Antonio Olinto
A verdade da ficção
No contexto dos 80 anos de Lêdo Ivo e do lançamento de sua poesia
completa, reunida num só volume, apresentado há pouco na Academia
Brasileira de Letras, desejo falar hoje do romance do mesmo autor
traduzido na Inglaterra.
Há uma unidade orgânica - tal como a unidade normal à vida - que se
reproduz na obra de ficção, mesmo quando esta voluntariamente se
esfacela e se subdivide, em parcelas, contrapontos, saltos,
regressos, inesperados volteios no tempo e no espaço. Chama W. P.
Kerr a atenção para as "Sagas" - e ele faz questão de usar maiúscula
inicial na palavra Saga - que já possuíam os elementos essenciais
dessa unidade narrativa. Foi o que primeiro me causou admiração no
romance de Lêdo Ivo, "Ninho de cobras". A unidade precisa, díspare,
firme, diversificada, em que personagens, ruas, casas, móveis,
lugares, se juntam e logo se afastam, em conflitos e súbitas
pacificações que têm sua linha central na raposa que, no começo do
dia, entra na cidade aparentemente tranqüila dos homens onde tudo
pode acontecer, e acontece.
Quando o li pela primeira vez, como presidente da comissão julgadora
do Prêmio Nacional Walmap, onde os originais se apresentavam com
pseudônimo, não tive dúvidas de que estava diante do vencedor.
Premiado o romance, foi ele considerado, pela crítica em geral, como
o que de melhor apresentava a ficção brasileira na década de 70.
Mais tarde, abro um dia "The Times", para ler as páginas literárias,
e deparo com uma crítica de Stuart Evans ao livro "Snake's nest",
que vinha a ser o título do romance de Lêdo Ivo, traduzido por Kern
Krapohl e editado por Peter Owen. Logo no primeiro parágrafo diz
Evans:
"Uma raposa se perde no centro de Maceió, cidade principal de
Alagoas, no Nordeste do Brasil. O animal é visto, reconhecido,
confundido com um cachorro, desconsiderado por muita gente até que é
morto violentamente a pauladas. Torna-se, assim, a raposa, o elo
deste romance bravio, soberbamente bem construído em que as vidas,
preocupações, obsessões de um professor presunçoso, uma prostituta,
uma bondosa freira de hospital e um anônimo escritor de cartas
venenosas (que permanece sem identificação) obliqua e sutilmente se
ligam ao suicídio de um Alexandre Viana, cidadão comum,
razoavelmente bem respeitado."
Antes de terminar sua análise, usa o critico inglês duas expressões
para completar o artigo: "Grande romance" e "O estilo é magnífico".
Sabe-se que a apreciação normal dos jornais ingleses sobre romances
"de fora", isto é, traduzidos, é muito reticente. Raramente os
elogiam e, quando o fazem, têm cuidado especial na enumeração de
possíveis defeitos do livro apreciado.
A tradução de Ken Krapohl manteve o ritmo da narrativa, em que Lêdo
Ivo consegue dar às palavras uma fluência que realça os pontos
dramáticos de cada movimento do romance. Existe uma verdade estética
intimamente ligada aos símbolos. A vida de uma região, de uma
comunidade, num determinado tempo, entra num livro e pode, nele,
ganhar uma universalidade que o transforme em símbolo. O importante
- e é o que Lêdo Ivo faz - é que o narrador reflita uma realidade
impregnada de permanência. Chega ele a esse resultado no mostrar as
sensações básicas do homem e no dominar a matéria de sua arte de tal
maneira que possa reduzir a dureza convencional de toda forma ou
fôrma.
A força vocabular do romance, em "Ninho de cobras", é eminentemente
não discursiva. A história que ela narra surge em cenas essenciais,
nada intelectualizadas, em técnica parecida com a dos antigos gregos
que matavam por vingança e morriam pela necessidade inarredável da
luta.
Fora do mundo em que vivemos e, contudo, a ele intimamente ligado,
ergue o romancista um pedaço de tempo, em que pessoas se movem, em
que as coisas se dispõem no espaço, em que sentimentos se jogam
contra a neutralidade geral das coisas. O ficcionista faz sua gente
ter medo, fome, frio, amor, alegria, vinganças. Quando Aristóteles
falou de narrativa, disse: "Toda felicidade e miséria humanas tomam
a forma de ação". Embora se referisse mais ao drama grego - e à
poesia narrativa da época - o sentido da frase aristotélica é válido
ainda hoje. A ação sinuosa, tormentosa, contudo magistralmente
conciliada consigo mesma, de "Ninho de cobras", dá ao romance de
Lêdo Ivo uma permanência de obra definitiva. Ele conquistou, com
esse livro, a verdade mesma da ação. Ou a verdade da ficção.
Leia obra de Ledo Ivo
|