Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Kátia Rose Pinho


 

Mistérios dos nomes[1] 


 

Resumo: Motivados pela pergunta “o que é nomear?”, desenvolvemos breve reflexão acerca do nomear, sob ótica heideggeriana, atendo-nos ao nome do livro Árbol de Diana da poetisa argentina Alejandra Pizarnik.

Palavras-chave: teoria literária; Poética; Crítica Literária; Filosofia; Literatura argentina contemporânea

 

Do pensar um título ao titular[2] há um silêncio permeado de interrogações, suspiros e os mais diversos atavios que possam existir. Hoje, talvez, na sociedade de consumo em que vivemos, a escolha de um nome não atenda tão somente aos ditames da própria obra. Há de se encontrar um meio para que se satisfaçam os desejos do autor, do editor e fisguem o leitor, incauto ou não.

Para além (ou, quem sabe?, para aquém) de tudo isso, sabemos que numa obra nada é aleatório, tampouco o seu nome. Eis aí algo que nos atrai a atenção e faz presente questões outras remoídas silenciosamente: Que significa nomear um livro? Nomear uma obra não seria a possibilidade do autor atribuir-lhe uma função? Que guarda um nome em seu silêncio? A estas perguntas se sobrepõe uma única: que é nomear? Num primeiro momento somos tentados a dizer que nomear é dar nomes, mas que significa nomear, dar nome?

Dar nome é trazer algo à palavra. Lembramos as palavras do filósofo (Heidegger, 1990): “El nombrar no distribuye títulos, no emplea palabras, sino que llama las cosas a la palabra. El nombrar invoca”. No invocar está obnubilado o sentido do nomear, dar ser, que é aproximado pela invocação do que é invocado, levando-nos a constatar uma ausência anunciada. Não uma ausência vazia. É plena de silêncio e é este que nos anuncia os mistérios que guardam os nomes, assim o expressa Alejandra Pizarnik[3]:

te alejas de los nombres

que hilan el silencio de las cosas

                                      (Poema 28)

  

A exortação da poetisa nos conduz ao afastamento necessário a reflexão acerca, não apenas, dos nomes, da sua relação com as coisas, mas para o mistério que guarda o silêncio existente entre ambos (nomes e coisas). Silêncio, “reino de las evidencias. […] Lugar en donde nombres y cosas se funden y son lo mismo” (Paz, 1998:106), onde o não dito diz-se, abrindo espaço para a unidade possível de contrários. Tensão permanente a gerar o mistério que as imagens poéticas permeiam e invocam.

Há, então, um mistério em Árbol de Diana[4]? Que invocação faz o título do quarto livro de poesias de Alejandra Pizarnik? Que ausência está anunciada e silenciada neste sintagma nominal? Mundo erigido na dualidade/duplicidade, a impor um jogo de encobrimentos/revelações?

A primeira evidência: o pertencimento da árvore: a árvore é de Diana. No entanto, simultânea a idéia de limite/pertencimento, há a de origem. Nada, porém, nos aproximará da árvore se não pudermos captar o que lhe dá sentido em Diana. Já se nos mostra, pois, a presença de uma força simbólica atrelada à árvore, convergindo para a “idéia de Cosmos vivo, em perpétua regeneração” (Chevalier & Gheerbrant, 1999:84), a qual se juntará o princípio de verticalidade: a árvore cujas raízes estão fincadas na terra e os galhos estendidos para o céu, ou seja, a união da terra desde a sua profundeza ao infinito do céu. Seria este céu o de Diana? Quem é Diana?

Diana/Ártemis, filha de Júpiter e Latona, irmã gêmea de Apolo, é uma das doze divindades de Olimpo, cuja dileta ocupação é a caça. Tal como se dá com seu irmão, recebe diferentes nomes, os quais refletem os recebidos por Apolo. Diana/Ártemis, na terra; Febe ou Lua, no céu à noite; no inferno, Hécate. Implacável quando provocada, sua vingança é permeada pela crueldade. Enquanto Apolo equivale ao Sol, iluminando o dia; Diana, a Lua, ilumina, como a abrandar os mistérios da noite. O retorno à Mitologia nos conduz intuitivamente à origem do que iluminará, ou melhor, re-velará* o caminho da palavra pizarnikiana.

Guardaria Árbol de Diana o caráter de elemento de ligação entre mortais e divindades? Por certo que aqui se estabelece o desejo humano de igualar-se aos deuses, ou, quando não, de atribuir-se qualidades inerentes a eles. No entanto, não cremos que seja preponderante este desejo (é uma possibilidade de se pensar a árvore, mas será este o seu sentido?). A presença de Diana, possuidora/origem da árvore confere outra dimensão, não apenas a divinizante. Estamos em presença de uma ausência.  A árvore apresenta-se, como um todo a invocar não o ser-árvore, mas algo que tem origem a partir dela e constitui-se, a nosso ver, a ausência: o arco. Instrumento utilizado por Diana em suas caçadas, e que também se constitui seu referente. Porém, referirmo-nos ao arco apenas como algo pertencente à Diana, não o traz a nós plenamente.

Pensar o arco nos conduzirá a presença do implícito sentido de Árbol de Diana. Heráclito (1996:93) nos diz no fragmento 51: “Não compreendem como o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira”. Estas últimas palavras de Heráclito (“arco e lira”), nos trazem à presença Octavio Paz, ou melhor, sua obra O Arco e a Lira (1956). Forma-se, assim, um triângulo poético. Torna-se impraticável não percebermos que esta configuração triangular se estabelece a partir do palintonos harmonín[5] – harmonia de tensões contrárias.  Refletirmos acerca do arco é deixarmo-nos tragar por uma unidade composta de elementos divergentes (arco e corda) que só se mostram por seu outro/convergente (flecha). Jamais pensamos só a rigidez da madeira ou a flexibilidade da corda ou a velocidade da flecha, ou ainda, as “fases de sua manifestação: tensão, distensão e arremesso” (Chevalier & Gheerbrant, 1999: 74). Nenhuma delas separadamente nos conduzirá ao arco, uma se fará presente através da outra e re-velará o todo. Contudo, atenhamo-nos nos dois vértices: Alejandra Pizarnik e Octavio Paz.

Se é impossível negar a influência de “[…] Octavio Paz, con quien trabó amistad muy poco tiempo después de su llegada a Paris y quien evidentemente quedó seducido por su escritura y unido por sólidos vínculos afectivos a Alejandra, como lo demuestran el cálido prólogo que escribió para su Árbol de Diana y sus frecuentes encuentros durante la época” (Piña, 1999:95), torna-se impraticável não percebermos que Árbol de Diana irmana poeticamente Paz e Pizarnik, via deuses gêmeos Apolo e Diana, apresentados por Homero, na Ilíada, como portadores do arco de prata e do arco de ouro[6] respectivamente. Outrossim, as letras iniciais dos nomes destes deuses poderiam ser pensadas como abreviatura da obra pizarnikiana (A D). Qual flecha, rompe-se o ar para ouvi-lo vibrar nas sílabas iniciais de El arco y la lira e Árbol de Diana. Arco e Árbol, palavras masculinas seguidas por palavras femininas: lira e Diana, respectivamente. A oposição, condição necessária para se perceber o outro, complementação. Princípio masculino e princípio feminino — [. O que aparentemente nos sugere antagonismo realiza-se na unidade. Percebemo-la ao tocar a corda do arco ou da lira em que o ar vibrar. As ondas emanadas deste movimento embalam a árvore. Confere-lhe movimento oscilatório. Mantém em justo limite a tensão da corda que verga o arco, passível de ser percebida em poemas como este:

 

explicar con palabras de este mundo

que partió de mí un barco llevándome

                                           (Poema 13)

 

Em Árbol de Diana há uma tensão manifesta, que se nos revela quando apreendemos, não a árvore nem Diana, a unidade em que se constitui/institui a obra. Que tensão é esta? A do homem que tenta igualar-se aos deuses? Está implícito em todo criador, o desejo demiúrgico, lembremo-nos dos castigos impostos aos mortais pelos deuses. A da palavra poética? A palavra poética é incondicionalmente tensa, enquanto palavra que oculta/desoculta o ser que nela habita. Como poderíamos definir esta tensão, então? Não podemos fazê-lo. Defini-la não nos conduzirá a nada, se não nos decidirmos[7] escutar[8] a poesia.  Para tanto, faz-se necessário abandonarmos o estado prosaico de nosso existir e pormo-nos em estado de aberto, ou seja, receptivos, a fim de fazermos parte do que é dito, como o faz Alejandra:

 

Escucho resonar el agua que cae en mi sueño. Las palabras caen como el agua yo caigo. Dibujo en mis ojos la forma de mís ojos, nado en mis aguas, me digo mis silencios. Toda la noche espero que mi lenguaje logre configurarme. Y pienso en el viento que viene a mí, permanece en mí. Toda la noche he caminado bajo la lluvia desconocida. A mí me han dado un silencio pleno de formas y visiones (dices). Y corres desolada como el único pájaro en el viento.

(L’Obscurité des Eaux, In.El infierno musical,2001:285)

 

 

Referência Bibliográfica.

 

BARTHES, Roland. Existe uma escrita poética. In: O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. Tradução de Mário Laranjeiras. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp.38-48.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos costumes, gestos formas, figuras, cores, números). Coordenação de Carlos Sussekind; trad. de Vera da Costa e Silva… [et al.], 13ª ed., Rio de Janeiro: J. Olympio, 1999.

COMMELIN, P. Mitologias grega e romana. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GMEINER, Conceição Neves. A morada do ser: uma abordagem filosófica da linguagem, na leitura de Martin Heidegger. Santos, SP: Leopoldianum, 1998.

GOLDENSTEIN, Jean-Pierre. Entrées em littérature. Paris : Hachette, 1990. Serie F Autoformation.

HEIDEGGER, Martin. El habla. In: De camino al habla. Versión castellana de Yves Zimmermann, Barcelona: Serbal, 1990.

HERÁCLITO de Éfeso. Fragmentos sobre a natureza.Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural. Col. Os Pensadores, v. Pré-Socráticos, 1996.

LANE, Philippe. La périphérie du texte. Paris : Nathan, 1992, Collection crée par Henri Mitterand. Serie « linguistique ».

MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade: Heidegger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP/Annablume, 1999. 

PAZ, Octavio. El arco y la lira. El poema. La revelación poética. Poesía e história. 3ª ed., México: Fondo de Cultura Economica, 1998.

PIÑA, Cristina. Alejandra Pizarnik: una biografía. 2ª ed., Buenos Aires: Corregidor, 1999.

PIZARNIK, Alejandra. Poesía  Completa. Edición a cargo de Ana Becciú, 2ª ed., Barcelona: Lumen, 2001.

SANT’ANNA, Affonso Romano. A título de títulos. In: A sedução da palavra. Brasília: Letraviva, 2000, pp.177-181.

TITULAR. In: DIC- Dicionário eletrônico Michaelis. São Paulo: DTS Software Ltda. Versão 3.00, 06/1996. 5 disquetes 3 1/2 .


Notas:

 

[1] Ensaio publicado na Revista Tambor, Recife, v. 01, n. 01, p. 63-69, 2003, da Faculdade de Formação de Professores de Belo Jardim, Pernambuco.

[2] Conforme o Dicionário eletrônico Michaelis: Titular.2 - v. Tr. dir. 1. Dar título a, intitular. 2. Registrar em livro de padrões e títulos autênticos. 3. Registrar.

[3] Alejandra Pizarnik (1936-1972) um dos nomes mais representativos da poesia argentina contemporânea publicou sete livros de poesias (La tierra más ajena, 1955; La ultima inocência (1956); Las aventuras perdidas (1958); Árbol de Diana (1962); Los trabajos y las noches (1965); Extracción de la piedra de locura (1968); El infierno musical (1971) e deixou outros tantos inéditos, reunidos por Ana Becciu e publicados em 2001 pela Editorial Lúmen de Barcelona.

[4] Árbol de Diana compõem-se de trinta e oito poemas, e um adendo chamado Otros poemas, com data de 1959, publicado em Buenos Aires, no ano de 1962.

* A hifenação permite-nos chamar atenção para o ocultar/desocultar que esta palavra abriga.

[5] Seguimos o pensar de J. C. Michelazzo (1999:95) o qual  apresenta o seguinte comentário acerca do fragmento 51 de Heráclito: “Há algumas controvérsias entre especialistas em relação ao fragmento 51. Uma delas é a que se refere à 7ª palavra: palíntonos (tensões opostas). Em outras edições – como, por exemplo, Os pensadores originários, trad. de Carneiro Leão — aparece a palavra palintropos (mudanças ou movimentos contrários). Há fortes argumentos, segundo os autores da edição por nós empregada [KIRK, G.S.; RAVEN, J.E. Os filósofos pré-socráticos. Trad. de Carlos A. L. Fonseca, Beatriz R. Barbosa e Maria A Pegado. 2ª ed., Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 1982], em defesa tanto de uma quanto de outra palavra. Entretanto, parece-nos palíntonos mais adequada, uma vez que com o seu sentido etimológico – “aquilo que está esticado ou retesado para trás, para o lado oposto” – nos dá perfeitamente a idéia de tensão na qual se acha a corda tanto do arco como da lira, por estarem suas extremidades esticadas para trás, uma em relação a outra.” (grifo nosso).

[6] cf. os verbetes Apolo e Ártemis in : CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos costumes, gestos formas, figuras, cores, números). Coordenação de Carlos Sussekind; trad. de Vera da Costa e Silva… [et al.], 13ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1999.

[7] Conforme Conceição N. Gmeiner (1998: 159),”a de-cisão é um corte, uma cisão que posiciona aquele que a toma em um determinado lugar.”

[8] A diferença entre escutar e ouvir evidencia-se quando não nos deixamos levar pela captação de elemento sonoro (característica própria do ouvir), mas vigiamos atentamente a fim de percebermos o que se anuncia em silêncio. A propósito, lembremo-nos que um médico não ouve os batimentos cardíacos de um paciente. Ele ausculta; põe-se a escutar, só assim perceber o ritmo, a freqüência e emitir um parecer sobre a saúde cardíaca de seu paciente.


 

 

 

 

 

18.11.2005