8.6.2008
O eu lírico e a metalinguagem
A escritura de José Telles
é filtrada pelo que, dependendo da relação que estabeleça com o
estar-no-mundo, pode anunciar-se como a expressão de um desencanto em
relação à engrenagem social ou mergulhar mais em suas próprias entranhas,
em introspecção.
O solo das chuvas, vencedor do Prêmio Osmundo Pontes/2007, não só confirma
tal tendência, mas lhe aponta, por outro lado, mais uma faceta: a de,
livro a livro, concentrar-se, predominantemente, num determinado interesse
temático; e, com tal procedimento, encontrar - o que não deixa de ser
inusitado - caminhos novos. A obra de arte literária comporta abertura;
nesse sentido, visaremos a uma exegese desse livro, na busca de
identificar-lhe os processos estilísticos e os caminhos temáticos,
visando, com isso, descrever-lhe a composição, concentrando-nos,
especificamente, nos processos metalingüísticos.
O poema-título imprime-se, antes de tudo, como uma epígrafe: ´O pó de
minhas têmperas / apascenta os cílios da noite. / Um solo de chuva /
açoita a primavera da memória. / Minha eternidade / se assenta no sal de
meu delírio / e o azul de minhas lembranças / embala meus silêncios.´
Trata-se, portanto, de um metapoema, uma vez que reflete acerca da relação
que o eu lírico mantém com o fazer poético.
Decompostas as ´têmperas´, isto é, o ímpeto para a sua caça às palavras,
entrega-se, passivamente, à insônia. No entanto, surge ´Um solo de chuva´,
com a força de seu sumo inaugural: a poesia apresenta-se ao poeta,
rompendo a crosta que o separava do encantamento; por isso, tudo o que é
efêmero se conserva, magicamente, em sua escritura, sendo, assim, ´o sal´
de seu próprio ´delírio´.
O que a vida lhe tira, com a gravidade de sua ferrugem, recupera
poeticamente - e e isto o pacifica. O verso ´Um solo de chuva´,
relacionado à natureza geral das composições, revela a natureza plural do
título ´O solo das chuvas´: se há uma relação intrínseca entre o poeta e o
poetar, o ´solo´ é o livro; e as ´chuvas´, os poemas - suor e lavoura,
colheita, portanto, de seu embate com o mundo.
Nesse livro, os exercícios de metalinguagem orientam, quase sempre, a
criação poemática, ainda que possam, também, inscrever-se, tão-somente,
como uma digressão e não se concentrar nos vazios ou nos empecilhos do ato
de criação poética, como, por exemplo, observamos nesse fragmento de
´Jardim com pássaros e silêncios´: ´Estes pássaros que jantam comigo / e
me convidam a voar / nem percebem que estou preso / nessa gaiola de pedra
/ No salitre dessa paisagem / rumino silêncios / e encaderno palavras.´
Mais uma vez, deparamos a relação do poeta com o poema: preso a uma
´gaiola de pedra´, as palavras-pássaro - as que comparecem à sua ceia
-incitam-no à libertação pelo poético; é como se apenas a partir do ato de
fazer poesia fosse possível a tessitura dos vôos. Sendo assim,
contemplando essa inefável e incorpórea ´paisagem´, o eu lírico
retira-lhe, tacitamente, o adubo, triturando o mosto desse momento, para,
por fim, livrar-se daquela ´gaiola´ e, invertendo a situação, encadernar
aquelas palavras-pássaros, isto é, pô-las nas grades de uma folha de papel
e, depois, juntá-las ao livro.
Em ´Palavras no azul´, na segunda estrofe, ´ As palavras definem meu
contorno / e se bifurcam n´alma / sou prolapso no carrossel das heranças.´
num emaranhado de sugestões, o poético se instaura a partir do desvio
sofrido pelo termo ´prolapso´, pois este, metaforicamente, estabelece um
elo entre a exterioridade - sugerida por ´contorno´, remetendo, assim, a
um corpo, expressão da matéria física - e a interioridade, definida por
´alma´.
As ´palavras´ expressam o sentido do que seja, deveras, um poeta: um ser
de quem só se conhece o ´contorno´, ou seja, circunscrito apenas em sua
superfície; e é exatamente isso o que dele elas dizem, se postas no eixo
da horizontalidade; por outro lado, as ´palavras´, estando num permanente
torvelinho, quando mergulhadas em sua subjetividade - dele, poeta -,
revelam, agora de modo vertical, que ele, também, não sabe de si; desse
modo, por desconhecer seus próprios abismos, vive a vigília de uma
vertigem, sendo: ´prolapso no carrossel das heranças´. E a poesia é
elemento de salvação.
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