantas para nós!

- A Fazenda Riacho do Meio, como é grande, os lugares é bem miudinho. A das terras de Zé Barbosa, dá  para aumentar, já as  de Zé Cruz, bastava a casa e o terreiro, pois o quintal é da sogra dele.

- Ah! Ah! Ah! Ah!

Quero ver a planta que seu Belisário fez para mim, mas quero ver somente com ele. 

- Seu Belisário eu queria um particular com o senhor.

- Pois não, seu João, vamos lá para dentro de casa.

Meu assunto, eu quero longe de Raimundo Bezerra, que genro de Dona Carmina, como Antônio Esmeraldo também é. Aquele fii duma égua quer tomar o que é meu. É a  minha questão de terra. Lica é prima da mulher de Antônio, mas recorro a Belisário, o agrimensor que mais conhece as terras da região.

- Pru quarto do oitão. Tem a mesa dos mapas e o oratório prás orações da família.

- Ô quarto fresco e claro. Bom para reuniões espirituais de sua família, seu Belisário.

- Pois é, seu João Jacó. A Deus temos que oferecer o melhor. Vamos ao nosso assunto?

- A conversa com o senhor é sozinho. Sem ninguém ligado a Antônio Esmeraldo. Na feira passada, Antônio tava falando naquelas terras para Raimundo Bezerra. Ajuda o cunhado e consegue  aliado.

- Não vejo nenhum mal no que o senhor tá dizendo. Fiz o que me pediu.

- Então? Tenho ou não tenho razão na questão?

- Seu João, as terras foram de Pedro Esmeraldo, fazendeiro do Cariri, avô de Antônio. Morreu, deixou a fazenda inteira, outras os filhos dividiram. A daqui era a maior, deu em três: Riacho do Meio, Santo Antônio e Caldeirão, léguas de terra. Sílvio, pai de Antônio, misturou terras à de Wilson pelo casamento dos filhos mais velhos, Nivaldo e Anísia. Casaram Lúcia e Edvaldo, montaram negócio no Recife, venderam a herança para Joaquim Pinheiro, este para Zé Barbosa que, na seca de 58, vendeu a Raimundo Rafael, pai de Amélia, mulher de Antônio Esmeraldo. Geraldo Lobo, do Cartório do Crato, diz que Raimundo deu para a filha o Serrote do Cachimbo, desmembrado, em cartório, das que vendeu a Pedro Belém e este para você. Assim, o Serrote  que vocês questionam,  sempre foram dos Esmeraldo, estando legalmente em seu poder.

- Disso tudo sei, seu Belisário! Mas a minha escritura inclui o Serrote do Cachimbo!

- Sei, seu João! Eu vi!

- Que conversa é essa? A mata tem muito valor Belisário! Uma conversa dessa, nem mesmo do dono do cartório! Tenho a escritura! Tá aqui! Veja!

- Já li seu João. Testemunhei no cartório as transações de terra de Pedro  e seus descendentes.

- Seu Belisário, sei que Dona Lica é aparentada de dona Amélia.

- Sou amigo de todos! Questão de terra tem sempre que existir e é para ser resolvida em paz.

- Se é questão, num pode ter paz! Num pode ter união se querem tirar o que é da gente!

- Licença seu João? Tenho que dá um recado para Belisário. 

- Belisário, João Pedro tá no terreiro. Veio pegar o dinheiro. O caminhão já tá saindo.

- Já volto seu João, tenho que mandar um recado para Francisco Heitor.

Belisário tá do lado de Antônio Esmeraldo. Laços de família puxam. Melhor falar com Zé Almino. Tem filho bacharel em direito, entendido em posse. As escrituras, levo para aonde vou. Me dão direito de derrubar a mata do Serrote do Cachimbo. Os engenheiros da estrada de ferro dão pela madeira mais do que a venda de dez das minhas safras. A cobiça de Antônio Esmeraldo começou quando soube do negócio. Pensa que é fácil ganhar porque a família dele é antiga aqui e vim de fora. Belisário num fica a meu favor de jeito e qualidade. Tá demorando. O recado tá muito comprido. Vou fazer mais umas perguntas e sair para procurar Zé Almino que é meu conterrâneo.

- Desculpe a demora seu João! Vamos voltar ao nosso assunto?

- O senhor viu os registros no cartório que comprovam o desmembramento do serrote?

- Seu João, Geraldo citou nome de testemunhas que  assinaram as escrituras de Raimundo Rafael.

- Ora! Seu Belisário, qualquer um  arruma pessoas que dizem o  que se queira!

- Calma seu João! Em questão tem que ser sem afobação! Há gente interessada. Raimundo Bezerra e Zé Barbosa, um vindo das Ingazeiras sem terra e o outro é  só desmatar para roçar o baixio do pé do serrote.

- Naquelas terras uma pessoa manda! Sou eu! Não se corta um pé de marmeleiro sem minha ordem!

- Seu João Jacó a ordem maior é a de Deus! Só Deus fez a terra, a chuva e a seca.

- Mas a cerca quem fez fui eu!  Deus? Pai de todos! Num pode ser só de Antônio? O Serrote? Cerquei, quando comprei. Sem Esmeraldo nenhum, na época, prá reclamar. Meu direito? É da força maior! A força maior são as leis. Também está no livro de Deus! A Bíblia!

- Deus juntou os homens em feixe. O Serrote é um e a briga. O senhor é um só. O outro, muita gente.

- Nenhum mais macho que eu! Dou o melhor touro do curral para não entrar numa briga, mas depois de entrar, não quero uma boiada para sair dela.

- O senhor já é daqui! Os seus filhos já são da terra. Briga só leva à morte. Morto num cria  família, bota roça ou vende mata.

- Nem vivo que deixa levar o que é seu. Se der o Serrote para Antônio ele é quem vai botar roça. Conheço briga e aí sou eu quem vende a mata e depois planta.

- Seu João, meu conselho é este é o que tenho para lhe dizer. As outras famílias deram mais de dez gerações nestas terras.

- Belisário, eu cozinho a galinha ensopada no molho pardo, como você gosta?

- Faça Lica. Hoje é um bom dia de domingo.

- Comprei estas terras como negócio de honra. Agora a conversa de Raimundo Rafael? É lábia de cabra filho duma égua; covardia contra mim. Bebeu a riqueza com as putas da pensão de Francisquinha! Desculpe o nome feio Dona Lica, mas é que a senhora entrou no meu particular aqui com seu  marido.

- Eu é que me desculpo por me intrometer, seu João Jacó!

Esta mulher tava aceirando nossa conversa. Quer saber tudo para contar à família.

- Seu Belisário, agradeço o trato da sua família. Com Antônio Esmeraldo eu vou tratar primeiro na lei. O filho de Zé Almino vai anular as testemunhas de Geraldo Lobo. As minhas terras vão ter estaca e homens armados contra ladrão. Não precisa me acompanhar, saio sozinho. Dê Boa tarde  para a senhora Dona Lica.

- Seu João, como temente a Deus, tenho de lhe dizer que hoje a conjugação dos planetas não é  favorável ao senhor.

Fela da puta. A mulher quem manda os recados para Antônio Esmeraldo. Deve ter mandado contar o que ouviu de mim. É bom ir  logo sabendo da minha intenção. Covarde como ele, desiste. Tenho certeza: não perco a questão. Lá está Gato Preto, vou botar a sela. Começar a defesa. A amizade deste povo não vai me amedrontar. Raimundo e Zé Barbosa não estão mais no terreiro, só os rapazes e as filhas de Belisário.

Pela beira do riacho e pela garganta, economizo meia légua até Zé Almino. A confusão atrapalha a roça. Gosto da terra molhada, cheiro de mato. Já não tenho dom da luta, tô de coração amolecido e pontaria ruim.

Ano bom pru gado. Queijo e manteiga, porco, galinha e muito ovo, isto se o milharal não tiver problema com tanta chuva. Aí cavalo, aí, aí, vamos devagar se não me molho. Se Gato Preto num é alto, teria me molhado na passagem do riacho. Agora o massapê, a terra de Zé Almino. Será que vai estar em casa? São quase três horas. O sol vai alto. Na varanda tem gente: é Zé Almino, Everardo, Donaciano e Dona Alda.

- Boa tarde minha gente

- Boa tarde seu João Jacó!

Só vou falar no assunto com Zé Almino senão Alda vai ficar com medo.

- Se sente compadre. Como vai a comadre Maria Júlia?

- Tá meio adoentada. Os olhos com sapiranga se não nós tinha vindo os dois.

- Compadre João, que cavalo! É cria sua ou comprou ele nas exposições do Crato?

- Duma besta de raça, comprei de Pedro Felício. Cruzei com um cavalo de Zé Brioso. É cavalo bom na caatinga. Pegou a formosura da mãe e a capacidade do pai.

- Compadre João, não faça como a outra vez. Daqui a pouquinho vamos jantar. Viu?

- Pois não, comadre Alda. É uma satisfação muito grande sentar a sua mesa.

- Compadre João tem notícia de Alagoas?

- A última tem quinze dias, foi de uma carta de Solon. Mãe foi operada em Maceió. Dos ossos que quebrou numa queda. Compadre lembra que ela não pára num canto!

- Dona Leonarda, passa o dia bulindo, oitenta anos. Se trepa para espantar galinha do poleiro!

- Ô compadre e como é que vão seus roçados? As chuvas estão atrapalhando?

- Não. Broquei cedo. Plantei nas primeiras chuvas. Me preocupa o algodão, há notícia de lagarta.

- Vida espinhosa. Fazendo o que outros desfazem: seca, chuva demais e praga. Ladrão de terra, juro de banco, rico do sul levando trabalhador. Preço de mercadoria? Barato o que nós vende e caro o que se compra.

- Tô matutando. Ano passado, nossa produção alimentou umas duzentas famílias e a compensação? Não há dinheiro prus meninos do meio estudar em Cajazeiras, pior  ser doutor na Fortaleza!

- Vamos entrar? O jantar tá na mesa! Venha por aqui compadre João.

Jantar, três da tarde, costume daqui e nós de fora pegamos o jeito. São quatro refeições: cedinho, café magro, almoço às nove,  jantar às três horas e ceia antes de ir prá rede.

- Sente aqui de junto de mim, seu João.

- Pois não, Mariinha. Teotônio tá no ponto de formar família, tenho gosto que seja você.

- Ora Seu João, fico encabulada, o rapaz é quem tem o direito de fazer a escolha dele!

- Compadre coma feijão, tem toucinho gostoso. O molho pardo da galinha tá uma beleza.

- Este jerimum bonito é  daquela várzea lá de detrás?

- Opa! Opa! Cusp! Cusp!  Fuu! Fuuu! Puf!

- Caim! Caim, Caim, Caim

- Ah! Ah! Ah!

- O que foi minha gente? Um se agonia, o cachorro gane e o outro ri?

- Foi nada não! Ah! Ah! Ah! Ciço socou na boca um taco de jerimum quente. Cuspiu no chão aperreado, o cachorro abocanhou, soltou e desembestou de porta a fora, ganindo de dor.

- Ciço beba um copo de limonada para esfriar a boca!!

- Compadre João, quer um docinho de leite para adoçar a boca?

- Aceito, comadre Alda.

- Rosa, traz a quartinha d’água e os copos e manda Zefinha fazer café.

Família grande, a de  Zé. Todo mundo ajuda. Honrados e desaforados com a injustiça.

- Compadre João pegue um café bem novinho e quente.

Jerimum, café, tá tudo quente. A questão com Antônio Esmeraldo ferve de raiva meu sangue.

- Compadre João vamos até o curral, olhar os borregos.

Semana passada vi os carneiros e ele vai mostrar de novo? Sabe que é assunto reservado.

- Veja compadre como eles cresceram esta semana!

- Tô vendo!  Vim atrás de tu para conversar sobre a questão com Antônio Esmeraldo.

- Oxém homem! Te conheço desde menino.

- Venho de Belisário. Conversa de testemunha, viram Raimundo Rafael desmembrar o Serrote antes de vender a Pedro Belém. Tentação de filho duma égua, me convencendo a dar as terras para Antônio.

- E tu não tem as escrituras das terras?

- Tenho, levo para onde vou, não confio neste Geraldo do cartório. Tu lembra da história de Cláudio Calheiros de Arapiraca? Parecida, o dono do cartório sumiu com os livros, mataram Cláudio na casa dele, roubaram a escritura. E o nome do assassino? Só o de quem saiu ganhando com a morte dele.

- Tem que ter a iniciativa do primeiro tiro, sentindo perigo, parta para o ataque.

- Por isto tô aqui. Anular a mentira. Preciso que Joaquim advogue a questão.

- Amanhã ele chega no ônibus de Fortaleza. Vai tá na estrada às quatro horas da tarde. Vou pegar ele. Tu vem comigo e já vai falando no assunto. Mas compadre tenha cuidado com os Esmeraldo. Quando eu cheguei aqui, topei com eles, só não matei ou morri porque o parentesco de Alda com os Alencar, amansou eles.

- Sei, são os donos daqui há muitos anos. Vi o que fizeram com Raimundo Ferreira?

- E os colhões de Zezim Patrício? Perdeu foi sangue, salvou-se em Patos e sumiu no rumo do sul.

- Pois é. Aproveitou a desgraça, vive que nem mulher, se requebra, se pinta e bota brinco, virou fresco e se vir um Esmeraldo vira minhoca debaixo da terra.

- Eh! Eh! Tu ainda tem cabeça para brincar!

- Pois é compadre, se a gente não brinca com a vida, chega no inferno antes de morrer.

- Vamos beber água que a digestão do jantar tá a galope.  

- Compadre num fale nada com Alda. É melhor que esta conversa fique só ali no curral.

- Rosa, pegue água para mim e compadre João Jacó. Quer um café?

- Quero.

Os Esmeraldo armam arapuca e nunca aparecem envolvidos. São bom de tocaia.

- Compadre pegue o café.

Vou beber e botar o pé na estrada antes de anoitecer. Quero andar nas estradas de dia.

- Compadre eu vou falar com Zé Alencar prá ele dar um aperto em Antônio Esmeraldo.

- Seu João conte  a história do fogo do senhor e pai lá em Antenor Navarro. Conta!

- Tava eu... teu pai e... João Mendes...

- Rosa! ... Compadre já tava saindo prá casa. 

- Seu João, então conte só aquela parte sobre seu João Mendes.

- Padre Vieira soube do tiroteio, os homens de Adeodato e Zé Quelé. Chamou o delegado, tava na delegacia e ouviu uma cachorrada. E lá vinha João Mendes, ladeira abaixo acompanhado do maior mosqueiral.

- Ih! Ih! Ih!

- Cachorros latindo c´a peste, eram o fedor  do mundo, seguiam João chegando e gritando: “Chega Padre Vieira, o maior tiroteio nas terras de Adeodato. Sangue fede? Fede Padre Vieira? Se sangue feder, tô todo baleado!”

- Ah! Ah! Ah!

- Rosa já é mais de quatro e meia e comadre Maria Júlia espera compadre João Jacó cedo.

- Comadre a comida tava muito boa, acho que é minha última ceia,  tanto que comi.

- Seja sempre bem vindo compadre. Você e toda a sua família.

- Seus moços, que vocês tenham uma boa noite e um acordar cheio de futuro.

- Boa noite, seu João.

Onde eu amarrei Gato Preto?

- Compadre João, me espere em casa amanhã que eu vou pegar você com a camioneta.

- Sim compadre. Pode tá certo que espero, se Deus quiser. Tão certo como falo com você agora.

- Dê lembranças a comadre Maria Júlia e se ela tiver sequilhos que guarde uns para mim.

- Tem também um ótimo bolo de massa puba para você comer com café.

Vou pegar a estrada do alto do urubu. Quem tem amigo não morre pagão. Compadre Zé me trouxe de Alagoas e sempre me apoiou nas agruras. Amigo é assim mesmo, sempre que pode, dá a mão ao outro.

- Devagar Gato Preto, esta ponte de madeira pode querer agarrar nas tuas patas.

Aqui embaixo, neste leito seco do riacho, os Pinheiros jogaram vinte reses envenenadas. Zé Cruz,  velho e surdo, cortava palha na máquina e uma lata de veneno de carrapato, caiu na ração pelo movimento da palha. Caiu duma prateleira próxima. Certas noites, as pessoas que passam vêm fogo fátuo levantando do riacho. Raimunda de Vó disse: “os espíritos dos animais que não se afastaram, assustados com a morte sem espera”.

Gosto do inverno, dos caminhos encharcados, da areia fina molhada, da cor morena. Muçambê, pega pinto, carrapicho e o som corroído do casco de gato preto. Esta roça tá boa, milho bonecando e o feijão dando bagem. Ar cheiroso, árvore no meio da plantação! A imagem de Deus, o paraíso é igualzinho a este lugar.

O alto do urubu é a maior mata da região. Indo prá casa, gosto de passar dentro dela. No túnel longo, de grandes jatobazeiros. Batendo o jatobá com uma pedra na casca dura, vai dá na fruta fubazenta, seca como língua de papagaio. Estes jatobás são muito bonitos. Vou pegar pitombas deste galho baixo.

- Aí gato Preto! Prá cá, mais, aí.

Dar uma mijada. O caroço de pitomba parece bala de 38 depois de disparada. Daqui a pouco o sol vai se pôr. É melhor me apressar, chegar do outro lado do alto do urubu antes do dia escurecer.

- Ô, vamos lá. Vamos lá

Vou azeitar as armas e andar armado, a laia destes Esmeraldo é de traição. Rápido na primeira ameaça. Bulindo na minha família, queimo a raça deles! Fujo prá Maceió. Debaixo dos jatobazeiros, é bom olhar as réstias de luz no teto dos galhos altos. Bicho pitoco rastejando no chão. Ficar no escuro da mata no inverno.

Mato, pedra, barreira, encosta. Tronco grosso, uma pessoa pode muito bem se esconder detrás destes troncos, fugindo, ou de tocaia. Estes fela da puta são capazes de me armar uma cilada? Devia ter voltado mais cedo. Mais ou menos vinte metros prá dentro da mata e não se enxerga direito. Os urubus vêm do alto da matança para dormir aqui. Que diabo é aquilo se mexendo?

- Aí! Aí! Gato Preto!

Ali no mato. E a peixeira? Tá aqui, vou puxar, é melhor tá preparado prá desgraça. Só tem um? Arranco o fato deste peste. Vou espantar o cavalo e correr pru mato. O desgraçado se distrai e pego ele de jeito. Pronto a sorte tá lançada, se é meu dia, amém.

- Vai lá Gato Preto!

Disparou, bicho é arisco, só pára em casa. O mato se mexendo, correndo, meu Deus! É o meu dia mesmo, tem mais outro aí do lado!

- Porra! Vão assustar a puta que pariu seus jumentos escrotos.

O cavalo foi longe, agora é meia légua a pé. Isso foi visagem. Antônio tá me deixando assustado. Não conto a ninguém, vão rir de mim. Pelo menos a tremelica do susto tá se descarregando de chão a dentro, feito fio de terra de eletricidade. Agora meu esqueleto tá gostando da caminhada. Final de tarde fresca, caminhar, assim, é bom, em paz. Perder o meu, não vou mesmo. Tá prá nascer macho prá isto. Possa até fazer acordo sobre o  negócio, sem briga, divido a mata, ganho por fora,  fazendo o desmatamento e transportando no meu caminhão velho. Até dá para comprar um novo.

Aí vem esta safra que promete, vendo as terras e vou morar na praia de Sonho Verde, em Maceió. Compro um sítio pequeno e descanso da vida de luta. Que a muié não tenha ziquizira dos ares do mar. O cavalo foi longe. Já disparou com Dedé e só parou porque fecharam a cancela nas carreira. Agora tá ficando mais claro! Aí na frente tá o baixio de cana, lá o sol tá encarnado, o dia começa a morrer.

O diabo do cavalo parou. Tá lá na frente. Se mexendo no mato da porteira. Esperou né, ela tava fechada.

Tá atrás dos marmeleiros. Tô arrodeando prá não espantar o danado. Vou meter a cara devagarinho por dentro do mato.

Por que será que seu Belisário me disse na saída que hoje os planetas não estavam favoráveis?

Que foi meu Deus?  Que aconteceu? Que coisa medonha! Um tiro! Um não! Três tiros! Agonia meu Deus! Tô me afogando na poça de água grossa! Gosto de sangue! No pulmão! Sufocado. Meu Deus num respiro mais. Onde estou? No chão! Num mexo o corpo, tá morto, só o peito, procurando o ar que num entra.

- Seu Raimundo Bezerra, por aqui.

Não morri, tô ouvindo vozes.

- Zé Barbosa, pegou bem na cara dele, só carne e osso quebrado. O sangue tá  na goela, vai encher os pulmão, ele acaba morrendo. Será que o sangue molhou as escrituras? Não seu Zé, num é que só pegou um pedaço dela!

- Vamos logo seu Raimundo que pode ser que tenham escutado os tiros.

- Já vou. Bem que Belisário disse que ele hoje passaria por aqui de qualquer maneira.

- Raimundo, dê um tiro bem no meio do coração dele para ele acabar com o sofrimento.

- Corre pru mato Zé Barbosa que vem gente aí!

- Que diabo é isto, Bunga?

- Minha Nossa Senhora da boa morte, é um homem morto com a cara toda arrebentada. - Fan, ele ainda tá se  mexendo na agonia da morte. O coração ainda tá batendo.

- Num são as roupas de seu João Jacó?

- São rapaz! É ele!

- Seu João Jacó, diga quem fez isto?

- Ele não pode responder, não tem mais boca e nem nariz.

- Home, que tiro mais certeiro!

- Vamos correndo até a casa de seu Belisário avisar a ele,  é muito amigo do seu João. Nem acredito. Num faz quase nada que nós tava vendo ele vivim, aqui em riba da terra. .

Igualzinho Cláudio Calheiros, nunca vão saber quem me matou, só quem vai ficar com o Serrote do Cachimbo.


 

 

 

 

 

22.09.2005