Léo Schlafman
Bilac
(in Caderno Idéias, Jornal do Brasil)
Quase um século após sua morte, a publicação das obras reunidas
serve de estímulo para reavaliar o poeta que, objeto de entusiasmo
popular na sua época, tornou-se o alvo preferido dos modernistas
(Obra reunida - Olavo Bilac - Organização de Alexei Bueno.
Nova
Aguilar, 1.078 páginas. R$ 67)
Oitenta anos
separam a morte de Olavo Bilac da publicação ônibus de seus livros.
É quase um século - mas século de grandes transformações estéticas e
políticas. O poeta, que nasceu durante a Guerra do Paraguai e
morreu, com a belle époque, no fim da Grande Guerra, reapresenta-se
ao público em plena guerra da Chechênia, depois do desmoronamento do
império soviético. Mas nunca deixou de ser publicado avulsamente, e
lido, analisado nas escolas, e de tal forma que muitos de seus
versos hoje fazem parte da memória popular, como "Ora (direis) ouvir
estrelas!" ou "Última flor do Lácio, inculta e bela, / És a um
tempo, esplendor e sepultura".
Sempre foi
transcrito com fartura nas antologias, entronizado na liderança do
movimento parnasiano, criticado e defendido, depois da morte como em
vida. Mas, como disse T. S. Eliot, de tempos em tempos, em cada 100
anos mais ou menos, é desejável que algum crítico apareça para rever
o passado e dispor os poetas e os poemas em nova ordem.
Segundo Eliot,
nenhum poeta nem qualquer outro tipo de artista tem seu significado
completo sozinho. Sua apreciação é a apreciação da relação com os
poetas e artistas mortos. Não se pode avaliá-lo isoladamente. Quando
nova obra de arte é criada, algo novo ocorre com todas as obras que
a precederam.
O ciclo a que
Bilac pertenceu chocou-se de frente com o fogo de barragem da Semana
de Arte Moderna. De fato, quatro anos depois da morte dele, em 1918,
os modernistas, em 1922, que, na fórmula de Ivan Junqueira, não
sabiam bem o que queriam, embora soubessem perfeitamente o que não
queriam, escolheram-no como alvo de predileção, abalaram-lhe o
prestígio, e tudo "porque sua poesia não interessava em absoluto ao
projeto modernista, e não porque o julgassem mau poeta".
O verso livre
já destronara soneto, alexandrino e rimas em outras plagas, mas hoje
se sabe, com o distanciamento crítico que só o tempo proporciona,
que nenhum verso é livre para o homem que deseja fazer bom trabalho.
Grande quantidade de prosa de má qualidade tem sido escrita, desde
então, com o nome de verso. E vice-versa. Apenas um mau poeta
poderia considerar o verso livre libertação da forma.
No entanto, a
clivagem entre parnasianismo e modernismo enraizou-se para sempre.
Basta comparar a exaltação militar de Bilac, na campanha pelo
alistamento obrigatório, com o pacifismo de Clã do jabuti, de Mário
de Andrade, dez anos depois, para constatar o abismo que a revolução
modernista cavou entre as duas gerações. O abismo teve várias
conseqüências. Gonçalves Dias, Castro Alves e Olavo Bilac foram os
últimos na literatura brasileira a despertar ao mesmo tempo
entusiasmo culto e popular. Implantou-se entre o grande público e as
artes, incluindo a poesia, um mal-entendido, uma dissociação, até
hoje não suficientemente esclarecida.
Num banquete
monstro de que foi alvo, em 1907, Bilac lembrou que quarenta anos
antes não havia propriamente homens de letras no Brasil. "Havia
estadistas, parlamentares, professores, diplomatas, homens da
sociedade ou homens ricos, que, de quando em quando, invadiam por
momentos o bairro literário..." Na fase seguinte, poetas e
escritores que desejavam ser apenas poetas e escritores cometeram o
erro de mostrar desdém pela consideração que a sociedade lhes
recusava. A geração de Bilac, e ele principalmente, transformaram o
que era então passatempo em profissão, culto, sacerdócio. "Viemos
trabalhar cá em baixo, no seio do formigueiro humano."
Hoje em dia não
há banquetes monstros para poetas. O formigueiro humano sequer gosta
da poesia que lê, alegando que não a entende. Já Bilac, da estréia
ao crepúsculo, revelou-se antes simples do que complicado, e isto
talvez seja uma das causas da extrema receptividade que tiveram e
ainda têm seus versos. José Veríssimo criticava em Bilac a falta de
extensão e profundeza, mas reconhecia feição descritiva, pompa, o
brilho novo de sua forma, feitos para agradar, dando sempre
"impressão de acabado, de perfeito". Machado de Assis, em A nova
geração, definiu a poesia parnasiana como uma inclinação nova nos
espíritos, sem se utilizar ainda da expressão parnasiana. O
parnasianismo renegou o romantismo, e exaltou uma arte fria ("Serás
para mim uma deusa, / (...) inviolável e fria", escreveu Bilac),
impassível, intelectualizada, contra o transe, a participação e a
emotividade - em suma, a hipertrofia do eu. Em Profissão de fé Bilac
pregou o trabalho formal, o culto ao estilo: "Torce, aprimora,
alteia, lima / A frase; e enfim, / No verso de ouro engasta a rima,
/ Como um rubim." Queria que a estrofe, cristalina, "Dobrada ao
jeito / Do ourives, saia da oficina / Sem um defeito".
No correr da
história literária, os parnasianos da primeira hora, como Alberto
Oliveira, Raimundo Correia e Bilac (a "trindade parnasiana") têm
sido identificados como românticos retardatários. Filiavam-se ao
parnasse francês (Gautier, Bainville, Lisle, Baudelaire e Hérédia).
Bocage superou Camões na veneração parnasiana brasileira. As obras
bem escritas são eternas. Aboliu-se o mistério na poesia.
Evitavam-se recursos musicais, como aliterações, homofonias, ecos,
expressões de poder encantatório. Repudiava-se o contexto medieval e
se proclamava a superioridade da vida, da saúde, da sensualidade, da
objetividade, do conhecimento do mal e do homem, sobre a morte, a
doença, a melancolia, o sentimentalismo, a objetividade, a inocência
e Deus (João Pacheco, em O realismo).
Mas a
impassibilidade parnasiana não se manifestou totalmente nos poetas
brasileiros, sempre atormentados pela incontinência da sensibilidade
nacional, o brilho da paisagem, a exigência do sensualismo. O
próprio Bilac, citado por Pacheco, mais de uma vez reclamou, em
versos, da asfixia imposta pela escola, demasiadamente atada à
prisão da lógica: "O pensamento ferve, e é um turbilhão de lava: / A
Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve..." Manuel Bandeira, em
Poemeto erótico, mostrou que isto não acontecia sempre: "Teu corpo
claro e perfeito, / Teu corpo de maravilha, / Quero possuí-lo no
leito / Estreito da redondilha." Pode-se, portanto, como fez
Bandeira, e Bilac tantas vezes, tirar proveito das limitações da
forma, quando se quer. Mário de Andrade, em O empalhador de
passarinho, disse, a propósito de Bilac: "A escultura das palavras
também tem suas belezas. A solaridade, a luz crua, a nitidez das
sombras curtas de certos verbalismos enfunados, pelo próprio
afastamento em que estão da verdadeira poesia, têm seu sabor
especial, pecaminoso."
Ao estrear, aos
23 anos, com Poesias, Bilac já estava perfeitamente enquadrado no
rigor da forma, e com a sensualidade à flor da pele. Na
adolescência, encharcou-se dos ecos da Guerra do Paraguai ("Todo
esse espetáculo de heroísmo dominando a vida nacional, e por muitos
anos alimentando a altivez do povo"). O Rio de sua maturidade era
estranho burgo colonial, com quase três quartos de negros. A casa
onde nasceu, na Rua da Vala, atual Uruguaiana, pertencia à área que
melhor exprimia a fealdade e sujeira da capital. Perto estava a Rua
do Ouvidor, com seu singular comércio francês. Conforme descreveu
Ledo Ivo, o que dominava o centro urbano era o comércio atacadista
de aspecto sinistro. Quando um tílburi corria pelos calçamentos
irregulares, os pedestres se colavam às paredes. Passava-se manteiga
da Dinamarca no pão de trigo inglês, bebia-se cerveja alemã,
comiam-se queijos flamengos na Confeitaria Pascoal, usavam-se os
esgotos da City e andava-se em bonde da Botanical Garden. Os
cidadãos inconformados reclamavam das loucuras do prefeito Pereira
Passos.
Um ano antes da
publicação de Poesias (1888) Bilac noivou com Amélia de Oliveira,
irmã de seu amigo parnasiano Alberto de Oliveira. O noivado durou
pouco. E ela se tornou, para o solteirão empedernido, a inspiradora,
a Beatriz - um dos pólos de seu lirismo amoroso. Advogado da vacina
obrigatória e do alistamento também obrigatório, republicano de
primeira hora, destacou-se contudo por suas inclinações
reacionárias. Esteve preso ("Quatro prisões, quatro
interrogatórios... / Há três anos que as solas dos sapatos / Gasto,
a correr de Herodes a Pilatos" - Em custódia, sob o pseudônimo
Fantasio, soneto não incluído na Obra reunida) e exilado em Minas,
onde conheceu Afonso Arinos, que marcou a segunda etapa de sua
poesia ("meu nacionalismo é filho de meu tradicionalismo". Bebia
muito, mas também trabalhava muito. Desde a fundação da Academia
Brasileira de Letras deixou de ser boêmio para ser o poeta
acadêmico.
O delirante erotismo do poeta
A sensualidade cantada nos versos do parnasiano Olavo Bilac deve
muito à poesia de Baudelaire
A poesia
sensual de Bilac não tinha novidade quanto ao fundo, pois derivava
de Baudelaire e do realismo brasileiro. A expressão fácil era ao
mesmo tempo elegante ("Cai o céu sobre mim em pirilampos..."). É de
longe o mais erótico poeta brasileiro, como demonstrou em Satânia
(curiosamente não rimado): "Sobe... cinge-lhe a perna longamente; /
(...) / Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura, / Morde-lhe os
bicos túmidos dos seios, / Corre-lhe a espádua, espia-lhe o
recôncavo / Da axila, acende-lhe o coral da boca / (...). Em Beijo
eterno pede: "Quero um beijo sem fim, / Que dure a vida inteira e
aplaque o meu desejo!" Em A tentação de Xenócrates, dedicado a
Machado de Assis, descreveu Laís, escrava siciliana, como tendo
seios como "dois pássaros que pulam / Ao contato de um beijo". Em
Última página dirige-se a uma das namoradas (imaginária?) assim:
"... Sentada em meus joelhos, / Nua, presos aos meus os teus lábios
vermelhos, / (Lembras-te, Branca?) ardia a tua carne em flor..." A
lição, soneto não incluído em livro, corresponde ao espírito
deletério da época: "Quis amá-la no campo; arranquei-lhe os
vestidos, / Pu-la à moda pagã: nua completamente."
O erotismo de
Bilac era delirante, fruto talvez de uma perturbação nervosa, da
boemia, da perversão. Até mesmo o bandeirante Fernão Dias Pais, O
caçador de esmeraldas, era o "desvirginador da Terra Brasileira",
onde se fartava de amor na carne cheirosa...
Mário de
Andrade considerou-o "exímio na pintura da pornocinematografia",
alusão talvez aos primórdios do cinema. Do começo ao fim mostrou-se
tão sensível à forma da carne como à forma dos sonetos, embora
circulassem sobre ele boatos sublinhados pelos epitáfios obscenos em
que Emílio de Meneses (no entanto seu amigo, por cuja candidatura à
Academia se bateu), em papeluchos deixados sobre mesas de
confeitarias, insinuava tendências homossexuais. Um deles dizia,
como registra Magalhães Júnior em Olavo Bilac e sua época: "Bilac
esta cova encerra. / Choram sacros e profanos... / Muitos anos coma
a terra, / A quem comeu tantos ânus!"
Os poemas de
Tarde já não provocaram a mesma sensação de Poesias. O mundo era
outro. Aproximava-se o surgimento, no Brasil, do modernismo que
refletia, sem condescendência, a insatisfação e a iconoclastia. Em
nome da "Deusa serena, / Serena Forma", Bilac se ateve à realidade
estética e livresca que, ao aliená-lo, integrava-o paradoxalmente ao
seu tempo. Ser homem do tempo, no fim do segundo império e período
inicial da república, era ser parnasiano.
Bilac, que
nunca escondeu a influência do seiscentista Vieira (em quem se
inspirou para escrever o famoso Ouvir estrelas, cuja primeira
publicação tinha uma epígrafe extraída do Sermão da Sexagésima)
deixou uma semente que frutificou depois da Semana de Arte Moderna.
Manuel Bandeira, em Balada das três mulheres de Araxá, cita dois
versos de Bilac ("Que outros, não eu, a pedra cortem / Para brutais
vos adorardes). Mário Quintana faz ligeira alusão a Bilac no sexto
quarteto de Do cuidado da forma: "Teu verso, barro vil, / No teu
casto retiro, amolga, enrija, pule.../ Vê depois como brilha, entre
os mais, o imbecil, / Arredondado e liso como um bule!"
Para Bilac,
como para O caçador de esmeraldas, o crepúsculo caiu "como uma
extrema-unção". Voltando a Eliot: o dever do poeta é só
indiretamente voltado para o povo. Seu dever direto é para a língua.
Ele morreu com o parnasianismo e a belle époque. Ou foram o
parnasianismo e a belle époque que morreram com ele, no Brasil?
Leia a obra de Olavo Bilac
|