Juarez Leitão
Saudação ao poeta Carlos Augusto
Viana
no seu ingresso na Academia Cearense de Letras,
no dia 26 de junho de 2003.
Em uma certa manhã de fevereiro, há cerca de trinta anos, deparei,
em um dos colégios em que trabalhava, com um aluno que recitava
poemas de Castro Alves, inclusive “O Navio Negreiro” , um dos mais
longos da literatura brasileira.
Informados por mim, o professor de literatura, Paulo Monteiro
Pimpão, e o diretor da escola, Genuíno Sales, passamos os três a
prestar atenção àquele adolescente singular que demonstrava
sensibilidade refinada em um tempo em que o interesse emocional dos
jovens já se destinava a apelos mais imediatos e mais barulhentos da
vida. E não nos foi difícil constatar que se tratava (como diz um
conto de Drummond) de um autêntico caso de poesia.
Orfeu, esse deus amoroso e sedutor, agira mais uma vez sobre o
destino humano, convocando para suas fileiras o adolescente CARLOS
AUGUSTO VIANA.
Depois soubemos que, desde a infância, aquele que nos abismara era
possuído do sentimento original da vida e da sina definitiva de ter
encantos e produzir encantos.
Não fomos seus descobridores, pois já vinha de outras viagens e até
já se fizera vencedor de um concurso literário, obtendo, com versos,
seu primeiro dinheiro.
O que nos animava era que, mais uma vez, nos encontrávamos com a
poesia. E encontrar a POESIA é sempre uma ocasião compensadora, uma
revelação dramática e um ato de recomposição vital.
Tenho-me pronunciado em outras oportunidades sobre o impacto
emocional que me causa o encontro repentino com a verdadeira poesia.
Velo-a em todos os seus caminhos, desde que feita do amplo
sentimento e de elevada emoção humana.
Os poetas são os descobridores do mundo. Uns vêem os cortes da vida,
os objetos do espanto, o contingente, o desaparente, os passos da
circunstância; outros, o amor romântico, a ética assinalada, a
aventura altruísta e o heroísmo.
Alguns, como um oleiro, trabalham o verso puro, medido, imprimindo
no jarro que modelam os arabescos parnasianos; outros, livram o
poema de qualquer atavio, descarnando-o de adjetivos, deixando-o
simplesmente essencial, como um caule escalavrado, sem casca e sem
nó, puro e denso miolo.
Há ainda os ecléticos, como o poeta CARLOS AUGUSTO, que praticam
todas as diversidades experimentais, dos versos brancos, sincopados
ou arrumados em forma de desenho ao soneto perfeito, decassilábico,
composto modernamente sobre a forma clássica, petrarquiana.
Em todos os caminhos e por todos os disfarces de sua aparência, a
poesia nos eleva, como disse Benedito Crose, acima da estreiteza do
finito, levando-nos rumo às coisas que não se acabam, às coisas
infinitas.
Voz arcaica ou clarim de alvíssaras, a poesia tem os olhos da vida.
Enxerga a profundidade dos sentimentos nobres e as miudezas da
natureza humana.
Não se sustenta da necessidade de decifração. Não está diante de nós
para ser explicada. Não é definição, mas transcendência e, nessa
asa, deve ser absolvida como mistério, recebida como sensação e
convidada para ocupar lugar em nossa vida, para que nela desenvolva
ternuras e delírios.
Espalhando-se nas generalizações ociosas, ela cumpre menos o seu
papel do que quando olha fixamente o indivíduo e nele descobre a
humanidade, obtendo a tradução luminosa dos fatos, dos seres e dos
lugares.
Para os homens de fé, a poesia é o outro nome de Deus.
CARLOS AUGUSTO VIANA conhece a arte do fazer poético e, por ter alma
grande e o espírito sublime dos bons, desenvolveu e aprofundou sua
realização estética, auferindo das coisas e do tempo motivações e
impulsos que, em sua obra, se tornaram expressões cristalinas do
sentimento e da paixão.
Na Universidade, perscrutadores de talentos como Pedro Paulo
Montenegro, Linhares Filho, Horácio Dídimo, Sânzio de Azevedo,
Ângela Gutiérrez, Lourdinha Leite Barbosa e Teoberto Landim,
cansados de fitar o horizonte nesse imenso e monótono mar de
ausências criadoras, avistaram no aluno de mestrado CARLOS AUGUSTO
VIANA um destacado maciço literário, um alvissareiro Monte Pascoal.
Moreira Campos, há mais de vinte anos, já o classificava como um
lírico e elegíaco que sabia, embora muito jovem, expressar-se
maduramente sobre a paixão e a dor.
Seu primeiro livro, “Primavera Empalhada” , publicado em 1982,
surpreendeu a comunidade literária do Ceará.
Francisco Carvalho comparou sua poesia a uma “ entidade que brotasse
das profundezas da terra; entidade que evoca poderosamente os
mortos, a água e o fogo ancestral.”
José Alcides Pinto confessou que sentia “ a sensação de tratar-se de
um poeta com amplos recursos criativos, tanto do ponto de vista da
linguagem como da forma.”
Airton Monte viu em “Primavera Empalhada” “um livro único, com gosto
de vida e o seu autor como “ um poeta lúdico e lúcido. Sábio,
cearense e universal, como a própria poesia.”
Dimas Macedo registrou que CARLOS AUGUSTO se apresentava com “uma
poesia marcada pelo signo da estética e de uma refinada força
criativa, que o coloca, com justa razão, entre os poetas que mais
renovaram a morfologia e a semântica da nossa poesia na década de
1980.”
Duas décadas separam o primeiro do segundo livro, “ Inscrições dos
Lábios”, porque nosso poeta costuma agir com parcimônia, quando se
trata de produzir literatura de qualidade.Talvez concorde com Márcio
Tavares do Amaral, que diz que: “ A poesia é um calmo derramar/
suave enchente, sabe seu tempo./ Nunca é devagar, nem de repente.”
Desse livro, de temática semelhante ao anterior, emerge agora o
poeta maduro, aprimorado pela experiência, pelas leituras, pelo
exercício da docência na escola média e na universidade e,
sobretudo, pela vida, esse caminho sinuoso da sabedoria.
Consciente de que muitos se perdem no espaço movediço entre a
inspiração e a expressão, confessa que trabalha com paciência o
texto, faz e refaz abordagens, corta, atalha , retalha, embaralha e,
depois, se deita preguiçosamente sobre cada verso, experimentando
sua consistência, sua força, seu gosto e seu calor.
O resultado vem comprovar que CARLOS AUGUSTO VIANA e a poesia têm
passado a vida se amalgamando, se namorando, se vigiando
apaixonadamente, se encontrando por todos os lugares e vivendo
ardentes aventuras de entrega absoluta. Como se fossem unha e carne.
Outra faceta da escritura de CARLOS AUGUSTO é a crítica literária,
que pratica como professor de literatura e como jornalista, no
Caderno de Cultura do Diário do Nordeste, de que é o editor
responsável.
Sua dissertação de mestrado, recentemente publicada sob o título de
“ Drummond, a Insone Arquitetura” , é, segundo o professor e poeta
Linhares Filho, seu orientador, um profundo exercício de argúcia e
sensibilidade crítica, onde o ensaísta conquistou a marca da
originalidade, pelo modo pessoal, consentâneo e minudente de
analisar e interpretar a obra drumoniana.”
Este desempenho, esta literatura e todos os valores humanos que
congrega em seu espírito lúcido levaram a Academia Cearense de
Letras, em um dos momentos mais dramáticos de sua história, pois
acabara de perder a companhia ilustríssima de Antônio Martins Filho,
a escolher, por eleição, para ocupar a cadeira 3, o ensaísta,
jornalista, professor e, sobretudo, poeta CARLOS AUGUSTO VIANA.
Poeta CARLOS AUGUSTO, por quem sois sede bem-vindo!
O destino quis que na noite majestosa e fulgurante de vossa chegada
estivesse à porta do Palácio da Luz para vos receber este simples
cantador do Vale do Poty, dos sertões de Crateús, de rouca viola e
parca inspiração, admirado e reverente ante o alto valor da
literatura que estais produzindo, da nobreza de vossos sentimentos,
da vossa altaneira e vigorosa personalidade, de vossa vida empenhada
pela educação, pela produção e pela divulgação da cultura.
Tenho os braços abertos para vos acolher em nome dos senhores
acadêmicos e um tapete vermelho no coração cúmplice de velho
companheiro desse mar trepidante da vida, dessas noites de copos e
canções, dessas estradas densas de saudades, plenas de lutas e
fadigas, caminhos sempre novos de sonhos perdidos e eternas
esperanças.
Poeta CARLOS AUGUSTO, não é preciso que tireis as sandálias, como
fez Moisés à voz suprema de Javé de dentro da sarça ardente; mas
igualmente o lugar em que pisais é um lugar sagrado.
Este velho prédio, que por anos e anos, foi a sede do governo do
Ceará, nasceu no último quartel do século XVIII como residência
particular do capitão-mor Antônio de Castro Viana (quem sabe, um
vosso parente setecentista).
Foi construído de tijolo de coco e barro, extraídos das margens do
rio Cocó, e caiado e entelhado com materiais oriundos do Aracati.
Em 1801, quando faleceu, o dono desta casa era tesoureiro da Fazenda
Pública e o seu maior devedor. Por esta razão a Junta da Fazenda
Pública penhorou o prédio e o vendeu à Câmara Municipal da Vila de
Fortaleza pela elevada quantia de oitocentos mil réis.
Como a Câmara não dispusesse desse dinheiro criou imediatamente um
novo imposto (como se faz nos nossos dias), o curioso subsídio das
águas ardentes.
O imposto consistia, segundo o historiador João Brígido, na cobrança
de quatro mil réis sobre a pipa de cachaça importada de Pernambuco.
Desta forma, quanto mais se bebesse cachaça na terra de Nossa
Senhora d’Assunção mais cedo se pagaria o Palácio.
Em 1809, o prédio foi trocado por outro, para onde se mudaram os
edis, passando a funcionar como sede do governo da Capitania do
Ceará-Grande. O título famoso de “Palácio da Luz” foi-lhe dado,
naturalmente, após a Abolição da Escravatura, da qual o Ceará foi
precursor histórico.
Destas paredes, poeta CARLOS AUGUSTO, vem a voz da memória.
Elas suportaram, em 1892, o bombardeio dos canhões La Hitte de 12
polegadas, ordenado pelo comandante da Escola Militar, por ocasião
da deposição do general Clarindo de Queiroz
Estas mesmas paredes receberam os tiros e as pedradas partidos das
barricadas populares, quando em 1912 foi apeado do poder o velho
oligarca Nogueira Acioli.
Os habitantes dessas cercanias e os sem-casa que dormem na adjacente
Praça General Tibúrcio falam de sons de música, murmúrios e arrastás
de pés que parecem vir daqui, na calada da noite, como se houvesse
uma festa. São os fantasmas dançarinos do tempo do governador Matos
Peixoto que, no final dos anos 20, costumava promover todos os
sábados um animado baile no Palácio, quando, como diz o povo,
“enrascava” a noite toda com sua mulher, a simpática Da. Violeta, na
prazeirosa companhia de seus correligionários prediletos, os
chamados “maravilhas” , e na animação das valsas, polcas e mazurcas.
Em 1930, vitoriosa a Revolução de Vargas, a massa popular enxotou o
governador festeiro, pondo em seu lugar o líder aliancista Fernandes
Távora, que foi trazido diretamente da prisão para esta sala.
E, no meio da euforia e algazarra que costumam incendiar esses
momentos de exaltação política, alguém colocou uma faixa sobre o
frontispício do Palácio da Luz, em que se podia ler:
“Nesta casa, a partir de agora, não se dança mais!”
Outras histórias e outros fantasmas estão ligados à mitologia deste
prédio, que também sediou a Casa de Cultura Raimundo Cela e hoje
abriga a mais antiga academia de letras do Brasil.
A instituição a que, por merecimento, ireis pertencer, ocupando a
cadeira três, que tem como patrono o juiz e promotor Antônio Augusto
e como antecessor o magnífico reitor Antônio Martins Filho, foi
fundada em 15 de agosto de 1894, dois anos antes da própria Academia
Brasileira de Letras.
Este respeitado sodalício nasceu da iniciativa de uma plêiade de
notáveis cidadãos, cearenses ilustres do século dezenove, entre os
quais se destacavam o médico, historiador e líder católico Guilherme
Studart, o poeta abolicionista e futuro governador Justiniano de
Serpa e o fundador da Faculdade de Direito do Ceará, professor Tomás
Pompeu de Sousa Brasil Filho.
Surgida com o simples nome de Academia Cearense, congregava os
sábios da época, de todos os ramos, literatos, juristas, artistas e
cientistas.
Em sua longa trajetória viveu quatro fases, desde sua fundação, no
intuito de aquecer seus objetivos originais ou dirimir divergências
no meio cultural. Em 1922, por iniciativa de Leonardo Mota e apoio
do presidente do Estado, acadêmico Justiniano de Serpa, aumentou de
28 para 40 o número de seus sócios efetivos, seguindo o modelo da
Academia Francesa e da Academia Brasileira de Letras. Com a intenção
de reativar o movimento literário do Ceará, esmorecido desde a morte
do Presidente Serpa, em 1923, veio a terceira reforma, em 1930, por
iniciativa do historiador Valter Pompeu. E a última, em 1951,
quando, por esforços de Dolor Barreira, Joel Linhares , Clodoaldo
Pinto, Henriqueta Galeno, Albano Amora e Perboyre e Silva, se
fundiram a Academia Cearense de Letras e a Academia de Letras do
Ceará.
A instituição que vos recebe, nesta noite formosa de junho,
professor Carlos Augusto, é presidida com inteira competência por
Artur Eduardo Benevides, um fidalgo que Pacatuba concebeu para a
literatura e para a nossa fraternal convivência. Mestre e
companheiro, reina na Távola Redonda deste emirado de Orfeu, onde
foi justamente aclamado o “Príncipe dos Poetas Cearenses.”
Ao bater as aldravas de nossa casa produzistes em nós a alegria
radiante com que se recebem os muito bem-vindos.
Adentrai, cavaleiro CARLOS AUGUSTO VIANA, este velho palácio e tomai
assento na mesa larga de nossa amizade, pois já vos esperávamos
desde que se anunciou vossa viagem.
Trazei vossa bagagem lírica, vosso inventário memorial, a força
sedutora e envolvente de vossa inspiração, desinfetada do
lugar-comum, mas opulenta de símbolos, invenção e sonoridades.
Vossa capacidade criadora, corda luminosa esticada sobre o abismo
profundo das indagações, já nos produzia respostas antes de vossa
vinda.
Trazei a vossa poesia, fina seda e mão germinadora, que tem a
faculdade milagrosa de, ao tocar os potes de Caná, transformar a
água simples da vida no vinho vermelho das paixões.
Trazei os alpendres do patriarca Artur Alves Pereira, vosso avô, e
aquele território da infância em que os rios gemiam, os papagaios de
papel eram empinados, os prados arados com poema, o canavial
espanado pelas lâminas dos ventos marinhos e um boi, em mansa
solidão, ia mastigando a tarde.
Não chegueis para apaziguar vossa inquietação ou para vos entregar
ao sono impassível da imortalidade.
Vinde para continuar vossa semeadura, vossa verde seara, na lúcida
produção dos frutos eternos.
Poeta CARLOS AUGUSTO, por vossa sublimidade e pelo valor de vossa
literatura, sede bem-vindo ao Reino de Pasárgada e à memória
perpétua da história.
Remetido por Lustosa da Costa: sobralense@uol.com.br
Leia Carlos Augusto
Viana
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