Laeticia Jensen Eble
Sousândrade e os tropos do romantismo
A intenção deste
trabalho é situar Sousândrade no panorama do Romantismo brasileiro.
Sousândrade é, ao lado de Castro Alves e Tobias Barreto, um dos
representantes da terceira geração romântica (segundo Massaud
Moisés, ou quarta geração romântica, de acordo com a classificação
proposta por Afrânio Coutinho), também conhecida por Condoreira
[1] .
Essa geração é caracterizada por uma intensa impregnação
político–social, nacionalista, pelo culto ao progresso, além de
estar ligada aos ideais abolicionistas.
Os poetas desse
grupo apresentam grande preocupação formal, que leva o grupo a
experiências que, aliadas ao clima de realismo literário e
filosófico, conduzem a poesia num rumo de transição, algo como um
“romantismo realista”.
Sousândrade deixa-se
influenciar fortemente pela cultura clássica, na busca de versos
obedientes e compassados, mesmo com a sua rebeldia crescente ao
longo do tempo, preserva-a de forma latente, especialmente na
sonoridade.
O que mais
identifica Sousândrade com o Romantismo é a sua fidelidade aos
tropos do período, como veremos alguns mais detalhadamente à frente.
Porém, mostra-se um tanto heterodoxo, rompendo com convenções ao
produzir suas obras. Adota em seus versos os temas em moda, porém
muitas das vezes de forma bastante diferenciada. Embora estabeleça
críticas ao Romantismo da época, Sousândrade não escapa a alguns
tropos desse movimento, que acabariam por se transformar em lugares
comuns.
Dos preceitos
românticos, o que mais prezava era a liberdade, tendência dominante
que introduzia inovações, quer na estrutura dos gêneros, na
inspiração, na temática, na língua, no estilo e na técnica da
versificação. Tal liberdade estética permitiu a Sousândrade criar
seu estilo particular, como define em suas Memorabilia que
introduzem os cantos V a VII d’O Guesa:
“Amo a calma
platônica; admiro a grandiosidade do Homero ou do Dante; seduz-me a
verdade terrível shakespeareo-byrônica; e a celeste lamartiniana
saudade me encanta.. Ora, todas estas generosas naturezas não me
ensinaram nunca a fazer verso, a traçar os contornos da forma, a
imitar vox faucibus o seu canto, porém a uma coisa somente: ser
individualidade própria, ao próprio modo acabada – enamorada e
crente em si própria.
Ser
absolutamente eu livre, foi o conselho único dos mestres; e
longe de insurrecionar-me contra eles, abracei de todo o coração os
seus preceitos.” (grifo nosso)
Sousândrade aplicou
genialmente na prática a independência literária das formas
européias, tão almejada pelos românticos. É pela liberdade, como
demonstrado acima, que ele volta-se para cantar nossas próprias
belezas naturais, que livre de adornos, e de maneira mais
verossímil, deveriam, a seu ver, configurar a verdadeira poesia
nacional:
“Até a nossa
ortografia portuguesa não se entende entre si; a nossa escola não é
nossa e nada ensina aos outros; estudando os outros, tratamos então
de elegantizá-los em nós, e pelas formas alheias destruímos a
escultura da nossa natureza, que é a própria forma de todos. (...)
Sons e perfumes, flores e fulgores, roupagens e adornos, graças e
tesouros, são sem dúvida grandes dotes de muitas princesas; porém de
poucas será o corpo belo, sadio, forte, e a alma com a dor da
humanidade e com a existência do que é eterno.
Deixemos os
mestres da forma – se até os deuses passam! É em nós mesmos que está
nossa divindade. Não é pelo velho mundo atrás que chegaremos à idade
de ouro, que está adiante além. (...) Nesta natureza (americana)
estão as próprias fontes, grandes e formosas como os seus rios e as
suas montanhas; ela à sua imagem modelou a língua dos seus Naturais
– e é aí que beberemos a forma do original caráter literário
qualquer que seja a língua diferente que falarmos.”
Atesta tais
ensinamentos sob forma de poesia, como vemos no seu Elogio do
Alexandrino:
E o verso-luz, fardeur das
formas, de grandeza,
o verso-formosura, adornos, lauta mesa
Ond' tokay, champanh', flor, copos cristal-diamantes
Sobrelevam roast-beef e os queijos e o pudding.
Porém, mens divinior, poesia é o férreo guante:
Ao das delícias tempo, o fácil verso ovante,
o verso cor de rosa, o de oiro, o de carmim,
Dos raios que o astro veste em dia azul-celeste;
E para os que têm fome e sede de justiça,
O verso condor, chama, alárum, de carniça,
D'harpas d'Ésquilus, de Hugo, a dor, a tempestade:
(...) Ao belo trovoar do magno Trovador
Ouve-se afinação no mundo brasileiro,
Acorde tão formoso, hodierno, hospitaleiro,
Flamívomo social, encantador. Fulgura
Luz de dia primeiro, a nota formosura,
Que ao jeová-grande-abrir faz novo Éden luzir.
Veremos a seguir,
algumas temáticas românticas e a forma como foram adaptadas por
Sousândrade às suas produções poéticas:
a) ESCRAVIDÃO
Diferentemente da
retórica demagógica dos poetas sociais do tempo (Castro Alves, por
exemplo), que utilizavam o drama do escravo para a projeção do “eu”,
em que ao falarem do negro, falavam mais de si e de seus próprios
preconceitos, em Sousândrade a temática do escravo revela-se com
tonalidades cromáticas reais, patenteando uma nítida veia
dramatúrgica e a empatia épica, que lhe caracterizava a visão de
mundo.
Em algumas passagens
d’O Guesa, Sousândrade, abolicionista que era, mostra-se
sensível ao sofrimento da raça negra. Em outras, como a transcrita
abaixo, do Inferno de Wall Street, critica o resultado da dualidade
entre escravagistas e abolicionistas, em prejuízo dos negros. Faz
referência a John Wilkes Booth (1839-1865), norte-americano,
escravista fanático, que não suportando ver o Presidente Abraham
Lincoln, que era abolicionista, reeleito, veio a assassiná-lo. Com
esse episódio, Sousândrade expressa a grande perda que a morte de
Lincoln significou para a luta negra nos Estados Unidos:
126 (Consciências perante a
história substituindo aos destruídos NATURAIS)
- Chumbando Booths aos reis – ‘gorilas’,
A raça melhoram de cor:
E o negro Africano,
Amer’cano
Já é peau-rouge! será brancor!
b) NATUREZA
Sousândrade evoca a natureza tanto ao gosto europeu (associada à
evasão, melancolia, solidão) como ao gosto nacionalista dos
brasileiros.
Na visão romântica
tradicional européia, a natureza era muitas vezes condicionada por
um subjetivismo exacerbado, servindo como mecanismo de fuga e evasão
melancólica. Toda realidade, a natureza, os elementos (o fogo, a
água, o ar), os astros, era impregnada emocionalmente em favor do
eu. Nessa mesma tentativa de evasão e melancolia, na qual os
românticos viviam mergulhados, Sousândrade faz uso da natureza para
ambientar seus momentos de desilusão e devaneio, privilegiando
muitas vezes a ambientação noturna, tão propícia aos românticos na
busca de momentos de sonho e inspiração:
/é
melancólico
Silencioso o bosque, a
voz do vento;
Melancólico o mar, nos
seus desertos
Embalando a canção dos
marinheiros;
A montanha palmosa, o rio
mudo,
Os campos melancólicos,
gemendo
(...)
Horas da tarde, quem vos
fez tão frias
Para me adormecer? ...
Mau pesadelo,
Foge, noite, de mim; tuas
sombras caiam,
Quero ver inda o sol!
(...)
Um só dia é tua vida, o
mesmo sol
T’o repete contínuo, o
mesmo sempre
Co’a mesma noite e
aurora, e os sonhos
mesmos
Só promete a esperança;
ela só mente.
(HARPA XXXVI – VISÕES) |
|
Noite,
-- noite. – Das trevas o
fantasma
Levantou-se no espaço.
Brisa vária
Chora em torno das
grotas, e s’espasma
Dos bosques no ar a rama
solitária.
Piam na serra as aves da
tormenta,
Toda estrondeia a lôbrega
floresta;
O vento assopra, acalma;
aflita e mesta
A terra ao largo, ao
longe se lamenta.
(O GUESA – DO CANTO
QUARTO) |
A exaltação da
natureza era também pintada por Sousândrade, assim como por todos
românticos brasileiros, como fator de afirmação de uma identidade
nacional, de caráter menos individualista. Assim, temo-lo
descrevendo a natureza maranhense nesse trecho da Harpa XXIV – O
Inverno:
Estrala a ave no bosque, aves
ignotas
Rompem alegre matinada: o rio
Enlaça o pé da lânguida juçara,
Onde o tucano embala-se engasgado
Cantando sobre os cachos: zumbe a abelha,
A silvestre urucu se envermelhece
Nos úmidos matizes, se revolve
Na dourada resina que destila
O bacuri-panan de amenos bálsamos
E amorenada fruta. O sol fechou-se.
Abaixo vemos um
exemplo de exaltação da natureza nacional, impregnada de um
sentimento saudosista de suas raízes, por estar longe de sua terra
natal, semelhante ao que vemos em Gonçalves Dias (em sua Canção
do Exílio):
Eu careço de amar, viver careço
Nos montes do Brasil, no Maranhão,
Dormir aos berros da arenosa praia
Da ruinosa Alcântara, evocando
Amor ... Pericuman! ... morrer... meu Deus!
Quero fugir d’Europa, nem meus ossos
Descansar em Paris, não quero, não!
Oh! Por que a vida desprezei dos lares,
Onde minh’alma sempre forças tinha
Para elevar-se à natureza e os astros?
Aqui tenho somente uma janela
E uma jeira de céu, que uma só nuvem
A seu grado me tira; e o sol me passa
Ave rápida, ou como o cavaleiro:
E lá! A terra toda, este sol todo –
E num céu anilado eu m’envolvia,
Como a água se perde dentro dele.
(DA HARPA XLV)
c) NACIONALISMO
Se o indianismo em
nossa poesia romântica resumia-se a uma apologia artificiosa e
decorativa do “bom selvagem”, nobre e heróico na tentativa de
construção de um passado próprio e de afirmação da nacionalidade
brasileira, em Sousândrade a temática indígena tomou nova
configuração em O Guesa.
Singulariza-se,
primeiramente, pela forma adotada, fruto de uma inovadora mistura de
gêneros, sob a tônica de “narrativa de viagem”. Em segundo lugar, o
poema não é exclusivamente brasileiro, mas “transamericano”, em que
a beleza das Américas, oculta ou destroçada pelo invasor prepotente
é o cerne do poema. Essa singularidade já se define na escolha do
protagonista, personagem mítico procedente dos índios muíscas da
Colômbia, em cujo idioma, guesa equivale a “sem casa”
(condição de desterro e orfandade com a qual o próprio poeta
maranhense se identificava biograficamente).
Em sintonia com o
caráter nacionalista dos nossos românticos, Sousândrade obtém uma
extensão da sua significação. Por meio de O Guesa,
Sousândrade não cria uma apenas uma identidade brasileira ou
colombiana, mas sim uma identidade americana.
Renovando
esteticamente a épica, o poema estrutura-se pela justaposição de
fragmentos metafóricos, como agrupamento de imagens reverberantes
que espelham o tempo novo, tão novo quanto as Américas, em que
floresce a beleza primitiva ainda não contaminada, como na Europa.
Seu canto é o reflexo da grandeza exuberante do solo americano.
Eia, imaginação divina!
Os Andes
Vulcânicos elevam cumes calvos,
Circundado de gelos, mudos, alvos,
Nuvens flutuando – que espetac’los grandes!
(...)
“Nos áureos tempos, nos jardins da América
Infante adoração dobrando a crença
Ante o belo sinal, nuvem ibérica
Em sua noite a envolveu ruidosa e densa.
“Cândidos Incas! Quando já campeiam
Os heróis vencedores do inocente
Índio nu; quando os templos s’incendeiam,
Já sem virgens, sem ouro reluzente,
(...)
“E da existência meiga, afortunada,
O róseo fio nesse albor ameno
Foi destruído. Como ensangüentada
A terra fez sorrir ao céu sereno!
(...)
Assim volvia o olhar o Guesa Errante
Às meneadas cimas qual altares
Do gênio pátrio, que a ficar distante
S’eleva a alma beijando-o além dos ares.
E enfraquecido o coração, perdoa
Pungentes males que lhe estão dos seus –
Talvez feridas setas abençoa
Na hora saudosa, murmurando adeus.
(O GUESA - DO CANTO PRIMEIRO – Fragmento inicial)
Escolhe o Estado
Incaico como um regime de estrutura modelar, caracterizado por uma
organização social perfeita e racional, propiciadora da realização
de obras maravilhosas. Associava essa forma idealizada às
comunidades cristãs primitivas e à jovem república americana.
Idealizando a dignidade incaica, Sousândrade manifestava sua crítica
ao menosprezo do espanhol pelos indígenas, tachados de incultos e
bárbaros, vistos como gente inferior. Confrontadas, a nova ordem
(introduzida pelos conquistadores) com a velha ordem (Inca), acabou
transparecendo a superioridade da segunda, mais justa e humana. A
tragédia do Guesa vem, pois, representar a queda do áureo império
Inca ante a conquista espanhola. A morte a qual está fadado o guesa,
encerra em si uma simbologia, a simbologia da morte, que designa o
fim absoluto de qualquer coisa de positivo: um ser humano, uma
amizade, uma aliança, a paz, uma época. A morte é também introdutora
dos mundos desconhecidos (dos Infernos ou dos Paraísos), servindo
como um rito de passagem. Ela é a revelação e introdução de uma vida
nova. Desmaterializa e libera as forças de ascensão do espírito. Por
meio dessa simbologia, se alcança uma dupla exaltação, a primeira ao
mostrar a superioridade da cultura Inca frente à ganância espanhola,
e a segunda ao conferir ao guesa (representando todo seu povo, sua
cultura, e o próprio poeta) uma elevação espiritual pelo sacrifício.
d) INDIANISMO
Apesar do seu
aparente impulso idealizador, Sousândrade retrata os selvagens
brasileiros de forma diferente da dos nossos indianistas canônicos,
que seguiam as regras da cavalaria européia, e aos quais criticava
pelo indianismo de caráter heróico-idealista.
Com um caráter
crítico-satírico, o poeta maranhense pratica um indianismo às
avessas, retratando a decadência do índio da região amazônica, como
resultado do processo de aculturação. Retratou os índios numa
dança-pandemônio, em promiscuidade orgiástica com corruptos
exploradores brancos e missionários pervertidos, tudo sob o signo de
Jurupari, visto pela ótica cristã-missionária como demônio, espírito
do mal (Taturema, CantoII). Ao contrário dos indianistas
românticos, que no caminho alencarino, tratavam de uma situação
mítico-primogênita a serviço de constituição de uma fantasista
identidade nacional, Sousândrade tratava do índio “embranquecido”,
dissolvido e dissoluto.
O Taturema,
carregado de tom satírico, debochava e denunciava os maus costumes e
valores pecaminosos. Assim como o fez Gregório de Mattos em sua
época, Sousândrade utilizou-se e adaptou n’O Taturema o
gênero satírico, utilizando-se dos elementos tão característicos do
gênero.
Sousândrade situou
O Taturema na Amazônia brasileira da época, região que
visitou entre 1858-1856. Dessa viagem extraiu elementos para o
episódio do Taturema (Canto II). A 1ª versão d’O Taturema
data de 1867. Utilizou-se largamente de um hibridismo idiomático,
com influência do português, do latim, aliado ao uso de termos
léxicos provindos de línguas indígenas.
Para retratar a
decadência do indígena, resultado da aculturação, Sousândrade
caricaturiza n’O Taturema a corrupção de costumes, da qual
não escapavam nem mesmo os religiosos. No oremus-tatu, O
Taturema, as estrofes são carregadas de sentido, contam do clima
de dissolução, roubo, fraude, orgia e embriaguez:
1 (MUXURANA histórica)
- Os primeiros fizeram
As escravas de nós;
Nossas filhas roubavam,
Logravam
E vendiam após.
2 (TECUNA a s’embalar na rede e querendo sua independência)
- Carimbavam as faces
Bocetadas em flor,
Altos seios carnudos,
Pontudos,
Onde há sestas de amor.
5 (Coro dos índios)
- Mas os tempos mudaram,
Já não se anda mais nu:
Hoje o padre que folga,
Que empolga,
Vem conosco ao tatu.
9 Olha o vigário! a face de Tecuna
Com que mãos carinhosas
afagando!
Guai! como a vestia santa
abre-se e enfuna
Lasciva evolução, se
desfraldando!
12 (Padre EXCELSIOR, respondendo:)
-- Indorum libertate
Salva, ferva cauim
Que nas veias titila
Cintila
No prazer do festim!
97 (Cunhãmucus, respondendo às virtuosas)
- Vibram bífidas línguas,
Caninana e goaimêm
Fazem coro pistilos
Sibilos,
As comadres de bem.
e) LEALDADE
A concepção
romântica vê na lealdade uma das qualidades fundamentais do herói
romântico, caracterizando-se como um símbolo do bem, em contraste
com os que fogem a essa regra, representantes do mal. Ao estabelecer
esse contraste, os românticos efetuam uma crítica à moral social
feita de convenções, ganância, falsidade, mentiras.
Sousândrade recorre
a esse paradigma, enquadrando-se dentro desse tipo ideal, esboço do
cavalheiro medieval, e apontando a corrupção e a decadência moral de
seus contemporâneos:
Amigos mendiguei, meu peito aos
homens,
Meus braços, minha fronte, abri minha alma;
Como os homens vi rindo-me um momento!
Me odiavam depois, logo amanhã:
Outros buscava; mas, as mesmas ondas
Do mesmo oceano mentiroso e amargo;
Corri – terras em fora e passei mares,
Vi novos climas – sempre os mesmos homens!
Nem um só! ... nem um só achei que o nome
Santo de amigo merecesse ao menos!
(...)
Desde então, na descrença ressequido
Murchou, caiu meu coração, e os homens,
Que minh’alma tão rude calcinaram,
Nunca mais pude amar... vou solitário
Pelas praias sombrias da existência.
(HARPA III – AO SOL)
f) AMOR
Sousândrade era
apegado ao tema amoroso, mas colocava-se à margem do lirismo amoroso
nativo. Enquanto os românticos descobrem no amor, quando mito, uma
qualidade sensual ou meramente lírica, no Sousândrade o amor é a
presença de Eros, totalidade de encontro.
Tão branda, quase dolorosa,
olhando,
“Oh! Consome e devora o teu amor!”
Perdida ela dizia, desmaiando
Qual as douradas noites do equador.
(...)
Oh quem pudera ser indiferente
À beleza dos anjos decaídos!
Quanta miséria cândida, inocente
Nos membros alvos empalidecidos!
Ao silencio da noite abre-se à terra
O seio maternal, onde repousa
Quem ao raio solar levanta-se e erra
Da existência ao labor – procria e goza.
(O GUESA – DO
CANTO QUARTO)
g) RELIGIOSIDADE
A revolução
romântica consistia um novo estado de espírito, a atitude solitária
do homem que deseja uma nova fé, que aspira vaga e indefinidamente a
um ideal que ele próprio é incapaz de precisar, mas que ele sente
não estar nas formas de vida contra as quais protesta. Como
conseqüência disso, a religião vinha para cumprir um papel
importante no comportamento do homem romântico. Sousândrade está
sempre fazendo referências e recorrendo a simbologias do universo
cristão em seus versos, chamando para si a presença e a inspiração
divinas, quer seja nas Harpas Selvagens:
Meu coração, duma alma
entorpecida,
E de um pesado pensamento as sombras
Abatem-me: Senhor, dá vida e força
Que eu possa compreender-te para amar-te.
(...)
/Um Deus fez tudo!
Um Deus... palavra abstrata, incompreensível ...
Mas a sinto tão ampla, que me perde!
(DA HARPA XXXV – VISÕES)
quer seja em O
Guesa, onde a referência à divindade já aparece na sua
invocação, ao invés de invocar as musas, como faziam os clássicos,
ele vem com a sua “Eia, imaginação divina!” repetidas vezes
ao longo do poema. Recorre a imagem e conceitos ligados ao
cristianismo citando Maria, o Espírito Santo, Jesus, etc.:
/Puro aroma
“Exalam os seios naturais! se cria
Um filho neles. A maior aurora
Que precedeu ao sol, foi nesta hora
Que s’encarnou nos braços de Maria!
(O GUESA – CANTO PRIMEIRO
h) CRÍTICA À
CORRUPÇÃO DA SOCIEDADE E DOS COSTUMES
É de fundamental
importância registrar-se a influência exercida por Byron em
Sousândrade. Sua obra revela verdadeiras afinidades entre os dois,
como a rebeldia, o individualismo, a ruptura com as conveniências, a
luta contra a tirania, colocando as razões da humanidade acima do
próprio patriotismo. Como o autor de Child Harold,
Sousândrade denuncia a espoliação dos operários, a corrupção moral e
política no seu Inferno de Wall Street.
De certa forma,
Sousândrade procede na tentativa romântica de resgate do sagrado
diante do desencantamento com o mundo moderno. Por meio de seus
textos, os românticos apontavam a degradação da sociedade moderna, e
revelavam a consciência da ausência, da morte do sagrado (valores
humanos superiores) nas relações humanas. Tentavam então, preencher
esse vazio reinventando o sagrado através da escrita, pelos textos.
Nessa escrita utilizam-se da ironia, inserindo na representação do
mundo moderno a face da negação dos valores sagrados para fazê-los
perceber. Sousândrade nos mostra como a sátira pode ser poderosa
nesse processo.
É pelo Inferno do
Canto X (O Inferno de Wall Street), que representa o vórtice
desregrado do capitalismo em ascensão, que Sousândrade efetua a sua
crítica mordaz e surpreendentemente premonitória – a corrupção
corroendo as instituições republicanas (Oh! Como é triste da
moral primeira, / Da República ao seio a corrupção!). Sob sua
perspectiva, enxerga-se o mundo devorado pela usura, pela
mercantilização, pela ganância. A Bolsa de valores (Stock Exchange)
de Wall Street passa a ser o símbolo de uma sociedade que desmorona
pela avidez do dinheiro. A Bolsa passa a ser a filosofia, a moral, a
pátria, a igreja de uma sociedade.
A Bíblia da família à noite é
lida;
Aos sons do piano os hinos entoados,
E a paz e o chefe da nação querida
São na prosperidade abençoados.
-- Mas no outro dia cedo a praça, o stock,
Sempre acesas crateras do negócio.
O assassínio, o audaz roubo, o divórcio,
Ao smart Yankee astuto, abre New York.
(O GUESA – DO CANTO DÉCIMO)
Notas:
[1] O termo condoreiro vem de
condor, ave que habita a Cordilheira dos Andes. O Condor, por
conseguir alcançar grandes altitudes, representa o alto vôo que a
palavra pode alcançar em defesa da liberdade.
Bibliografia:
CAMPOS, A. e CAMPOS, H. Re-Visão de Sousândrade. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2002.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. 15ª ed. Tradução: Vera da
Costa e Silva (et al.). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro:
José Olympio; Universidade Federal Fluminense, 1986. Vol III.
LOBO, Luiza. Tradição e Ruptura: O Guesa de Sousândrade. São
Luís: Edições Sioge, 1979.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira: Das Origens
ao Romantismo. São Paulo: Editora Cultrix., 2001.
Leia obra poética de
Sousândrade
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