Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Lustosa da Costa


 


Vida, paixão e morte de Etelvino Soares


Deolindo Barreto



 

Um mártir da liberdade de imprensa no começo do século no Nordeste. Deolindo Barreto funda “A Lucta”, é preso, tocaiado, processado, condenado pelo Bispo e, por fim, trucidado a bala, plena luz do dia, no prédio da Câmara Municipal.

Rebelde, incapaz de adaptar-se ao emprego no armazém do tio Aristides Barreto em S. Benedito, Deolindo Barreto foi “fazer a Amazônia”, o quase sempre fatídico Eldorado onde o pai perdera a saúde de modo irrecuperável. Não aceitou a semi-escravidão dos seringais de Humaitá onde Ferreira de Castro achou inspiração para escrever “A Selva”. Terminou dando com os costados em Belém onde, durante oito anos, foi tipógrafo de “A Província do Pará”. A oficina do jornal foi sua universidade. Ali aprendeutudo o que tinha de aprender para ser tipógrafo, revisor, redator, diretor de “A LUCTA” tempos depois.

Por causa da saúde dos filhos, decidiu em 1908 retornar ao Ceará e estabelecer-se com tipografia em Sobral, à rua Senador Paula, em casa alugada ao juiz José Saboya de Albuquerque.

Os negócios iam até bem. Mas ele não tinha temperamento para viver, enriquecer e engordar imprimindo rótulos para garrafas de bebida ou cartões de visita. Rapidamente se vinculouaos democratas que combatiam a oligarquia do comendador Nogueira Accioly e foi dos que mais vibraram quando revolução popular a derrubou a 121 de janeiro de 1912 e foi eleito presidente do estado, o coronel Franco Rabelo.

Era forasteiro porquanto nascido em Crateús, de família pobre de vez que a mãe, uma irmã e a própria mulher foram tecelãs da fábrica de tecidos, quase analfabeto porque a única educação recebida fora como tipógrafo no jornal paraense.

A Mão Negra
 

É quando começa a editar jornalzinho de formato diminuto, “A Mão Negra”, sob o pseudônimo de Zoroastro, Canjica e Jandaíra. Jandaíra, - sabe-se -era o apelido dado a um preto velho doido, figura folclórica da cidade.

À época já dava para notar a rivalidade do juiz com o vigário, padre José Tupinambá da Frota que voltara de Roma, aureolado de glórias acadêmicas e o esforço que desenvolvia para ensombrar seu brilho.

A oportunidade que pintou foi o lançamento de rifa em favor das obras da construção do prédio da Santa Casa de Misericórdia, lançada pelo primeiro, com apoio da sociedade localincluída aí a mãe do magistrado, dona Francisca Saboya de Albuquerque.

José Saboya simplesmente mandou apreender a rifa pelo delegado de polícia. O padre, do púlpito da Catedral da Sé, esbravejou contra a decisão. Saboya usou o jornal da família , “A Pátria” para justificar a medida e chamar o rival de contraventor.

Apesar de não ter nada com isso, Deolindo, com seu sangue quente, meteu sua colher de pau na briga dos brancos. Publicou artigo, sob o título “Iniquidade” em “A Mão Negra”, colocando-se a favor do vigário contra o juiz.

Não deu outra: foi imediatamente despejado da casa onde morava.

O que é bom dura pouco. O governode Franco Rabelo, nascido de explosão popular como nunca até então se vira no Ceará, terminou deposto pelo presidente Hermes da Fonseca por se recusar a apoiar a candidatura de Pinheiro Machado à sua sucessão, depois de rebelião de beatos e cangaceiros de Juazeiro do Norte, liderados pelo baiano Floro Bartolomeu e pelo paraibano José de Borba Vasconcelos, com a ostensiva simpatia do padre Cícero Romão Batista.

O governo decretou intervenção federal no estado nomeando para o lugar de Franco Rabelo, o coronel Fernando Setembrino Carvalho que, mais tarde, seria Ministro da Guerra.

Os “marretas”, eufóricos, comemoraram o retorno ao poder. Francisco de Almeida Monte, jovem e impetuoso cabo eleitoral do Partido Conservador, comandou passeata pelas ruas da cidade que parou às porta de Deolindo Barreto a fim de desfeiteá-lo, talvez empastelar “ A Mão Negra ”.

O jornalista, porém, teve o sangue frio suficiente para acariciar volume que trazia no bolso do fraque, dizendo ser uma granada que faria explodir todo o mundo. Botou os manifestantes para correr. O que trazia mesmo era novelo de linha e muita garganta.

Três dias depois, os marretas voltaram de 4 para 5 horas da manhã sob o comando de Carlos Rocha, diretor de “A Pátria” e de Amadeu Monte, irmão de Chico. Descarregam as balas de seus revólveres contra a porta da casa do jornalista que se queixou à polícia, sem maiores resultados.

Inflamado, ele cresce em ataques ao interventor e ao governo federal.

A polícia o intima a suspender a publicação de “A MÃO NEGRA”. Ele atende. Só em parte.

Na semana seguinte, lança “A Mão Branca” que começa a ser distribuída as 10,30 horas da manhã de 22 de abril de 1914. Às 11 horas, o juiz José Saboya convoca à sua residência o delegado Raimundo Frota Cavalcante. Logo mais, às 13 horas, sete praças embaladas vão buscar Deolindo Barreto `a sua casa e o levam preso, pelas ruas da cidade até o alto da cadeia, “por linguagem imoral e ataques ao presidente Hermes da Fonseca”. Ele somente é liberado às 20 horas, por influência de familiares e amigos, como faz questão de dizer, alto e bom som, o delegado de policia e não graças ao habeas corpus impetrado ,a seu favor, pelos democratas.

Com seu jeito moleque, Deolindo pensa em publicar “A Mão Roxa “do que é dissuadido pelos parentes por parecer provocação excessiva.

Nasce “A LUCTA”
 

Parte, então, para um grande jornal, destinado a enfrentar a oligarquia conservadora da cidade, cheia de força política, orgulho intelectual e poderio econômico.

A primeiro de maio de 1914, surge “A LUCTA”, por ele mesmo considerada “uma temeridade vir doutrinar em um meio, onde a politicagem, os preconceitos e as susceptibilidades não admitem a reparação sensata da imprensa...”promete profligar as opressões, os abusos e as violências”.

Para sacar o espírito da coisa, basta atentar para as epígrafes desafiantes de cada lado do título da nova folha:

“Diga-se a verdade na terra embora desabem os céus” e
“Conte-se o caso como o caso foi
O cão é cão e o boi é boi”.

 

No segundo editorial da primeira edição, garante:

“Não nos intimidarão os arreganhos dos potentados, nem as ameaças dos tiranetes improvisados de um dia - quase sempre representados por tipos desclassificados e portanto, sem responsabilidades políticas.”
 

Como é fácil perceber, “A LUCTA” nasce em quadro político adverso. Era de briga e muita briga iria ter até o trágico fim. Foi recebida debaixo de pau por “A Pátria” jornal conservador e sob receios ostensivos deCraveiro Filho, do “Nortista” cujas oficinas haviam sido financiadas por Vicente Saboya e do deputado Vicente Loyola, de “O Rebate” que já retornara da fazenda “Tamanduá” onde estivera foragido temeroso de novas agressões.

Em setembro, nova passeata de grupos conservadores exaltados que desfeiteiam a viúva Dondon Ponte, rabelista rubra e dona do “Hotel do Norte” e democratas que se encontram no “Café Chic”. Vão, depois, à cata de Deolindo Barreto que, imitando os ricos, fugira do calor refugiando-se na Serra da Meruoca, mais precisamente, na “Mata Fresca” em casa emprestada por Hercílio Lopes.

Mais pressão
 

Em fevereiro de 1915, Deolindo é intimado a comparecer à polícia. O delegado capitão Raimundo Espinheiro lhe bota a faca nos peitos: ou modifica a linguagem contra o governo Benjamim Barroso ou vai ver....

O jornalista não se intimida. Imediatamente, impetra habeas corpus junto ao tribunal de justiça e vai em frente. Continua a mandar brasa.

Desacato na serra
 

Desferindo golpes semanais contra a oligarquia sobralense em seu jornal, Deolindo Barreto não parecia dar-se conta do ódio que suscitava das inimizades ferozes que ia semeando.

Comportava-se de maneira tão descuidada que anuncia, através de “A LUCTA” o que iria fazer no próximo fim de semana. Subiria a Meruoca, a Petrópolis sobralense onde os mais abastadas tinham casas de veraneio para as festas de S. Francisco, promovidas pro seu amigo e compadre, padre Leopoldo Fernandes. E no daí seguinte, haveria de encarar, mais uma vez, os gordos pirões do sofisticado Alberto Amaral, em seu sítio Tijuca. Era o que anunciava na edição de 29 de setembro de 1915 ano da terrível seca que inspiraria a Rachel de Queiroz o romance “O Quinze”:

“...se encontrar um imbecil que, nesses tempos ressequidos, nos empreste um cavalo, lá mandaremos o nosso representante com o estômago reforçado e uma dentadura afiada, capaz de fazer figura nos anais da gastronomia”.
 

Não seria fácil, porém, a noite que antecederia ao banquete nem se prestaria, como veremos já, a tais ironias.

Tiroteio
 

É claro que não faltou cavalo para o fogoso jornalista galgar a serra no vigor dos seus 31 anos, naquele sábado.

Durante a novena, porem, dentro da própria capela, começou a provocação aDeolindo por parte de um dos filiados do partido conservador , Silvestre Gomes Coelho, perturbando o ato religioso e o sermão do padre Leopoldo Fernandes. A turma do “deixa disso” entrou em ação. Quinze minutos depois, Deolindo já se encontrava na pracinha de frente ao templo quando o ataque veio e, agora, duplicado. Silvestre tornou aatacá-lo, de Mauser em punho, em companhia de Chico Monte, este de punhal desembainhado. O jeito foi correr, para escapar com vida, em meio à multidão. Um estampido e uma bala sibilou sobre sua cabeça. Deolindo pulou rápido uma cerca de vara e se escondeu detrás do velho cajueiro ressequido, rasgando a calça nova de casemira inglesa, de ir aos saraus no clube dos democratas, sujando de poeira os sapatos Douglas, podres de chiques e o chapéu do Chile, comprado para aquela ocasião. Dali somente saiu, cheio de carrapichos nas pernas, suado, amarrotado para a Tijuca. Logo a seguir, chegava o dono da casa, Alberto Amaral, esbaforido, afrontado, sem fôlego contando que, ao tentar acalmar Chico Monte, ele que é homem de paz, amigo de todo o mundo, só ofende a comida que come, vive pro seu negócio , não quer saber de política, foi agredido. Três vezes Chico,. - que até então supunha seu amigo,- brandiu a faca contra ele, não o matando por que correu.

Na pracinha em frente à capela da Palestina, Chico Monte e José Silvestre pouco estão ligando para a suspensão da festividade religiosa., Decretada pelo padre Leopoldo e até do leilão em benefício das obras da igrejinha. Ao contrário. Prosseguindo no desafio, vão até a banda de música e à base dos argumentos do revolver e da faca, convencem os cinco músicos apavorados, a tocar o Hino Nacional, para comemoração da estrepolia.

O almoço
 

Felizmente, o almoço no dia seguinte, domingo, depois da missa, foi como o esperado. Compensou a todos do susto da noite anterior. Começou às 10 horas e se estendeu até às 14 , com direito a acalorados brindes do juiz Clodoveu Arruda e do doutor Galdino Gondim, colaborador de “A LUCTA”. O fotógrafo A. Ypirajá tudo registrou para a posteridade. Eram 26 cavalheiros à mesa, entre eles muitos que se converteriam,no futuro, em algozes do jornalista.

Vejamos, porém, segundo o caprichoso convite impresso para a ocasião como a burguesia sobralense sabia se tratar também naquele ano de trágica estiagem:

Entrée- panelada à brasileira, galinha ao molho pardo, idem assada. Lombo à portuguesa, fritada de legumes, leitão de forno, peru à francesa, lingüiça à cearense.

Frios - costeletas de carneiro, idem de leitão, pastéis de carne, macarrão à italiana, arroz, ervilhas, azeitonas, saladas etc.

Sobremesas - frutas diversas, pudins variados, creme, doces de leite, abacaxi, ovos, queijos, cerveja, vinhos diversos ,café, etc.

Tomaram assento à mesa, posta em forma de u, os seguintes convidados” coronel Emílio Gomes Parente, dr. Clodoveu de Arruda, dr. Galdino Catunda Gondim, major José Inácio Gomes parente, dr. José Plutarco Rodrigues. De lima, de “A Época ”, padres Leopoldo Pinheiro Fernandes e Fortunato Alves Linhares, advogado Chagas Araújo, drs. Francisco Amaral e Antônio Regino do Amaral, Edson Duarte, Everardo Porto, coronel José Tomaz do Monte e Silva, José Vasconcelos, José Amaral, José de Xerez Parente, Cícero Pinheiro, Enéas Mendes, Wagner Donizetti, Lucas Albuquerque, Huet Arruda e A. Ypirajá .

Chico Monte ataca de novo
 

Na edição de 29 de dezembro de 1915, Deolindo denuncia que seu primo, o advogado Francisco das Chagas Araújo foi agredido em plena Praça do Mercado por Chico Monte:

“O agressor gritou depois desassombradamente que o agredido o podia processar, e apesar de ser esta a sétima ou oitava agressão praticada por esse senhor no governo atual, ele aí continua constituindo um perigo aos seus desafetos, ao número dos quais temos a honra de pertencer”.
 

Deolindo fica no pé de Chico e logo, a 12 de janeiro, traz outra farpa:

“Avisaram-nos de que o Sr. Francisco Monte anda dizendo lá pelos patos que quando vier tomará um desforço pessoal de nós pelo simples fato de termos sob o título acima noticiado a agressão feita por ele ao advogado Chagas Araújo. Como eles não querem, vive a imprensa aqui ameaçada por qualquer indivíduo que se arvore a valente e por isso deixamos de pedir providências à polícia que nada pode fazer porque eles não querem e limitamo-nos a registrar o fato para que nos sirva de defesa, caso amanhã sejamos forçados a entrar em luta na defesa de nossa pele”.

A grande separação - 1919
 

Na campanha eleitoral para a presidência do Estado, em 1919, estabelece-se a grande separação entre padres que formaram com a candidatura “católica” de Belizário Távora, apoiado pelo clero e, especialmente, por seu primo padre Leopoldo Fernandes, diretor do “CORREIO DA SEMANA e Deolindo Barreto Lima, diretor da “A LUCTA” que, até então, buscara uma aliança com a igreja e com seu líder máximo, dom José Tupinambá da Frota e que defende o “maçon” Justiniano de Serpa.

A paixãoera tão intensa que na edição de 23 de novembro de 1918, em três colunas, com fotografia, o jornal da diocese publica sentido necrológico de Georgina Távora, filho do “nosso eminente amigo” doutor Belizário Távora, falecida há um ano. E por coincidência, notícia na mesma edição que o pe. Leopoldo fora nomeado professor de aritmética e álgebra do liceu. Dia 22 de novembro, a vibração familiar era maior. Correio divulga foto em duas colunas do primeiro bispo de Caratinga, Carloto Távora e critica “O Rebate”, que ousara fazer reparos ao deputado Fernandes Távora e a seu tio:

O dr. Belizário Távora não pediu a ninguém para ser presidente do Ceará e se seu nome foi lembrado pelo chefe da nação é que não lhe falta capacidade para o cargo de presidente do estado.”
“E, decerto, não lhe seria muito vantajoso trocar a posição que goza no Rio e o sossego de sua vida pela atropelada presidência do Ceará”.

 

A 20 de dezembro, volta as baterias para rechaçar críticas de “A LUCTA”a seu engajamento partidário, todo ele protegido por razões eclesiais e confessionais:

“Sacrílega seria posição, se arvorássemos a bandeira, em defesa de um candidato decididamente inimigo da religião “maçon ativo”, desprezando um nosso fiel amigo de todos os tempos. Isto sim, seria um sacrilégio, um escândalo. A tanto não nos leva, a nossa dignidade, os nossos princípios católicos que colocamos muito acima do partidarismo enervante”.
 

Dá para prever, com antecipação, que o “maçon” Justiniano de Serpa, apoiado pelo presidente João Tomé, seria o vitorioso no estado. Precavidamente, a 17 de abril de 1919, o jornal dos padres põe esperanças no poder verificador, a “apuração” para elucidar com as devidas reservas e cuidados o que houve de verdade e de falso na eleição de domingo passado Admite, é claro, que, em Sobral” a eleição realizou-se com calma e regularidade, havendo comparecido às urnas 800 eleitores dos mil e duzentos e tantos que consta o município. Nas duas seções eleitorais, foi este o resultado:

Dr. Belizário Távora, candidato oposicionista 406 votos, dr. Justiniano de Serpa, candidato governista 390”.


EM DEFESA DA MORAL
 

Para tranqüilidade da folha, nas urnas, os marretas sustentarama causa de Deus. Em meio à paixão política, o jornal dos padres alteia a bandeira da moralidade pública. A 9 de outubro, pede saneamento radical contra o meretrício. Critica “modas indecentes, danças provocantes, como tango, e o fox-trote, filmes que ensinam o lenocínio e o adultério, revistas, folhetos e romances obscenos, a inércia da autoridade em punir incorrigíveis D. Juans, a residência de decaídas em quase todas as travessas da cidade”. No dia 18 de dezembro de 1920, apesar da sua vigilância, a folha católica reconhece que os “conquistadores” registravam avanços, graças à tecnologia. O correio responsabiliza “esses cobiçados automóveis umas tantas casas de pasto, lanternas elétricas que permitem a alguns galgar muros e telhados pelas misérias que nos envergonham e aviltam”.

A 22 de janeiro, de 1921, sob a inicial Y alguém que pode ser o bispo, combate o namoro nos templos:

“Na igreja, a moça sobralense é só e toda de deus; se por acaso, lhe acode ao pensamento a imagem do seu preferido, é só para entregá-la a mais e mais aos bons cuidados da providência divina”.
 

Em várias edições,o jornal se ocupa de um folião que se fantasiara de padre e, no corso, distribuía terços, santinhos e benções.

Azeda apolêmica com “A LUCTA”. Adverte-a para que não use o nome do bispo em suas brincadeiras. Nega, porém, a intenção de lançar os católicos contra ela. Não perdoa, porém,em Deolindo Barreto o gosto da galhofa. O ódio, que separa os dois jornais, já é tão intenso que a 30 de julho de 1921, justificaboletim virulento, cheio de injúrias e calúnias de Euclides César contra o prefeito e contra a vida particular de Deolindo Barreto. A cidade estranha procedimento tão anticristão.

Os padres iniciam então, oficialmente, a guerra contra o jornalista. A seis de agosto, o “Correio” publica carta aos dirigentes do Partido Democrata contra Deolindo Barreto Lima solicitando “as necessárias providências no sentido de moderar o zelo perigoso e prejudicial deste diligente empregado”. Na edição de 13 de agosto, o “Correio” tenta explicar-se, ante o protesto dos democratas, pelo fato de haver apoiado o boletim de Euclides César.

A 20 de agosto de 1921, os padres estão na defensiva. O “Correio” pública editorial, sob a inicial Z, provavelmente de autoria do bispo,dom José: “como católico que somos,”- tenta ele se explicar - “preferimos o candidato ao outro viesse ele porintermédio de quem fosse, prejudicasse embora os interesses de nossa família, queremos dizer, os interesses do partido político a que pertencem os de nossa família. E aplaudimos a candidatura Belizário” . Dom José tenta, em vão, livrar-se da acusação de militância político-eleitoral:

“Que mal vai nisso, se o jornal não se peja de ser católico e coloca os interesses religiosos acima dos interesses meramente político? Incidentalmente, acontece que Belizário tinha um parente na redação deste jornal; mas, se o parente do redator fosse outro, O CORREIO, como católico, não devia se ter esforçado por sua eleição?”.
 

O jornal reserva tanto espaço para suas explicações e para ataques ao diretor de “A LUCTA “que deixa bem claro o incomodavam quanto as acusações de Deolindo Barreto a seu engajamento político eleitoral.

Por isso, a três de novembro de 1921, o “Correio “decreta que Deolindo Barreto é ateu e pornográfico”.

A 25 de novembro, insistindo em timbrar sua nenhuma vinculação político partidária, o bispo dom José, na segunda página da edição dO CORREIO, recomendaao eleitorado católico votar em Artur Bernardes eJ .J. Seabra para a presidência e vice-presidência da república...

O ano de 1921 termina com o “CORREIO DA SEMANA”, numa estranha inversão da hierarquia,pressionando o bispo para que venha a condenar oficialmente “A LUCTA “e criticando “a paciência da autoridade, zeladora do nosso credo religiosa”.

O duelo
 

A 7 de março de 1922, acontece duelo mortal entre o tenente Castello Branco e Chico Monte, vereador do partido democrata, na Praça de Mercado, a mais importante da cidade. A tragédia não é, sequer, registrada pelo “Correio” o que lhe será cobrado, daí em diante, por Deolindo Barreto, em “A LUCTA”, para irritação do jornal e do clero.
Como recurso desesperado, os padres mais exaltados armam, então, o golpe da blasfêmia que ninguém viu nem ouviu, a propósito da aposição da imagem do Cristo crucificado no salão do júri, saudada pelo juiz de direito, José Sabóia e por seu fiel amigo, o juiz municipal Clodoveu Arruda, novamente amigos do bispo e alvos permanente dos ataques de “A LUCTA” .Adenúncia do padre Joaquim Severiano é de que “mais pareceu um berro de um desesperado do que uma sentença de um homem sensato”. Ele explica que o pe. Leopoldo só não foi o autor da denúncia porque se encontrava envolvido até o pescoço na política:
Reservei, para mim, sob a minha responsabilidade, lavrar aqui este protesto contra a ignominiosa blasfêmia, para que não se encontre brecha nesta viva expressão do todo o meu horror, atribuindo-se a tão malsinada política do redator dO CORREIO”.

O exagero era tal, a montagem tão clara que, na edição seguinte, depois que os marretas haviam levantado toda a beataria contra o jornal democrata, o padre Joaquim Severino reconhece que foi a casa do diretor de A LUCTA saber se ele realmente dissera a piada: “Jesus foi responder, no tribunal do júri, por crime de defloramento”. O padre Severiano procura justificar porque passou, para as páginas do “Correio” e do jornal marreta “AOrdem”, o escândalo da blasfêmia. Reconhece que “o doloroso acontecimento não ultrapassou as raias de uma palestra”(é textual). E fica, sem jeito, ao explicar porque fizera tanto escarcéu:

“Para que divulgar pela imprensa aquilo, que de tão baixo e vil, apenas chegaria a circular nas ruas desta cidade, e onde deveria morrer para honra e renome do Sobral?”
 

Havia, porém, os interesses do partido conservador aos quais se jungira o bispo. É o que o padre Joaquim Severiano confessa, com todas as letras:

“...duas razões ponderosas justificam este nosso alvoroço(grifo nosso) de piedade cristã:

“A primeira é a cotação do blasfemador no meio em que vive prestígio cuja fonte não vem ao caso indagar”. Depois de expressar tal preocupação com o realce social e político do adversário que pretende destruir, em seu sermão o padre Severino acrescenta mais uma justificativa:

“A segunda é o fato de se dizer o insulto, não um a um camarada de pagode, mas a um sacerdote respeitável e venerando, não só pela sua idade, como principalmente pelas suas virtudes, inconcussas e reconhecidas por todos nos”.

 

É claro que o padre não empresta maior importância á ida de seu colega, devidamente marionetado pelos interesses do partido conservador, à casa do diretor da LUCTA para ouvir a piada que exploraria tão afanosamente.

***

Diante da reunião do clero e dos marretas, sob presidência do bispo, na Catedral da Sé, Deolindo percebe que seu fuzilamento moral apenas antecede a liquidação física. Antes da reunião, já condenado, como queria o “Correio”, distribui boletim responsabilizando José Sabóia, Clodoveu Arruda e o pe. Leopoldo pelo que viesse sofrer na sua vida e sua propriedade. O Bispo dirige-se, então, por telegramaao presidente do estado garantindo que Deolindo não está ameaçado de morte:

“Exmo. Sr. Presidente do Estado

Jornalista Deolindo Barreto acaba soltar boletim declarando haver requerido garantias vida, propriedade contra possível desacato parte católicos sobralenses. Afirmo v. Exma. Ser tudo inexato. Trata-se reunião católicos protestarem contra insultos e blasfêmias proferidas citado jornalista que disse Cristo iria responder júri por crime defloramento atenciosas saudações - Bispo de Sobral”.

* * *
 

Deolindo Barreto, cujo jornal prescrito pelo bispo que instituíra novo pecado mortal a assinar ou ler “A LUCTA”, está condenado e pressente que a morte se aproxima. Daí o desespero que dele se aproxima e o impele ao maior destempero verbal. Já que vai morrer, a faca ou a bala, mas vai morrer, declara guerra total a seus inimigos.

* * *

Os padres, por sua vez, não recorrerão apenas às forças celestes para bater o “infiel”.

Procuram demiti-lo do emprego de secretário da prefeitura. Afastá-lo de seus correligionários do Partido Democrata. Querem que “A LUCTA” seja fechada pelos democratas ou pela falta de assinaturas. Que os poderes públicos neguem publicidade ao jornal adversário. Enquanto isso, vão aviando certeiro processo judicial contra o atrevido, a ser julgado por seus maiores inimigos, José Sabóia e Clodoveu Arruda, juizes e chefes do Partido Conservador na cidade.

Antes disso, porém, todos os padres da Diocese, asfilhas de Maria,osmembros da Conferência de S. Vicente de Paulo, do Apostolado da Oração, da Irmandade do Santíssimo Sacramento, da Guarda de Honra do Coraçãode Jesus se solidarizam com o bispo e condenam o ateu, o blasfemador, manifestações que são publicadas em sucessivas edições do jornal católico.

Confissão
 

A sete de outubro de 1922, fica ainda mais evidente a montagem da farsa por confissão do Mons. Lyra admitindo que “realmente alguns dias depoisda reposição da imagem no salão do júri, procurara Deolindo em casa. Não o encontrando, foi ter com ele na Câmara. Deolindo confirmou a piada ao padre que não prosseguiu na conversa porque chegou um terceiro” que não queria tomasse parte na conversa. “ se era assim tão sigilosa, conforme relato na edição de 7 de outubro de 1922, por que a divulgação, com a conseqüente condenação do jornal que não a divulgara, e os comícios contra o autor da boutade de mau gosto?.

O clero não se conforma que o jornalista continue editando” A LUCTA”, lida pela maioria da cidade, firme em seu emprego na prefeitura e prestigiado por seu partido. A cada edição, o “Correio” critica os democratas da cidade porque se negaram a tomar parte na demonstração de solidariedade do bispo.

Como os democratas municipais não se intimidam, o padre Severiano usa o CORREIO DA SEMANA de 11 de novembro de 1922 para endereçar carta aberta ao sobralense Paula Rodrigues, chefe do partido no Estado onde explica porque o clero, inclusive o bispo “se parece hoje com um marreta, foi pelo esquisito sistema político, adotado por certos representantes do atual situacionismo local.” A carta é interessante por pretender explicar porque o bispo se aliou, firmemente, aos marretas do dr. José Sabóia e de “A Ordem”:

“À proporção que, por alguns dos seus representantes de mérito, éramos ( o bispo e o clero) enxotados, delicadamente, dos arraiais democratas - onde militavam os nossos irmãos e parentes - encontrávamos, do outro lado, os simpáticos ‘cumprimentos, as honrosas deferências, os francos e generosos’ acolhimentos, os espontâneos favores, as palestras amistosas, as atenções e o respeito desta outra gente, também vitimada pelos desaforos e baixos achincalhamentos d’ A LUCTA.”

Vai mais longe para confirmar a adesão aos conservadores:

“E, sem reforço, tornamo-nos (o clero e o partido marreto) senão amigos políticos, amigos particulares e companheiros de sofrimentos.”
 

Podia ser mais explícito?

Quem apoiou Chico

Um dos cavalos da batalha de “A LUCTA” em 1922 foi a denúncia da morte do tenente Castello Branco por seu inimigo Chico Monte, prontamente absolvido pelos juizes sobralenses, seus fiéis correligionários.

Talvez se possa até falar de alguma simpatia pelo homicida quando Deolindo critica “ as tendenciosas notícias de “A ORDEM” e do “CORREIO DA SEMANA” procurando “atirar para o tenente Castello Branco a autoria de degradante cena de sangue que manchou os nossos foros de cidade civilizada, no dia 7 do fluente”. Ele lamenta o morto e o outro que “aí está, contorcendo-se de cores, coberto de sangue e nodoado com o terrível anátema de assassino”.

Procura minimizar a responsabilidade de Chico Monte, preferindo atribuir a autoria intelectual da morte a seus chefes políticos. Chega mesmo a apelar para a minorante de sua idade:

“Francisco Monte, o autor material do delito, é um rapaz muito moço ainda, bastante destemido e de um temperamento ardente. Por simples sport, costumava provocar conflitos para exibir sua coragem e ligeireza”. E a transferir culpa para seus amigo:

“Pela sua mocidade, pela sua inexperiência, pela sua propensão às lutas corporais, pelo seu destemor, pelas suas condições de família, pela sua evidência partidária, precisava de amigos sinceros que o aconselhassem e o desviassem do caminho sinuoso que palmilhava, de autoridades criteriosas , que reprimindo suas pequenas faltas ,secundassem os conselhos dos amigos, convencendo-o de que aquele caminho não o levava a bom termo”.
 

Aí “A LUCTA” aponta os que consideraverdadeiros culpados:

“Ao invés disso, encontrou políticos sem escrúpulos, que lhe exploraram o destemor e o impeliam para o crime, encontrou delegado de polícia que lhe abraçou e felicitou pela perpetração de um crime, encontrou juizes que deixando impunes outros crimes e lhe dispensando toda a consideração e amizade, o estimulou ao insondável abismo em que se acha e a que todos irremediavelmente lastimam”.
 

Deolindo diz claramente que a responsabilidade do homicídio se deve à justiça local, à policia e “a certa imprensa sem escrúpulo que chegava a elogiar tais faltas”.

Em outubro de 1922 volta ao assunto em meio a artigo sobre a hostilidade do clero local. Ainda assim, não menciona Chico Monte. Prefere atacar o dr. José Saboya:

“a quarta autoridade civil que atacou, foi sempre o juiz de direito que absolveu um amigo, que com uma fria e perversa punhalada abateu, numa das praças mais movimentadas de Sobral um moço pai de família, uma autoridade pacata no fiel cumprimento de sua obrigação, fato hediondíssimo que não mereceu sequer uma palavra de condenação do jornal do Exmo. Sr. Bispo”
 

Por sua vez, a 11 de novembro de 1922, o CORREIO DA SEMANA se congratula com os magistrados da terra que absolveram o vereador sobralense. O título da matéria é notória provocação: “Doeu?”.

“Pois, se quiseram curar a dor com mais ‘independência e altivez’, queixem-se não do marretismo do “CORREIO”, que isto é chapa velha que não lasca mais nada, mas da marrética unanimidade de votos do supremo tribunal da relação de Fortaleza.

Desta combinação de pareceres entre a relação e o juízo singular de cada um dos nossos magistrados - pouco importando a cor política, aliás bastante mesclada, dos nove - nasceram os parabéns e as admirações afetuosas do nosso fidelíssimojornal”.

Bispo sem política
 

Apesar de tudo isso, a 25 de novembro de 1922, ao lado de pressões sobre os democratas para que abandonem o jornalista aliado à própria sorte, o “Correio” se esforça, contra todas as evidências,por negar a militância político-partidária do bispo:

“ O Sr. D. José - desde o primeiro dia do seu paroquiato, como vigário de Sobral, até as últimas descobertas de Deolindo Barreto - já manifestou, em público ou privadamente, ter espírito partidário? Já ajudou de qualquer modo com palavras, com insinuações, com dinheiro etc. A algum partido político de Sobral,ou de fora não terá o Sr. Bispo energia bastante para fazer respeitar a sua vontade na confecção do seu jornal?”
 

A 16 de dezembro de 1922, vendo inútil seu esforço de afastar o jornalista do seu partido, seu tenaz adversário, padre Joaquim Severiano admite uma concessão:

“Pois, a meu ver, se não havia outros compromissos, era só demití-lo do emprego, retirar-lhe do seu jornal o expediente e mais ganhos da política, negar-lhe o bafejo do partido para as assinaturas de A LUCTA e, como ‘saco vazio não se põe em pé’, mandar o indomável homem a um emprego ‘rendoso’, longe de Sobral, onde ele pudesse continuar a escrever sem nos envergonhar e nos ‘afligir’.”
 

Na falta da censura à imprensaou do eficiente DOI. CODI da ditadura militar, o padre estava certo.Em seu pragmatismo, acrescentava brutalmente:

“Não há altivez e independência possível, quando se tem necessidade de viver...”

Bem disse o sábio, “primeiro viver, depois filosofar”.

Boicote de assinaturas
 

Por toda a Diocese, os padres se empenham em aniquilar “A LUCTA”. Em Granja, eminente prócer do partido democrata, pe. Vicente Martins apreende o jornal, até antes de ser entregue a seus assinantes na agência dos correios. E se vangloria disso ao bispo e ao jornal da diocese.

Boicote de publicidade oficial
 

Os padres exigem, porém, que a prefeitura deixe de publicar atos oficiais em” A LUCTA” que é o jornal de maior tiragem da cidade. É proposta de boicote econômico:

“Se os homens que nos dirigem a política desta terra tivessem compreensão mais segura dos deveres da autoridade e dos direitos do povo, decerto, não consentiriam que os atos do governo local nos fossem comunicados por intermédio de “A LUCTA”.

Não funcionou
 

Em todas as edições daí em diante, lê-se a mesma lengalenga do padre Severiano se queixando de que a condenação de Deolindo não funcionou, não obteve os resultados pretendidos. Pior, os democratas estão irritados com o facciosismo do “Correio”, reconhece o referido sacerdote a 23 de 12 de 1922:

“Alerta, católicos. Já começaram as devoluções do nosso “CORREIO DA SEMANA “ conta-me, de fonte segura, que há por aí uma forte propaganda - feita por pessoas que tanto amam o seu partido democrata, quanto aborrecem a nossa religião católica, com o fim maligno de arranjar devolução de assinaturas do nosso jornal”. Reconhece que, no dia seguinte ao da condenação de “A LUCTA”, andava Deolindo Barreto, “desassombradamente, como um macabeu, pelo mercado público, pelas lojas e casas de seus numerosos assinantes, armado com papel e lápis, a fazer nota dos que lhe ficavam solidários.

Neste trabalho antinômico do Sr. Deolindo Barreto - angariar assinaturas de católicos sérios e honrosos para a continuação de um jornal condenado pela religião destes mesmos católicos - houve terrível falta de lógica, tanto em Deolindo, como naqueles que lhe aceitaram o convite de amizade”.

O padre Severiano, sequer, esconde seu sonho. Queria que, após condenação, o jornalista baixasse a cabeça ante o anátema e fechasse o jornal, para triunfo dos conservadores. Como os processos intentados contra ele, não funcionam, só bala mesmo resolve seu problema.

Ainda tenta, por bons modos, esmagar “A LUCTA”. Começa 1923 exigindo que os barbeiros não assinem o jornal amaldiçoado. O barbeiro Antônio Félix Ibiapina, democrata, é o primeiro a se render e a mandar dizer ao ”Correio “que seu salão, à Travessa do Xerez 21, não se encontra a folha condenada.

Justiça se lhe faça o padre Severiano a 3 de fevereiro ainda quer resolver o caso por bons modos:

“Suspendam esta publicação bi-hebdomadária dos descréditos sobralenses, funde-se um jornal sério e limpo que seja da exclusiva responsabilidade do partido “isto no fecho de artigo que “Eme” que se queixa, pela centésima vez, da ascendência de Deolindo sobre o Partido Democrata.

As forças do céu não logram avanços maiores. A 10 de fevereiro de 1923, o padre Joaquim Severiano endereça nova carta aberta ao chefe democrata, Paula Rodrigues em que usa contra Deolindo Barreto até o fato de o pai do bispo ser do Partido Democrata. Vale tudo para silenciar “A LUCTA”:

“Quero dizer, Exmo Sr., que se o venerando pai do Exmo Sr. Bispo de Sobral - outrora de tão relevantes serviços a nobre política quem hoje desvirtuada, lhe esquece os melhoramentos - já não pode fazer os seus direitos junto ao partido deslembrando, justo e ingrato, que nos valha, ao menos, o direito que tem de não ser amortalhado em vida, a golpes de continuados erros políticos, ao sabor de um Deolindo Barreto e sob a gestãode um Paula Rodrigues”.
 

A 12 de fevereiro, padre Severiano anuncia, eufórico, a devolução, por seu intermédio, de uma dúzia de assinaturas de “A LUCTA” mas continua a se lastimar da divisão do campo do Senhor, da organização da coluna dos hereges e volta a pressionar o Partido Democrata para abandonar Deolindo Barreto.

Uma última tentativa de resolver, pacificamente, o problema é feita, a três de março de 1923, pelo padre Leopoldo Fernandes Pinheiro que chama à responsabilidade Deolindo Barreto por “injúrias impressas”. E manda brasa no “Diário do Ceará” por falar da suspeição dos juizes de Sobral, inimigos pessoais do jornalista processado.

Só bala
 

Excomunhão, memoriais, discursos, pressão contra os eleitores, assinantes e anunciantes de “A LUCTA” não deram resultado. Nem mesmo o processo movido contra ele pelo padre Leopoldo Fernandes. A oligarquia começa a perder a paciência.

Na eleição de 17 de fevereiro de 1924, Deolindo é um dos acusados de haver perturbado a segunda seção a fim de evitar o triunfo do candidato Vicente Sabóia. Chega a casa às 10 horas da noite, depois de um dia agitado. Mal dá a volta na chave da porta de casa para fechá-la, ouvem-se tiros. Ele se deita no chão e toda a carga do revólver é desfechada contra a porta.

Aquele dia não era ainda o reservado para a morte de Deolindo Barreto. Ele sabe porém, que já foi condenado e que no jóquei clube se sorteia quem vai executar a sentença e escreve: “a briga vai ser pela cabeça de nosso diretor”.

Chuva e carnaval
 

É animadíssimo o carnaval na cidade. Sobral é inundada pelas águas do Acaraú que chegam ao centro da cidade. A canoa vira transporte coletivo e serve até para os namorados que até então ocorriam nos passeios domingueiros no bonde puxado a burro, da cruz das almas até a estação de ferro de Sobral.

Continua a guerra
 

Deolindo, porém, continua em guerra total contra os juizes, os padres, Chico Monte, os defloradores impunes. Contra o mundo.
A luta é de tal sorte que ao comemorar o 10ºaniversário de seu jornal, ele mesmo se surpreende de ainda não haver sido executado, de não estar ainda com “a ossada branca à margem da imprensa cearense, assinalando a perversão e a intolerância”.

Seu destino, porém, já fora traçado. Ele não perde por esperar. O que se aguarda é o fim do governo, melhor oportunidade para execução da sentença. Está terminada a administração democrata, iniciada por Justiniano de Serpa e continuada por Ildefonso Albano.

Assim, no dia em que deve acontecer a morte anunciada de Deolindo Barreto, oda eleição, a polícia que quatro dias antes, não deixara a Câmara Municipal conservadora tomar posse no prédio da Prefeitura, estranhamente suspende o cerco ao edifício. É o dia em que Deolindo deve morrer.

***AVISO
 

À noite inteira, dona Mariinha insistiu com o marido para que não comparecesse à eleição no prédio da Câmara, dia seguinte. Era morte certa. O pretexto que os inimigos, agora no final do governo Ildefonso Albano, estavam querendo. Fora advertida pela empregada de Chico Monte de que ele combinara, com dois amigos, o tiroteio contra o jornalista. Deolindo, porém, não atende: “se eu não for, vão dizer que estou escondendo debaixo de tua saia, mulher. Com que cara vou poder sair à rua? ”.E lembra que já sofreu outras ameaças de morte, na Meruoca, tiroteio da porta de casa depois de que ela, Mariinha, sofreu um aborto, prisão, processo, maldição do bispo, mas ninguém se atrevera ao gesto extremo. Os conservadores não o fariam agora no salão da Câmara, cheio de gente, dia de eleição, correndo o risco de chamar a atenção de todo o País. E de qualquer maneira, o governo ainda era “marreta”, dos democratas.

A execução
 

No dia seguinte, às 9 horas da manhã, de fraque novo e cartola, Deolindo marcha firme ao encontro da morte. Estranha não ver mais a polícia cercando o prédio da câmara municipal. Vai em frente. Galga o primeiro lance de dez degraus da escada de madeira. O outro. Chega ao primeiro andar onde estão,à espreita, os inimigos.

Às 9 horas, prazo fixado para começar o pleito, começa a briga em torno da legitimidade da presidência da seção eleitoral. No meio do bate-boca travado, Deolindo é agarrado por Vicente Souza. Joaquim Bento procura tomar-lhe o revólver. Ele se solta. Trepa-se no gradil de madeira e dispara dois tiros para cima para se desvencilhar da perseguição. Cai do gradil. É encostado junto à parede. Soa a fuzilaria. Mais de 40 revólveres atiram simultaneamente contra ele, furam-lhe o fraque, sacodem-lhe o corpo desengonçado ora pra cima ou para baixo naparede até que a gritaria, o tiroteio cessam e ele está caído ao chão, aos pés dos inimigos ante os quais jamais se vergara,a espinha dorsal, quebrada a bala.

No meio da fumaça, dos gritos de horror, alguém desfecha o último tira na bota do jornalista caído, que solta um misto de berro e gemido, lancinantes de dor.

É muita bila, dona Bala
 

Alguns dos presentes à sala da câmara, não podendo fugir pela escada, pularam pela varanda do primeiro andar, para a rua, pendurados a suas bengalas, ao cabo de seus guarda-chuvas.

Um deles, orador famoso, dançarino exímio, apesar de seu 1,58m de altura, Antônio Rodrigues de Almeida, Toinho, foi um dos que, na pressa, no temor das balas, saiu do prédio pela janela. Já, no chão, fugiu em desabalada carreira, de volta para o lar. Ao passar pela casa da homeopata da. Onfale Gondim, apelidada dona Bila, nem se deteve para atender à sua curiosidade. Atropelando palavras no susto e na correria, respondeu-lhe:

“É muito bila, dona Bala”. E continuou correndo.

Deolindo não morreria na hora. Viveria ainda dois dias de dolorosa agonia. Somente terminaria seu sofrimento na madrugada de 18 de junho de 1924, assistido pelo pe. José Gerardo Ferreira Gomes, a quem pediu os sacramentos da confissão e comunhão.

 

 

 

 

 

02/02/2006