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			João Soares Neto 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
			
			João Soares Neto entrevista 
			José Alcides Pinto 
			Julho de 2005 
			 
  
			
			Eu era pixote na Rua Monsenhor Otávio 
			de Castro, bairro de Fátima, em Fortaleza. Vizinho à casa dos meus 
			pais havia uma criação de marrecas e, de vez em quando, lá aparecia 
			um sujeito magro, meio esquisito, da idade do meu pai, mas bem 
			diferente. Dias, aparecia de paletó e gravata; meses depois, vestido 
			de franciscano e, algumas vezes, quase normal. Era irmão da D. 
			Mirian, a vizinha da esquerda, a dona das marrecas. Procurei saber o 
			que ele fazia. Poeta, foi a resposta. Esta foi a minha iniciação com 
			ele. Distante, o quanto pode ser a relação de um quase menino com um 
			homem estranho. Próxima, por me encantar a forma como ele se 
			portava, sem ser o que os outros eram. Ele era ele. 
			
			Um dia tive a ousadia de mostrar um 
			escrito qualquer meu a ele. Olhou, riu e disse só isso: vá em 
			frente. Ele nem lembra disso. Décadas se passaram. Agora, em figura 
			de admirador confesso, estou aqui a amealhar palavras para 
			entrevistar o poeta, ensaísta, ficcionista e teatrólogo, José 
			Alcides Pinto, o visitante da casa das marrecas. Premiado, 
			consagrado, maduro e lúcido como pode ser um homem que vive além do 
			real, tal um Quixote de muitas dulcinéias, que não vê moinhos de 
			vento, mas faz, com seus múltiplos escritos, mudar o vento da 
			mesmice da literatura brasileira, especialmente da que se configurou 
			como a geração pós 45. 
			 
			 
			JS – O que faziam os seus pais em São 
			Francisco do Estreito, às margens do rio Acaraú, além de fazer 
			filhos?  
			 
			AP – Fazer filhos e fazer filhos 
			sempre. Além dos 17, consignados em cartório, fora os que morreram 
			anjos, mais de um coro. Faziam de tudo para sustentar a ninhada. 
			Trabalhava no eito batido, sol a sol, em terras alheias. Era 
			destemido, dinâmico, honesto e de muita fé em Deus, manso e 
			arrogante a um só tempo. Tenho muito dele. Levantava-se com a 
			estrela da manhã e dormia do horário das galinhas. O tempo é pouco 
			para tudo - dizia. O Surpreendi, muitas vezes, chorando, premido 
			pela necessidade extrema. Um dia teve que abandonar cinco filhos 
			menores na Estrada Real que dava para Sobral, para não vê-los morrer 
			de fome. Aqui só há a verdade, porque haveria de mentir? Minha mãe 
			tentava abafar seus soluços nas contas do rosário. Não sei dizer 
			como e nem quando meus irmãos voltaram ao lar. 
			 
			 
			JS – Que atavismo o impregnou para 
			escrever a sua famosa trilogia? 
			 
			AP – A experiência e, sobretudo, os 
			sofrimentos pelos quais passei na infância. Atavismo! O sangue 
			puxado da cabeceira da raça na reprodução da espécie. Por outro 
			lado, vivi meus primeiros anos na aldeia numa promiscuidade sem 
			limites. Tudo isso, está escrito em meu primeiro romance, “O 
			Dragão”. Os costumes e as mazelas de seus habitantes fixaram-se em 
			minha mente e juntaram-se à minha vocação para as letras e para as 
			artes. Meu pai (esqueci-me de dizer) era um poeta nato, puxado aos 
			varões mais primevos da família. 
			 
			 
			JS – Que ventos o tangeram de Santana 
			do Acaraú e pra onde? 
			 
			AP – Meu pai foi morar em Massapê, 
			trabalhar num curtume e carregou os filhos com os cacarecos. Fui 
			estudar com D.Maria do Carmo, rebento da tradicional família dos 
			Pontes. Professora “de casa” sem colégio. De Massapê ingressei no 
			Líceu do Ceará e fui trabalhar com meu tio Hermano Frota, no seu 
			escritório de corretagem da Rua José Avelino, Fortaleza, e passei a 
			morar na Casa do Estudante, na companhia do poeta boêmio Sidney 
			Neto. 
			 
			 
			JS – O que era o Ceará quando você se 
			mudou para o Rio e por que foi? 
			 
			AP – Na época, Fortaleza era bem 
			melhor. Havia sossego. Os estudantes eram mais idealistas e os 
			professores mestres e educadores. Uma geração heróica,como a de 
			Odilon Braveza (Colégio São João). No Liceu do Ceará, tínhamos 
			Martinz de Aguiar, Otávio Farias, Domingos Barroso, Edmilson Souza 
			Lima e alguns outros. Não esquecer os educadores, propriamente dito: 
			Lourenço Filho, Filgueiras Lima e poucos mais. Saindo da bonança 
			para os “tornados”, falemos agora da mocidade e das mulheres, 
			sobretudo das “mulheres livres” da famosa “Pensão da Graça” (veja-se 
			o romance “Doutora Isa”, de Juarez Barroso). Voltamos ao tempo dos 
			americanos em Fortaleza, mascando chicletes e comprando as garotas 
			da sociedade. Detalhe importante: lembrar o consultório do Almeida 
			na Rua São Paulo. Como a sala de espera era pequena, fazia-se fila 
			na calçada, tinha até freira à espera. Almeida era farmacêutico de 
			diploma e de anel. A maioria de seus clientes sofria de blenorragia 
			(esquentamento, gonorréia) – eu mesmo era um deles. E sem falar aqui 
			no clássico “Curral das Éguas” e da zona de mulheres da Franco 
			Rabelo. Hoje, Fortaleza está infestada de putas. A praia de Iracema 
			virou passarela, nos becos, nas esquinas das ruas, e por onde se 
			passa. Vamos ao fim da pergunta. Mudei-me para o Rio porque tinha 
			uma vontade louca de trabalhar e estudar sempre pensando em ajudar 
			meus pais. 
			 
			 
			JS – O que lia na sua juventude? De que 
			forma? 
			 
			AP – Tudo que me caía às mãos: Sem 
			disciplina, regras, predileção. Mas o que mais me incitava era o 
			romance, o canto, a poesia, e a biografia dos grandes homens etc. 
			 
			 
			JS – O Rio, antes do Aterro do Flamengo 
			e do alargamento da Av. Atlântida, era um novo mundo ou o eldorado 
			para quem tinha sede de saber? 
			 
			AP – Eu peguei o Rio em pleno esplendor 
			em 1945, época da guerra. A cidade era dos boêmios, infestada de 
			cabarés. Andava-se em paz durante o dia e a noite. Não havia metrô, 
			mas os bondes comunitários, sempre domésticos e solidários. E para 
			quem tinha sede de saber, como eu, o Rio era ideal. Fui um dos 
			freqüentadores mais assíduos da Biblioteca Nacional, que só fechava 
			às 11 da noite. 
			 
			 
			JS – Como se meteu com biblioteconomia 
			na Biblioteca Nacional? Repetia a saga inicial de Capistrano de 
			Abreu?  
			 
			AP – Acabara de ser fundada a 
			Universidade Federal do Ceará (UFC). Eu, Artur Eduardo Benevides e 
			alguns outros fomos os primeiros funcionários, foi quando ganhei uma 
			bolsa de estudos do Instituto Brasileiro de Bibliografia e 
			Documentação, no Rio,mas para freqüentar o curso tinha que possuir o 
			diploma de Biblioteconomia, o que fiz depois, passando o carro à 
			frente dos bois.  
			 
			 
			JS – Daí, mandou-se para o Ministério 
			da Educação e passou a redigir. Algum dia se extasiou com a beleza 
			do prédio desenhado por LeCorbusier? 
			 
			AP – O mural de LeCorbusier fica no rol 
			na entrada do Ministério da Educação, de sorte que tinha que vê-lo 
			todo dia quer queira ou não. Uma obra fina de arte que fascina o 
			espectador. Eu me detinha a contemplá-lo antes de tomar o elevador 
			para o Serviço de Documentação no nono andar.  
			 
			 
			JS – No início dos anos 50 resolveu 
			fazer coletâneas. Qual a razão? 
			 
			AP – Trabalhava como redator no Serviço 
			de Documentação e tinha por finalidade fazer o acompanhamento e 
			revisão dos cadernos de cultura e outras coleções, além de redigir 
			com o escritor Xavier Placer, o Catálogo das Publicações do MEC. 
			 
			 
			JS – Dito por você: “Eu acho que a vida 
			é diabólica. Sou uma pessoa em sintonia com o mundo 
			desconhecido...”. Você ainda pensa, vive e age assim? 
			 
			AP – Não há porque mudar. A vida, para 
			mim, não oferece outra opção, e o sobrenatural faz parte de minha 
			natureza e minha arte. 
			 
			 
			JS – Depois das coletâneas, surge o 
			poeta com talento e uma nova linguagem.Isso se deve a quê? 
			 
			AP – A leitura dos grandes poetas e 
			escritores nacionais e estrangeiros me incentivou cada vez mais a 
			ingressar definitivamente na literatura. 
			 
			 
			JS – Como foi o seu reencontro com o 
			Ceará literário dos anos 60? 
			 
			AP – Não foi difícil a convivência com 
			os intelectuais da época. Nunca perdi o contato com os escritores 
			dos anos 60, uma vez que minha vida literária teve início no Ceará. 
			 
			 
			JS – Você se considera um beato, 
			demônio, religioso, maldito ou perdido nesta dimensão?  
			 
			AP – Não me perco por caminhos nem por 
			rodeios. Sei o que quero e onde quero chegar em qualquer sentido: na 
			religião, com Cristo Nosso Salvador. E o diabo em minha literatura é 
			apenas uma figura de retórica, emblemática. Valorizo-o e 
			ridicularizo-o no decorrer de minhas estórias. É o bobo da corte. 
			Papai Noel de chifre e rabo. Tanto faz aplaudi-lo como vaiá-lo. Nos 
			meus escritos ele ocupa sempre uma posição ridícula, burlesca, 
			veja-se em meu teatro “Equinócio”. No Beato pego carona. Sou por 
			natureza um homem místico. 
			 
			 
			JS – São Francisco é o lugar onde 
			perdeu o umbigo, um santo, uma referência ou ume espírito que baixa 
			em você?  
			 
			AP – É mais que isso. Foi o lugar onde 
			primeiramente perdi a virgindade, perseguindo os animais, atendendo 
			aos meus instintos atávicos. Ainda hoje temo ser punido por isso. 
			Tinha 10 anos, mas no lugar não havia rapariga. E espírito não baixa 
			em terreiro, se em verdade baixa. Sou devoto de São Francisco. Vez 
			por outra visto seu manto. Para mim é um objeto sagrado como uma 
			imagem. 
			 
			 
			JS – Qual a parte, época ou livro da 
			sua obra que jogaria nas profundezas do rio Acaraú? Ou nunca faria 
			isso? 
			 
			AP – Nenhuma parte, época ou livro de 
			minha obra jogaria no Acaraú. O rio é a ama de leite que não tive. 
			Às vezes sonho com suas enchentes, às vezes com seu leito cheio de 
			vazantes ou simplesmente coberto de areia. Foi no Acaraú que aprendi 
			a nadar e a pescar. Já joguei fora muitos poemas e alguns livros. 
			Mas não faria isso com o rio de minha infância. 
			 
			 
			JS – Por que o poeta virou ficcionista, 
			ensaísta e teatrólogo? 
			 
			AP – Sou inquieto e trabalhador como 
			meu pai. O sol não me pega na cama. Ser só poeta para mim era pouco, 
			portanto abracei com mesmo ímpeto o romance, o conto, o teatro etc. 
			E cheguei a enveredar pelo mundo das artes plásticas ao tempo de meu 
			namoro com o concretismo.  
			 
			 
			JS – Concorda com Alceu de Amoroso Lima 
			que dizia que “a qualidade nasce da quantidade”? 
			 
			AP – Moreira Campos tinha a mania de 
			dizer: “Eu o invejo, porque em todos os gêneros literários você se 
			sobressai bem”. Mas eu rebatia: Deixe de besteira, Moreira. Tem 
			gênio de um só livro, como o Augusto dos Anjos, ou de pouquíssima 
			obras a exemplo de Flaubert, Moacir de Almeida, descoberto por 
			Procópio Ferreira, autor de “Gritos Bárbaros”, tinha apenas 20 anos, 
			gênio e continua ignorado no Brasil. 
			 
			 
			JS – Será que você não está se 
			contradizendo ao dizer no livro “Política da Arte (Ensaios de 
			Crítica Literária), que: “o poeta é aquele que sabe apreender a 
			beleza das coisas invisíveis e materializá-las em palavras, dentro 
			das leis criativas e fora dos esquemas da lógica”?  
			 
			AP – Nada tem lógica em matéria de 
			arte, seja inventiva ou tradicional. Alguém encontra lógica, por 
			exemplo, nos quadros e nos murais de Picasso, Portinari, ou mesmo em 
			Barrica? Tristão de Athayde era um pensador e um grande crítico. Da 
			quantidade nasce a síntese, portanto a qualidade. O Alceu estava 
			certo.  
			 
			 
			JS – O que é uma Academia de Letras?
			 
			 
			AP – Um elenco de homens e mulheres que 
			se reúnem, falam e discutem sobre literatura sem muita convicção. É 
			mais uma sociedade de curiosos e especuladores que pensam que a 
			imortalidade tem a ver com idéias individualistas. São, não 
			obstante, pessoas de bem, a quem devemos aplaudir, pois se não fazem 
			bem, também não fazem mal. 
			 
			 
			JS – Viver do que escreve, abdicando a 
			burocracia e as regras do cotidiano, trouxe mais ventura ou 
			pesadelo? 
			 
			AP – Foi para mim, não obstante os 
			percalços, a melhor coisa que me aconteceu. Em verdade, tirou-me 
			todas as comodidades, fiquei mais pobre do que era, mais ao mesmo 
			tempo (e isso não se constitui contradição) mais rico. Possuo um 
			tesouro que nem o fogo nem a inveja destroem. Sonhei a vida inteira 
			ser um escritor, e consegui. E reconheço minhas limitações, que não 
			são poucas, mas até o velho Machado dizia que as possuía.  
			 
			 
			JS – Floriano Martins, crítico 
			literário, define a sua escrita como “a presença de uma linguagem 
			fragmentada, entrecortada por imagens bruscas, e a busca atormentada 
			de mais realidade”. É por aí mesmo? 
			 
			AP – Floriano está certo. Não imito 
			ninguém. Minha arte é o modelo de minha vida: fragmentada. Estou 
			sempre criando, fazendo, destruindo e vice-versa, como disse 
			Cassiano Ricardo no prefácio dos Cantos de Lúcifer: “Alcides Pinto 
			muda sempre, no espaço e no tempo, pra nunca estar de acordo consigo 
			mesmo”. 
			 
			 
			JS – Dos que nasceram na sua década de 
			20 e se fizeram, entre outras coisas, poetas, quem você considera do 
			seu nível? Francisco Carvalho, José Paulo Paes, Lêdo Ivo, João 
			Cabral de Melo Neto? Ou serão outros?  
			 
			AP – Não desejo morrer enforcado. Todos 
			os nomes citados são grandes. É o que posso dizer. 
			 
			 
			JS – Se tivesse que associar a sua 
			figura e arte a um vulto consagrado da literatura, quem seria? 
			 
			AP – Ao Poeta Augusto dos Anjos no 
			Brasil ou Rimbaud na França. 
			 
			 
			JS – Há crítica literária no Ceará? 
			Como é a crítica literária brasileira? 
			 
			AP – Não. O Brasil, no momento, 
			ressente-se de bons críticos. Pinta um Wilson Martins, um Ivan 
			Junqueira, Au revoir! Álvaro Lins, Haroldo de Campos, Fausto Cunha e 
			poucos outros já “viajaram”. Temos bons comentaristas, mas a 
			pergunta é sobre críticos... 
			 
			 
			JS – “ João Pinto de Maria: Biografia 
			de um louco” tem tudo ou pouco a ver com você? 
			 
			AP – Tem tudo a ver comigo. Era meu 
			avô. É, sem favor algum, o ponto mais alto da Trilogia da Maldição, 
			por ser João Pinto o único personagem que sustenta a narrativa do 
			começo ao fim. 
			 
			 
			JS – Quem conta nas letras do Ceará 
			nesta virada do milênio? 
			 
			AP – Salte a pergunta, por obséquio. 
			Deu um branco. 
			 
			 
			JS – Do que se arrepende de não ter 
			feito?  
			 
			AP – Devia ter sido mais compreensível 
			e gentil com as mulheres. Eu era muito egoísta e por isso mesmo 
			sofri muito, e ainda sofro, pois algumas das mulheres que amei, 
			estão mortas e outras vivas, mas amo mais aquelas do que estas. Que 
			fazer?  
			 
			 
			JS – E o que dizer da política 
			brasileira e das CPIs?  
			 
			AP – A única esperança do povo 
			brasileiro era o Lula na Presidência, mantendo a integridade do PT. 
			Isso foi um sonho? Um pesadelo? Ou foi mais que isso? O certo é que 
			o País está mergulhado num mar de lama e está difícil sair dele 
			inteiro. 
			 
			 
			JS – Quem falará por você na hora do 
			adeus? O beato, o fauno, o Dionísio ou o satânico? 
			 
			AP – O Beato. 
			 
			 
			JS – Quantos livros já escreveu como 
			Ghost Writer?  
			 
			AP – Muitos. Para falar a verdade uns 
			10. A maioria no Rio. Alguns se tornaram famosos. Que ironia! Mas 
			que fazer? Vivo trocando os miolos da cabeça por miolos de pão. 
			 
			 
			JS – Você concorda com Oscar Wilde 
			quando ele dizia que “vivemos numa época em que coisas 
			desnecessárias são as nossas únicas necessidades?” 
			 
			AP – O que diz Oscar Wilde reflete 
			fielmente sua natureza e a natureza humana. Ele foi um equívoco na 
			sociedade patriarcal de seu tempo. Tratou-a impiedosamente em seus 
			escritos, tendo como castigo a prisão onde escreveu um dos mais 
			belos poemas da literatura inglesa. “A Balada do Cárcere de Reading” 
			(The Ballad of the Reading Gaol).  
			  
			
			  
			
			
        
			
			Leia José Alcides Pinto 
			
			  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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