Júlio Lira
Por que a humanidade precisa
suicidar-se
Entrar no último quarto era uma
experiência que à distância e nos planos parecia agradável. Gostava
de minerar, meio às tranqueiras, alguma peça sem valor aos olhos de
outros, mas que nas suas mãos ganharia novo significado. Quem sabe,
achar a máquina de moer grãos do século passado, talvez uma relíquia
de bronze escondida no meio do ferro velho. Passar do portal,
entretanto, era bem diferente. As consecutivas camadas de poeira
revestiam os objetos, saltavam para o ar, criando um cubo denso,
hermético, pronto para defender-se das novas gerações, repelindo-as,
mas ao mesmo tempo agregando apegos e reservas. A madeira, o
alumínio, o ferro, os metais, os plásticos um dia móveis,
esquadrias, luminárias, componentes elétricos, ferramentas,
recipientes, quinquilharias, naquele dia lanças, espinhos,
armaduras, carapaças, cofres, amálgama familiar e hostil a qualquer
presença. Os olhos ardiam, as narinas produziam secreção, as pernas
não conseguiam evitar pequenos cortes, o suor misturava-se ao pó e
tudo se apresentava desinteressante ou inacessível. O que parecia
ser uns pés de madeira recurvados estava sob uma tonelada de portas
e janelas; retirá-lo de lá significaria mover uma montanha sem ter
onde por a montanha - percebia instantaneamente.
O armário de ferramentas do avô era
uma peça incomum nos dias de hoje. Robusto, cada prateleira
sustentava dezenas de objetos de ferro. Que madeira seria aquela? No
meio daquele quarto parecia um soldado guardando um segredo de
estado. Afastou as latas de tintas endurecidas e pode perceber mais
ao fundo o ferro da balança de pesar fardos com folhas de fumo.
Quantos milhares de arrobas e rios de suor aqueles pedaços de ferro
fundido haviam mensurado? Quantas negociações premidas pela fome e
pela devastação haveria observado? Não teria coragem nem de
tocá-los. Hoje, gerações adiante, a casa grande havia se transferido
para a cidade, e os novos ramos da árvore testavam novos terrenos,
novas habilidades. Em quase todos, a mesma disposição para separar o
mundo em moradores, agregados e donos, em gente de bem e caboclos. E
por sua vez dividir os caboclos em duas espécies. De um lado, os
honestos, trabalhadores e respeitosos; de outro, os vagabundos,
imorais e enxeridos. Destes, sempre souberam separar-se. Dos
primeiros, abriram as portas da casa, comeram com eles, riram com
eles, cresceram e morreram com eles. Olhava aqueles pesos e pensava
sobre a quantidade de risadas e perguntas interessadas que
reverberaram neles. O que pensar daqueles afetos?
Duas das cadeiras do jardim estavam
lá, uma sobre a outra, numa improvável e interminável relação
sexual. Era no jardim que seus avós recebiam as visitas. Primeiro
ela surgia sorridente, logo em seguida ele descia os batentes da
varanda, ainda abotoando a camisa. Repassavam as notícias, falavam
do inverno, das novidades na vida dos conhecidos, lamentavam alguma
desdita, tomavam o café ou almoçavam. Vez ou outra emprestavam algum
dinheiro e o mundo continuava rodando.
Debaixo de lonas e de vários pares de
sapato e um de patins encontrou uma caixa de metal, fechada com um
pequeno cadeado. Só faltava encontrar uma fortuna de réis
desperdiçada e corroída no esquecimento. Puxou a caixa com força,
arranhando-se nos arames misturados à lona, balançou-a, mas não
percebeu nada. Saiu do quarto e respirou fundo. De volta à
superfície, as pernas trôpegas, um sentimento de alívio soltou-lhe a
respiração bruscamente.
Agora parecia se dar conta de que
atravessara um perigo que não sabia dar contornos ou nomear, mas que
já estava distante, salvo por aquela pequena caixa. Ainda hesitou,
quem sabe não fosse melhor dar dois passos para trás e deixa-la em
qualquer lugar, uma rosebud aberta ao acaso?
A possibilidade de encontrar algum
maço de cédulas prontas para colecionadores afastou a teoria do caos
para longe das suas preocupações e tratou de arrombar o pequeno
cofre com uma chave de fenda. Vinte minutos e algum esforço depois
abriu a tampa cuidadosamente, com o zelo de quem lava cristais, como
se há poucos instantes não houvesse sacolejado e atacado o objeto
com violência. Um silêncio saiu do meio dos papéis, passou pelo seu
corpo e impregnou a atmosfera. Pandora deve ter ouvido um silêncio,
pensou.
Papéis. Cadernos. Doze cadernos, de
tamanhos, formatos e cores variadas. Em todos a mesma letra decidida
e esgoelada na tentativa de seguir a velocidade do pensamento ou do
delírio. Florestas de parágrafos, frases, palavras riscadas e
rescritas.
Encostado na coluna da varanda,
concentrado, percebeu que um sistema alfanumérico colocava os textos
em ordem formando um único trabalho. Quando por fim achou o
primeiro, assustou-se duas vezes; a primeira, com o autor, um dos
tios-avós por parte de mãe, o mesmo que se trancara em um quarto e
se recusara a sair durante quarenta e cinco anos. Diziam que ele
ainda estava fugindo da II guerra. Também comentavam que havia
ficado doido de tanto estudar. No dia que saiu do quarto, foi tomar
banho de mar e morreu afogado. Estava todo roído por baratas d’água
- repassavam a informação as crianças mais velhas para as mais novas
em uma navegação que rompia suavemente as lacunas da história.
O outro susto foi com o título. Talvez
fosse melhor deixar as coisas como estavam, a caixa ainda agüentaria
uns cem anos. O silêncio já havia deixado de existir, de alguma casa
vizinha uma rádio rodava suas peças de resistência, como um cachorro
a ampliar limites mijando muros e quintais. O ar parecia rarefeito,
a sensação era que a força da gravidade estava prestes a fraquejar,
deixando tudo, prédios, carros, móveis, lixo, pessoas, postes
flutuarem, para por fim se perderem no vácuo do espaço.
Porque a humanidade precisa
suicidar-se Estava ali na capa do primeiro caderno a prova da
maluquice. Por isso permanecia no meio do lixo - o lugar mais
apropriado. Mas ao mesmo tempo em que fermentava a repulsa pelos
cadernos, pelo negrume que pressentia entre as páginas, estava
curioso pela pessoa. Uma ou outra frase pinçada deixaram-no de
prontidão. Quando o homem estava prestes a dar um salto dentro da
própria vida – era esta a promessa do século XIX e do século XX -
redefinindo o sentido, as condições e a manifestação da
espiritualidade, assenhorando-se do tempo e do próprio corpo, ele
reinventa e se submete ao processo de criação dos simulacros,
reorganiza os sistemas hierárquicos, realinha-se a novos rebanhos,
reaprende a conformar-se. Todas contradições a este conjunto são
parciais e levianas, porque profundamente descrentes da capacidade
humana.
Não, formalmente não discordava dele;
a liberdade parecia estar migrando para dentro das casas, e mesmo
ali, começávamos a exercê-las dentro de simulacros a que ele se
referia. Quantos não haviam se transformado em avatares? Preocupação
besta, essa. Coisa de quem não tem rumo, ou já ganhou o dia. Quem na
face da terra pode falar orgulhosamente “eu sou livre”? Faz parte da
convivência perdemos para ganhar. Que espetáculo mais romântico e
mais programado que Peter Fonda correndo pelas estradas, sendo
assassinado a tiros de espingarda? Deve ter ficado parecido com
animal atropelado. O personagem, claro. Sim, no geral, concordava
com ele, mas alguma coisa não batia, como num mecanismo de relógio
funcionando, com peças bem encaixadas e respondendo umas às outras,
sem garantir, porém, a hora certa.
Naquela mesma tarde fez a primeira
leitura. Descobriu que não era um amontoado de palavras. Continuava
achando repugnantes as conclusões, mas vagarosamente apaixonava-se
pelos argumentos e pela forma com que eram expostos. Toda noite,
após o trabalho, dedicou-se a ler e a digitar o texto. Nunca o
entregaria a outras pessoas, mas facilitaria a leitura e
consequentemente a sua crítica. Entendeu muitas idéias que lhe
pareceram confusas num primeiro momento. O capítulo em que
desenvolvia o conceito de círculos infernais pareceu-lhe terrível.
Nele estava escrito que era possível reconhecer e registrar a
existência de círculos destrutivos, bem como calcular a capacidade
do ser humano desenvolver um movimento centrífugo capaz de tirar-lhe
desta que era a forma mais eficaz de aprisionamento, e que estes
conceitos eram aplicáveis a indivíduos, grupos, sociedades. Aquele
livro era ainda mais abrangente: identificava círculos infernais em
que humanidade se movimentava e calculava como insuficiente a
quantidade de força centrífuga necessária à sua libertação.
Pelo menos no tocante a existência dos
círculos ele fora um visionário apontando problemas que seus
contemporâneos estavam longe de perceber. O Círculo da Voracidade,
por exemplo, apontava para as necessidades crescentes das pessoas e
sociedades, criando uma demanda de plasma vital – o que será que ele
quer dizer com isso? – que a natureza e a convivência humanizada
serão incapazes de fornecer. Hoje, essa leitura do mundo é feijão
com arroz da maioria dos ecologistas. Mas num ponto são diferentes:
ele não tinha esperança alguma. E eu? - pensava obsessivamente -
tenho esperança? Ou sou um autômato, esperando que a corda acabe?
Talvez sim, mas com uma diferença: profundamente impressionado com
as migalhas que aparecem. Como na história de Joãozinho e Maria, são
elas que levam para um caminho. Estar diante do outro, poder rir,
enternecer-se, preocupar-se não são pequenas coisas que nos conduzem
dia após dia para longe do forno da bruxa? Ou fará parte do círculo
infernal o pássaro que come as migalhas?
As compensações
existem para tornar a vida desejável. A esfera doméstica tornou-se o
refúgio no qual procuramos reinventar a vida, como se fosse possível
criar um simulacro de nossos sonhos entre quatro paredes. Do vinho,
passamos à necessidade do queijo, do pão, da terra escura, arejada,
úmida, perfumada. Como faltam, oferecem-se labirintos espetaculares,
jogos de espelhos, carrosséis de imagens, brinquedos de cristal a
nos entreterem, fazendo do tempo humano não mais uma ampulheta onde
os grãos desaparecem num alçapão misterioso, mas um relógio com os
ponteiros a indicarem, obsessivamente, as mesmas mensagens.
Olhou para o relógio, era hora de
dormir. No dia seguinte teria que acordar cedo, criar ânimo e ir
para o trabalho. Talvez fosse bom parar de ler aquele livro. Estava
ficando deprimido. Pensava ter mais forças ou inteligência para
contrabalançar aquele receituário do desespero, mas não.
Descobria-se ingênuo, infantil com suas esperanças miúdas, quase
mágicas.
Fosse como fosse, era um grande livro,
um livro terrível, mas um grande livro. Levantava questões mortais –
ou vitais. Publicá-lo talvez causasse mais mal do que muitas bombas
de hidrogênio: quantos psicóticos não se guiariam por ele, fazendo
do mundo um tormento maior do que já é? Ao mesmo tempo, se o mundo
não o conhecesse, não poderia pensar numa resposta para os problemas
que levantava. Isto se houvesse respostas.
O mais lastimável é que uma decisão
agora estava em suas mãos. Qualquer atitude, mesmo não tomar uma
atitude, traria conseqüências. Maldita hora em que entrara naquele
quarto. E afinal, quem levara a caixa para lá?
Talvez a resposta a essa pergunta
estivesse por trás de um outro fato ainda mergulhado em névoa. Como
havia sido a morte do tio? Não teria sido um suicídio? Alguém da
família entra no quarto, encontra os manuscritos recém acabados, com
um bilhete pedindo para publicá-los. Mais uma ou duas pessoas lêem o
título, folheiam algumas páginas e logo percebem os riscos atrelados
àqueles cadernos. E por que não rasgaram, queimaram? Precisaria ter
muito peito para por fim a quarenta e cinco anos do trabalho de uma
pessoa, mesmo de um louco, coisa que eles e ninguém tinham certeza.
Ou por qualquer outro motivo, medo de assombração, vontade de ler.
Ou teria sido o próprio tio? Terminou
de escrever e concluiu que não era correto publicá-lo. Ou que não
era a época certa. Quanto mais pensava, mais percebia que a
gravidade do assunto era muito maior do que imaginava. Talvez
estivesse redondamente enganado, delirando mesmo, mas aquele livro
poderia dar uma reviravolta na história, seja acabando-a, seja
assustando-a e assim gerando uma formidável força centrífuga capaz
de desacomodar as órbitas consolidadas.
Passou a noite entremeando sono e
vigília. Quando o sol despontou já estava de pé comendo pão com ovos
mexidos. Ter fome e comer pareceu-lhe bom decisivo.
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