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Leandro Konder


 


O diabo vai protestar?



20 de agosto de 2005

 

Entre as obras-primas que Machado de Assis escreveu, há um conto intitulado ''A igreja do Diabo'' que merece uma atenção especial, pois parece que foi escrito diretamente para a realidade do Brasil contemporâneo.

No conto, o Diabo procurou Deus para lhe comunicar que desistiu de trabalhar no varejo e decidiu operar no atacado: resolveu fundar uma igreja.

Argumentava: as almas das pessoas são como mantos de veludo com franjas de algodão. E concluía: puxando-as por essa franja, trarei todas para a minha igreja. Desafiador, o Capeta insistia: O céu vai ficar vazio, por causa do preço, que é muito alto. Minha hospedaria barata vai levar uma enorme vantagem na concorrência.

Escritura contra Escritura, breviário contra breviário, o Demônio se lançou à sua prédica. Reabilitava a gula, a luxúria, a avareza (''é a mãe da economia''). Um crítico, na época, considerou a apologia demoníaca da venalidade um monumento de lógica.

O Diabo dizia que os seres humanos, tendo direito à propriedade, podem vender tudo que lhes pertence. Você pode vender a sua casa, o seu boi, o seu sapato, o seu chapéu: são coisas que lhe pertencem. São coisas que estão fora do seu corpo. Quando nos defrontamos com a situação criada pelas propriedades que estão dentro de nós, fazem parte do nosso corpo, não podemos deixar de reconhecer que elas são muito mais propriedades nossas do que as virtudes que foram absorvidas e só depois passaram a fazer parte da nossa realidade física, corporal.

Portanto, é absurdo que o ser humano possa vender livremente sua casa, seu boi, seu sapato, mas sofra restrições em sua capacidade de vender sua opinião, seu voto, sua palavra.

Essa característica da ''ética'' do Demônio me parece ser interessantíssima. Voltaremos a ela. Antes, contudo, devo lembrar que a experiência da Igreja do Diabo fez, inicialmente, um sucesso imenso, porém depois o Príncipe das Trevas descobriu que os seres humanos eram bem mais estranhos do que ele pensava. Seus pecadores preferidos (os ''santos'' da sua Igreja) praticavam a caridade secretamente. Cultivavam as antigas virtudes. Muitos avarentos davam esmolas , à noite, nas ruas mal povoadas.

Perplexo, Satanás foi consultar Deus, para tentar entender o que estava acontecendo. E Deus lhe disse: ''Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana''.

Não pretendo hoje, aqui, comentar o final do conto. Minha intenção é apenas a de indagar se algum elemento do ideário da Igreja do Diabo sobreviveu em solo brasileiro.

Estudando o comportamento de alguns legisladores, analisando as atitudes assumidas por alguns dos ilustres representantes dos poderes da República - Legislativo, Executivo e Judiciário - tendo a achar que a influência da reflexão e da ação do Capeta é inegável.

As denúncias sobre o mensalão, as malas cheias de dinheiro, as mentiras pregadas durante os depoimentos, o juiz que matou um funcionário de supermercado porque o funcionário não lhe permitiu entrar após a hora de fechar o estabelecimento... Tudo isso soa como coisa típica do Demo.

Examinando o panorama com maior cuidado, porém, sinto falta de uma virtude diabólica, que Belzebu exibe com muito vigor. Sinto falta de uma franqueza retórica que, se não é completamente ausente, é com certeza bastante escassa entre os nossos delinqüentes ilustres.

O Diabo, tal como está caracterizado no conto de Machado de Assis, assumia ser efetivamente quem era, confessava sua identidade e se esforçava para desmoralizar as imagens que dele faziam as velhas beatas. Pedia que os homens comparassem tais imagens com sua estampa real: ''Vêde-me gentil e airoso''. Como quase todos os intelectuais, era vaidoso. Contudo, tinha razão para se orgulhar de sua eficiência retórica. Expunha sua doutrina com ''uma voz que reboava nas entranhas do século''. Incutia em seus ouvintes, na turba que o seguia, ''a grandes golpes de eloquência'', os preceitos da sua nova Igreja.

Esse talvez seja o ponto decisivo para nós discutirmos a respeito do grau de continuidade que liga a Igreja do Diabo à vida política brasileira: a qualidade da retórica nos debates atuais é muito medíocre. As deficiências retóricas se agravam na medida em que os falantes, em sua imensa maioria, falam demais. Outro dia, um falante desastrado fez uma citação mal feita, em latim: transformou modus operandi (modo de atuar) em ''MODESS operandi''.

Nas batalhas que vêm sendo travadas pelas autoridades, as armas da eloqüência vêm sendo usadas de maneira bisonha. Em alguns pronunciamentos, as regras da concordância gramatical parecem ter sido abolidas.

A confusão na linguagem parece corresponder à confusão moral e à confusão política. Há conservadores pregando mudanças drásticas; há revolucionários que só se preocupam com a preservação da ordem, com a governabilidade; há ateus se prosternando diante de todos os altares e há religiosos carregando malas profanas, cheias de dinheiro.

No Parlamento, há pessoas que querem criar tumultos e gritam ''pela ordem!''. Há adversários que se insultam, mas se tratam de ''excelência''. Os comportamentos se tornaram muito bizarros. E não são poucos os observadores que chamam a nossa atenção para a importância do papel que a deterioração da linguagem vem desempenhando nesse processo que o velho Marx chamaria de ''alienação'': os seres humanos não se reconhecem naquilo que estão criando.

Podemos, apesar das diferenças, sustentar que atualmente nos defrontamos no Brasil com uma reedição da velha Igreja do Diabo? Ou, com a corrupção da linguagem, já nos encontramos num estágio mais avançado de corrupção do que aquele que se manifesta na completa mercantilização da vida, tal como está descrito no conto de Machado de Assis?

Devemos formular nossa avaliação com cuidado. Pode ser que estejamos alcançando um novo patamar. Podemos até chegar a uma situação na qual o Diabo, mestre da retórica, escandalizado com a corrupção da linguagem, venha a entrar na Justiça com uma ação pleiteando que os nossos delinqüentes políticos (são muitos!) não sejam considerados seguidores fiéis dos mandamentos da bem-sucedida instituição por ele fundada, a respeitável instituição chamada Igreja do Diabo.
 

 

 


 

27/06/2005