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José Nascimento Félix




O queijo e os vermes, de Carlo Guinzburg



Guinzburg, Carlo, Il Fromagio e i vermi. Il cosmo di un muznaio de '500, São Paulo, Companhia das letras, 1989.

 

Após a leitura de textos base para a análise crítica de "O Queijo e os vermes" de Carlo Guinzburg tomamos consciência de questões importantes para o estudo da História das Mentalidades.

Os textos pôem-nos em contacto com uma série de questões pertinentes as quais têm como pano de fundo a dicotomia cultura das elites/cultura popular, da sua validade ou não.
É o questionar desta dicotomia que faz parte da nova maneira dos historiadores pensarem a História das Mentalidades e da Cultura, que é defendida por Roger Chartier e que é efectivamente uma posição inovadora.

O estudo das Mentalidades herda dos historiadores românticos aquela dualidade, mas que hoje se apresenta cada vez mais questionável. É um esquema muito simplista e bastante rígido, mesmo assim um esquema pelo qual não nos devemos deixar influenciar. Para além de os questionar, necessitamos de tê-lo em conta apenas como ponto de partida para chegar a questões primordiais para clarificar o que é no fundo a História das Mentalidades, um plano de estudo actual, e ter em conta se faz sentido uma oposição tão rígida como aquela que é adoptada pelos historiadores românticos.

Não podemos deixar-nos levar por um esquema que tente tipificar os problemas históricos apesar de ser sempre uma tentação encontrar grandes fios condutores, grandes períodos com as mesmas características.

Os grandes esquemas tipificadores são por natureza limitados e não permitem avaliar os fenómenos nas suas características particulares e de excepção.

Roger Chartier tem uma posição bastante clara e comunga com a nova maneira de fazer história iniciada pela escola dos
Annales."Desembaraçando-se das etiquetas que pretendendo identificar os pensamentos antigos, os marcaram na realidade, a tarefa dos historiadores do movimento intelectual(como escreve Febre) é acima de tudo reencontrar a originalidade irredutível a qualquer definição à priori, de cada sistema de pensamento, na sua complexidade e nas suas mudanças"[(1) Roger Chartier, obra citada na bibliografia, p.33]. A dicotomia esquemática proposta pelos historiadores românticos não tem lugar dentro deste novo conceito de fazer história, assim como qualquer outro exemplo de oposição rígida torna-se ridículo face a esta concepção nova dos historiadores dos Annales; concepção reafirmada pela actual definição de História Cultural que coloca a posição do historiador perante os artefactos históricos.

Para Roger Chartier, o historiador interpreta os artefactos,
objectos históricos de análise, num campo onde se cruzam duas linhas: uma vertical, ou diacrónica, pela qual os historiador estabelece a relação de um texto ou de um sistema de pensamento com manifestações anteriores no mesmo ramo de actividade cultural; a outra é horizontal ou sincrónica, e através dela determina a relação do objecto cultural com o que vai surgindo noutros aspectos de uma cultura.

Assim, "ler um texto ou decifrar um sistema de pensamento consiste, pois, em considerar conjuntamente essas diferentes questões que constitui, na sua articulação, o que pode ser considerado como um objecto da história intelectual".[(2) Roger Chartier, obra citada na bibliografia, p.65]. Penso que o problema deve ser posto não em oposição - Cultura Popular/Cultura das
Elites - mas em termos de interligação. Apesar de a cultura das Elites - escrita, letrada, urbana -, tentar de facto dominar a "cultura popular" reprimindo-a e impondo por assim dizer, as leis de uma cultura letrada que se dizia dominante, esse papel primordial funde-se com aspectos da "cultura popular".

Há ainda outro aspecto importante, como refere J.Molino, que é o facto de não se poder falar em cultura oral-popular e cultura letrada-escrita, nestes termos tão claros. Segundo Molino, nas mentalidades antigas, a "cultura popular" encontra-se rodeada desde há séculos, por meios escritos, assumindo especial evidência a importância dos textos sagrados e os seus comentários; neste caso a cultura escrita é transposta para um meio de difusão oral. Por isso mesmo as duas realidades não estão tão desligadas.

J.Molino, ao levantar a questão da existência ou não, de
várias culturas, foca outro aspecto importante, propondo outra perspectiva para abordar o assunto. Considera necessário estudar a cultura nos seus diferentes meios naturais propondo outro esquema tipificador: a cidade e o campo, como sendo os dois meios naturais indispensáveis à resolução do problema. Nesta perspectiva introduz, ainda, o conceito de «intermediários culturais», que serviriam de elo entre os dois meios naturais. Propôe unir, através destes intermediários culturais, o que à partida estava separado pelo esquema "cultura popular/cultura das elites".

Penso que tentar resolver uma dicotomia com outra dicotomia, traz de novo os perigos a que me referí. No entanto, este esquema, talvez necessário como todos os outros, não deixa de levantar sérias questões, se não nos deixarmos influenciar demasiado pelo esquema simplista.

Neste esquema os intermédios culturais assumem grande importância naquilo que J.Molino considera "cultura de transição". Eles asseguram a ligação entre os dois mundos que à partida seriam tão diferentes e que estão de facto interligados.

Resta saber se o papel destes intermediários será tão claro como eles se apresentam à primeira vista. De facto não o é e J.Molino também o assegura.

Considera que o papel de intermediário pode ser vivido de diversas maneiras, dependendo, por isso, da origem e formação dos seus representantes, os intermediários culturais.

Duas diferenças estabelecem-se à partida: os intermediários formados junto da tradição popular e por isso mais próximos dela e os vindos do exterior, completamente fora da realidade onde se vão inserir. Estes intermediários seriam os representantes da cultura urbana nas sociedades camponesas, representantes do poder central e tendendo a impôr a lei desse poder.

Tomando por base esta realidade e tomando o exemplo de Menochio, o moleiro, do livro de Carlo Guinzburg, será que podemos tomá-lo como um intermediário cultural? Sendo assim, enquadra-se no esquema de J.Molino como um intermediário formado junto da sua comunidade.

O moleiro tinha ideias «estranhas» e procurava «vendê-las» aos seus conterrâneos. Eram ideias heterodoxas. O moleiro tinha acesso a livros que em princípio estavam destinados às elites, beneficiando também da experiência de viajantes que se torna enriquecedora para a sua comunidade.

Constata-se que o nível popular não era passivo e exemplo disso é o moleiro que após ler os livros tem uma atitude criativa na leitura dos livros, contrariando a ideia de alguns historiadores dizendo que a população era passiva e aceitava passivamente as ideias preconizadas pela elite produtora de livros e ideias.

Nota-se que o grupo não era amorfo, passivo e tinha apetência por leitura. O moleiro acaba por construir determinados valores, alguns pessoais, mesmo algumas considerações heterodoxas que não tinham nada a ver com os modelos teológicos.

Além disso, Carlo Guinzburg problematiza a influência de cima para baixo; constata que o moleiro que se enquadra na clase da "cultura popular" tinha lido outras obras, as obras da elite. Leu não só livros simples, mas também livros de teologia, livros que em princípio não eram destinados à maioria da população. Leu-os e interpretou-os de uma forma pessoal. Teve um trabalho interpretativo, um trabalho de criação em que misturou uma série de elementos de ordem pagã com elementos de ordem católica.
Este exemplo de como um rude moleiro que de facto sabe ler e escrever, teve acesso a leituras importantes na sua época, sendo um caso excepcional, sugere, apesar disso, que a escrita não estaria tão longe assim dos meios rurais.

Menochio apresenta todas as características do homem do seu tempo, curioso por tudo aquilo que o rodeia e ávido de saber.
De facto, torna-se cada vez mais evidente a falta de sentido da dualidade "cultura popular/cultura das elites. Este esquema pressupõe a existência, numa mesma cultura, de grupos individuais, o que não corresponde a uma realidade muito clara. Esta dicotomia pressupõe também que a "cultura popular" se ligaria à oralidade e que a "cultura das elites" se ligaria à escrita.

Adquirindo o fenómeno da escrita demasiada importância na divisão dos dois mundos.

Eu penso que só a escrita não basta para encerrar uma cultura em dois polos distantes. Há também que dirigir um popular através das canções populares. Também por vezes a olhar atento para a poesia que em termos populares adquire formas bem originais. Também importante de salientar é o facto de que por vezes a "cultura das elites" é influenciada pela "cultura popular", nas canções populares. E como a "cultura das elites" se apropria de festas populares. Lembro, por exemplo o Carnaval com o fim de atingir e obter fins políticos e religiosos.

Penso que são duas culturas que se interligam constantemente.

Bibliografia:

BOURDIEU, P. ,CHARTIER, R. E DARNTON, R., "Dialogue a propos de l'Histoire Culturelle" in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 59, Set 1985, pp.86-93

CHARTIER, Roger, "História Intelectual e História das Mentalidades.Uma dupla reavaliação" in A História Cultural - Entre Práticas e Representações, Lisboa, Difel, 1988

ERINBERG, Martine, "La Culture Populaire comme enjeu:rituels et pouvoirs(XVIIe siecles)" in A.A.V.V., Culture et ideologie dans la genese de l'etat moderne, Roma,1985,pp.381 - 392.

MOLINO, J., "Combien de cultures?" in Les Intermediaires culturels - Actes de Coloque du VCentre Meridional d'Histoire Sociale des Mantalités et des Cultures, Paris, Honoré Champion, 1981, pp.631-640.

GUINZBURG, Carlo, Il Fromaggio e i vermi. Il cosmo di un muznaio de '500, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

 

 

 

 

10/03/2005