Jorge Pieiro
Os Abismos Horizontais de Sérgio
Campos
Tempo e maturidade são fatores essenciais para consolidar as
relações viscerais entre a poesia e o poeta. Convém esclarecer que
essa afirmativa anula a concepção comum de tempo, enquanto
representação dos movimentos do Universo. Concebido assim, sem as
prisões estabelecidas pelo homem e seus métodos, mas como parcela
íntima e individual, o tempo do poeta contraria a inevitável
degeneração funcional e orgânica do ser humano. Dessa forma, permite
elastecer a mirada dos horizontes e aprofundar a contemplação das
esferas de vivência interior; já a maturidade, provável conseqüência
dos escrutínios da vida, toma-se motivo condutor da experiência
poética, estendida entre a realidade e o imaginário.
Com as cicatrizes marcando um rosto, um poeta busca luz ao beber o
sol e as constelações, para assim delimitar suas pedras, suas
veredas, suas margens e suas amplidões. É privilégio apenas de
verdadeiros poetas estabelecer os contornos do infinito e do ínfimo
pelo jogo e artifício das palavras com as quais lida.
Sem os alardes vazios de tantos poetas nacionais, apregoadores de
falsas grandezas, um poeta buscou a eternidade nas palavras e, com
elas, compôs um mundo manual, épico, abissal. Como se houvesse
cumprido o rastro da sua luz, legou-nos espetáculos de aurora e
crepúsculos um mundo sensível, belo e generoso de poesia. Embora já
ausente o principal protagonista, a singularidade do poeta carioca
Sérgio Campos (l941-1994), leva-me a reverenciar sua poesia pela
leitura reunida de seus dez anos de escrutínio de palavras.
Mar Anterior (Mundo Manual Edições, 1994) foi a celebração e o
registro apurado de sua poesia publicada. Selecionados e revistos, a
obra reúne poemas desde A Casa do Elementos (CE), 1984, Passando por
Bichos (B), 1985, Ciclo Amatório (CA), 1986, Montanhecer (M), 1987,
Nativa Idade (NI), O Lobo e o Pastor (LP) e As Iras do Dia
(ID),
todos de 1990, Móbiles de Sal (MS), 1991, A Cúpula e o Rumor
(CR),
1992, até Leitura de Cinzas (LC), 1993.
Mar Anterior é uma obra poética em dinâmico refluxo, que possibilita
reconhecer a variedade de estratagemas no possível sal marinho de
suas entranhas. Exala uma maresia provocada, não pelo agito das
ondas de um tempo infelizmente contemporâneo ao que resta de valor
sob a superfície desse nosso caosmos de todo dia, mas surgido de uma
complacência com os valores arcaicos da mitologia pulsante na
inconsciência de nossos cicios de sol e lua.
A um poeta que afirmou ter se fixado nas formas clássicas de poesia,
também a ele foi exigida a absoluta modernidade de seu dassicismo,
sob a ameaça de não ser compreendido pelos seus pares, e,
principalmente, pelas castas dos cartesianos e positivistas de
tocaia. Mas isso não importa tanto, pois para quem fazer uma arte
arcaica assustou mais aos outros poetas que ao poder, cabe-me
estender os olhos às suas poéticas como quem vai assumir uma postura
irremediavelmente solene, livre porém dos artifícios burocráticos.
A ausência desses efeitos de repartição pública é reflexo, talvez,
das declarações do poeta em várias situações e ocasiões, ao enunciar
que a sua estética era basicamente a da repetição. Não escreveu
Campos poemas semelhantes, mas os reescreveu elevando a escritura à
enésima potência. Quis cumprir a teoria da repetição ao recriar as
próprias versões de sua simplicidade harmônica. A prova precisa se
dá nesses versos do soneto Apenas o que Dou não é Perdido (LP):
"pois o que sei e fiz trouxe da ausência / e refazer é meu melhor
inventa" (p. 51).
Em sua curta trajetória poética de 10 anos Sérgio Campos não foi
apenas um transcriador dos mitos greco-latinos, mas um venturoso
perseguidor da consciência, um viajante na idealidade imaginária que
seguiu a trajetória da busca, como Odisseu, em seu Tecido de abismos
(ID): sigo em busca de um ouro em que tudo se oculta (p. 36).
Mar Anterior é uma peça solene. Reúne poemas que se reafirmam
formalmente em sonetos, odes ou formulações livres, enfeitados,
contudo, dentro de uma perspectiva épica moderníssima, o que
possibilita vislumbrar origens fragmentárias em suas extensões. A
obra, com seus entes, espaços, vazios e suas plenitudes reunidos de
forma sucinta, porém bastante impetuosa, sugere a intenção de Campos
em construir sua poesia como se construísse abismos horizontais. A
profundidade não é vertical; a perpendicularidade dos limites é que
revela a sua própria extensão...
Fazendo um paralelo com as construções poéticas greco-latinas,
premiadas pelo tempo e pela ousadia, ou com as procriações barrocas,
Mar Anterior deixa-se revelar como um exemplar iceberg poético, onde
as ruínas dos estilos aparentes ascendem do nível comum dos mortais,
deixando submersas as raízes de sua profusão, para mesclar-se com as
exigidas fagulhas da poesia mais contemporânea. Ora, não são das
ruínas, ou dos encantados ossos que se constrói uma urbe perdida ou
um ancestral?
Os poemas mais curtos de Sérgio Campos, na realidade pequenos
tentáculos de um abismo mais extenso, são os que considero mais
clássicos. Como constituem elos de um enunciado maior, (in)visível,
sugerem a figura dos submersos icebergs. Veja-se o exemplo nessa
Encantação dos Fios (MS): — "Ó Adriane / o que não se escreve para a
beleza / resta sempre inacabada" (p. 31), ou em Lumina (CR): "Entre
o que sucede / e intermedia / está a velocidade da flexa / contra a
corrente // entre o significado e Delfos o âmbar da profecia // "Mas
de inocência e perigo / a manhã faz seus ninhos" (p. 90).
Note-se que o caminho mitológico, nesses exemplos, são fragmentos de
erudição diante da grandeza metafórica das nuanças do cotidiano, da
incompletude eterna da beleza à possibilidade maniqueísta de como a
manhã faz seus ninhos...
do sótão ao porão
Como não poderia deixar de figurar entre os elementos essenciais de
uma poética, Sérgio Campos também definiu e deixou florescer
elementos simbólicos em sua obra. Exemplo mais evidente dá-se com as
construções em tomo da palavra ou do lugar-asilo, a casa. Com
efeitos extremamente valiosos, Campos ativa sua motivação e atenção
às notas de Gaston Bachelard, eminente fenomenólogo, em sua Poética
do Espaço.
Nos poemas dedicados à casa, ruminações dos espaços íntimos, Campos
imprimiu com precisão e sutileza a sua previdente solidão, por meio
de um texto figurativo, sem ilusões. A exemplo de um eremita que
devaneou com a audição de melodias provençais, o poeta revelou o
segredo de suas imensidões marginais: acendeu a vela no porão e
permitiu a luz do sótão... ou seja, revelou-se.
Em Ruínas Horizontais (MS), o poeta refletiu: "a casa / é seus
arredores" (p. 11); "raptos de aromas / de crianças no quintal" (p.
13); "a casa / é seus crepúsculos" (p. 14); "a casa / é suas ruínas"
(p. 16); "a casa / é seu corpo e viagem" (p. 17).
Numa evidente busca do passado, o poeta reviveu a ancestralidade de
seu espaço e foi consumido por sua gênese. Pois a casa foi / é ainda
"alvenaria de acasos", "vômito das clarabóias", "espantalho de
rendas no colo das tias", e tantas outras dimensões sintagmáticas,
que convergem para uma única compreensão da vida: "toda ruína é
humana". A essência do cotidiano, que engole a memória e desatina a
lembrança, é a própria fórmula da maravilha poética de Sérgio
Campos.
As Ilhas da Casa (CR) projetam-se mais graves quanto às conclusões
do poeta sobre seus arredores. Preso à sua sombra, o poeta admite
que "memórias são sucessões / de espelhos aprisionados" (p. 94)
para, em seguida, declarar de viva voz o seu desejo de regresso ao
hiato que o separa do passado. Tendo, ora as visões de todas as
janelas e corredores, ora de seus espaços imaginários, o poeta quer
" — Deixar as portas abertas / para paixões circulares" (p. 97).
Com essas imagens e as visões das extremidades cíclicas do espaço,
Campos reformulou as divagações de Gaston Bachelard, a respeito da
poética e da solidão. Coube a ele revelar aquilo que o fenomenólogo
sugeriu: "é fechado na sua solidão que o ser de paixão prepara suas
explosões ou suas façanhas". A casa, em Campos, é releitura de seu
devaneio; o quarto, a reflexão de sua intimidade. Mais uma vez
citando Bachelard, "o quarto e a casa são diagramas de psicologia
que guiam os escritores e os poetas na análise de intimidade".
Sérgio Campos desvendou ou tentou reconstruir sua "alvenaria de
acasos".
a redenção dos bichos e das frutas
Fundamento também singular na poética de Campos é o reprocesso dos
valores mais tênues da natureza. Sem subterfúgios, o poeta se
apropria do mundo vivo e sublima as facetas de seus bichos e
vegetais escolhidos. Com a criação de uma fitozoologia poética
particularíssima, Campos concentra páginas e páginas com suas
invenções reais da natureza. Interessante observar que as
reproduções poéticas dos bichos ou dos vegetais estão sintonizadas
com a metáfora definitiva. Ou seja, aquela metáfora que resiste ao
tempo, ao mesmo tempo em que desfruta de uma esplêndida
simplicidade.
Observe essa constatação em Caju (NI): "Pendurado / em suas vírgulas
/ ama a gramática /dos sabiás" (p. 119).
E um caso feliz de composição da natureza a partir dos elementos
objetivos da língua. Parece que é possível ouvir e entender a
melodia dos sabiás, uma vez que a relação simbiótica entre caju e
pássaro logo é decodificada pelo poeta para que o entendimento dê-se
plenamente. Sugestionando pela mensagem, Campos, conscientemente ou
não, ensina que a natureza não carece apenas de contemplação ou zelo
ecológico. A metáfora sugere que a natureza é a própria encarnação
do sentimento de cordialidade e respeito que deveria ser a tônica
desta vida terrena.
Seguindo o mesmo caminho, aproxime-se deste Peixe (M): "O peixe /
desenha / o rio // E a voz desse rio / rama em romaria // Um rio /
sem peixe / é um rio / sem rio" (p. 116).
A verdade da última estrofe é fundamental. A negação de um elemento
da natureza, inerente ao seu ambiente, é a própria negação do todo.
A parte nega o todo! Que melhor forma de exprimir uma figura com a
simplicidade de um nado, ou um vôo, como em Passarinho (NI)?: "Para
voar / não é preciso / ser leve // mas / fácil" (p. 112).
Os traços poéticos de Sérgio Campos nesses esboços de natureza,
nessas raízes emergentes são aqueles que mais identificam a idéia
possibilitada anteriormente, a partir dos volumes aparentes de
"icebergs". É com esses poemas mínimos que a cosmopoética de Campos
traça mais veementemente a trajetória de suas evoluções.
últimas reflexões
Definir a poesia de Sérgio Campos é uma tarefa inexeqüível. Assim
como não se deve exigir de um poeta a sua própria definição, apesar
de tentativas, também não convém enjaular um poeta, uma poesia. O
poeta é livre até ao se deparar com a sua lógica.
Vale aqui repetir trecho de um depoimento de Baudelaire a respeito
da origem e do propósito de recomendações críticas: "Sinto pena dos
poetas guiados apenas pelo instinto; me parecem incompletos. Na vida
espiritual dos poetas deve ocorrer um momento de crise, em que
repensariam sua arte, descobririam as leis obscuras que os levaram a
produzir arte, e chegariam, através desse estudo, a uma série de
preceitos cujo grande propósito seria a infalibilidade na produção
poética."
Pois parece que Campos seguiu essa sugestão. A sua crise foi longa,
porquanto foi curta a sua vida. Em apenas 10 anos de poesia, e aqui
afirmo que o tempo íntimo do poeta tornou-o consciente de sua arte
madura, Campos conseguiu construir um coração para o espelho de suas
idéias.
E óbvio que para se inteirar das revelações poéticas do poeta,
algumas vezes o leitor desavisado pode não perceber as evidências de
suas estratégias, o que é plausível, no entanto, pois ali se
instaurou a sombra mais íntima, o abismo mais próximo do poeta, onde
são vedados os passos do estranho interlocutor em seu silêncio de
busca. Nesses casos, penso que é melhor ser o culpado: o leitor que
me desviei. Auden já proferira que "os interesses do escritor e do
leitor jamais são os mesmos e se ocasionalmente chegam a coincidir,
trata-se de mero acaso." Não posso generalizar.
No entanto, posso concluir que deve ser eternizado o bom poeta
Sérgio Campos, mesmo diante de uma cena dos Jogos Perigosos nº 2 (LC):
"O abismo celebra / ofícios de pedra" (p. 132).
Leia a obra de Sérgio Campos
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