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Jornal do Conto

 

 

José Pedreira da Cruz



 


Feliz, apesar de tudo



 

Fruto de uma árvore genealogicamente humilde, aqui, com o meu primeiro choro, alumiaram-me numa árida e sofrida região do terceiro mundo.

Surgi tal qual um algarismo a ser inserido nos registros e nas estatísticas de opinião pública onde, ainda, aqui estou sedento de justiça social junto a uma leva de milhões de compatriotas que só servimos como dados de referência para a rolagem das dívidas, ou, apenas, como ferramenta propícia para o enriquecimento de exploradores da pobreza.

Mas mesmo com tantas mazelas ainda me sobra espaço para sorrir e dizer que sou feliz, e creio que o digo pelo simples e voluntário ato de falar.

- Sim, sou feliz, repito, apesar de ter saboreado o meu primeiro chocolate aos 14 anos de idade e, isto graças ao Seu Kennedy. Foi este bondoso homem que através do programa “Aliança para o Progresso”, mandou vitaminar as criancinhas desnutridas dos Sertões do Brasil e, entre elas, eu. Foi o que me disse a professora Teresa, a grande desbravadora da minha negra ignorância. Foi ela quem me confidenciou ser o Tio San a mandante daquela deliciosa comida feita à base de chocolate em pó, e eu, na mais pura ingenuidade, julgava ser o Tio San um dos irmãos de meus pais.


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Diminuíram-se assim minhas fraquezas e adquiri mais energias com o dito alimento, do qual, se bem me lembro, estava higiênicamente embalado em saco plástico – creia, eu nunca tinha visto um saco plástico –, e nele a inscrição:


“USA X BRAZIL”
“ALIANÇA PARA O PROGRESSO”
“ALIMENTO PARA A PAZ”

 

(acredite, nunca entendi: a guerra com o Paraguai ficara lá atrás).

Foi ai que decorei a bandeira da Nação USA e passei a vê-la muito mais bela e poderosa, e, sinceramente afirmo: ela ocupava quase toda a embalagem do chocolate, enquanto que a de destino, a auriverde, bem miudinha, lá num cantinho do saco, mal se podia ler o recado a nós atribuído: “Ordem e Progresso”.


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Meu status como comedor de chocolate americano estava em alta, e eu nem imaginava que naquela mesma época, as criancinhas da Biafra, lá no além –mar, e tão desnutridas quanto eu, também se empanturravam do dito chocolate, e que, em suas inocências acreditavam, piamente, serem verdadeiros parentes do Tio San.

Mas certo dia, num alvorecer, o destino cumprindo seus planos me fez estar sentado num banco de jardim d’uma cidade interiorana, aonde eu me deliciava com as músicas do serviço de alto-falantes, quando abruptamente tudo parou, e o locutor com uma voz embargada e trêmula, balbuciando anunciou:

– Urgente: “Dalas-Texas,”... o presidente John Fitzerald Kennedy acaba de falecer vitimado por atentado...”.

Estupefato com aquela estupidez eu me arrepiei dos pés à cabeça.

– Mataram Kennedy! – exclamei gritando pra mim mesmo.

Mataram Kennedy!

Mataram Kennedy!

Era somente o quê se dizia.

Com certo pesar o homem do alto-falante repetia aquela lastimada notícia por seguidas vezes, sem fundo musical e sem qualquer comentário. E num piscar de olhos surgiram tarjas negras em portas, janelas e em carros; e tudo parou; e o luto foi iminente; e a comoção espalhou-se em lágrimas por todos os cantos do planeta.

Tive a sensação de ter perdido alguém familiar.

Levantei-me do banco do jardim e silenciosamente me recompus monologando:

– Não, ele não é meu parente e tampouco meu presidente!

Tive calafrios ao imaginar que alguma coisa, muito grave, estaria acontecendo nos bastidores do poder, e que o mundo corria sério perigo. Só havia um Kennedy para frear a escalada atômica. E agora, como seria sem ele? Morreríamos? Será que nunca mais comerei chocolate em pó? Indaguei-me, e, nesse instante me lembrei de um tristonho diálogo que, há anos atrás, ouvi entre minha mãe e nossa vizinha:

– Comadre Maria! Ou comadre Maria!

Nervosa e eufórica don`Ana gritava com a cabeça para fora da janela.

– O que é comadre Ana? – Dizia minha mãe segurando-me ao colo.

– O presidente Vargas morreu! O rádio diz que foi suicídio.

– Valha-me Deus! Suicídio não! Suicida não entra no Céu, comadre! – questionou minha mãe pondo em pauta um dos princípios da sua fé, e concluiu sua tristeza falando: e agora, comadre? O que vai ser dos pobres?

Não deu para disfarçar uma gota rolando no seu rosto.

– Estamos perdidos, comadre! – devolveu-lhe don`Ana, também chorando.

Naquele instante, movido pela emoção, também chorei, e certamente foi o choro de uma criança que nem mesmo sabia o significado da palavra suicídio. Creio que aquelas pequenas lágrimas foram pelo fato de me sentir um pobre prematuramente desamparado, e jamais havia sequer conhecido o chocolate.

Depois me senti calejado com o descaso que me impuseram e consolei-me ao me ver equiparado a outras tantas milhões de almas desamparadas, que provavelmente ainda vivem na mais promíscua necessidade, sem nunca se ter deliciado de um chocolate em pó nem made in USA, nem made in Brazil, nem made canto algum.

 

 

 


 

13/07/2005