João Carlos Biella (*)
Um amor pouco a pouco diferente:
sobre cidade íntima, de R. Leontino Filho
Antes de ter acesso
à poesia de R. Leontino Filho, conheci-a, em doses menores, na fala
fluente e bem humorada do professor Leontino e depois num artigo
dele intitulado “O catavento solto do verbo”. Do artigo anotei as
palavras finais: “E, eu, ao contrário das ondas, escolho a que me
faz mais gente, a linguagem que liberta, a que vem no giro no
catavento: a brisa poética do viver”. Elas me serviram como um
reforço de convite para conhecer os poemas do livro Cidade Íntima,
do referido autor.
Numa leitura
superficial, observei uma tensão criada a partir do contraste da
leveza com o pesado, com a dureza e com as forças corrosivas do
tempo e da morte. Alguns versos são exemplos marcantes desse
contraste: “aços são vôos de flores”; “a musa serena, louca e
desvairada”; “crisálida-ira”; “amor, amarra-me em teus braços”; “o
sempre é tão pertinho”; “a borboleta abatida/flutua”.
O próximo passo foi
me deter um pouco mais em cada um dos poemas para ter certeza (ou
não) de minha impressão inicial. A impressão transformou-se numa
hipótese para a compreensão global dos poemas de Cidade Íntima: a
leveza como uma possibilidade de renovação do imaginário poético.
Neste sentido, as palavras do articulista Leontino servem como
síntese da poesia de R. Leontino Filho: a “brisa poética do viver”.
Para atingir a
leveza, o poeta permanece em estado de vigília (que para ele é
amarela), no duro embate com as palavras (verde, segundo ele mesmo)
e no saudável esforço de permanente renovação da linguagem poética.
A partir dessa constatação, os versos transcritos acima – “aços são
vôos de flores”- adquirem uma dimensão maior no tocante a
possibilidades significativas.
Concentração e esforço na fatura poética garantem a criação de uma
linguagem leve e fluente. Mas não é só isso. Parece-me que há outro
elemento unificador da obra em questão. Trata-se da temática
amorosa; mais evidente em “Somos o poema” e mais esparsa nos demais
textos. Nada idealizada, muito menos restrita às facilidades de um
realismo eroticamente vulgar. Lembro-me agora, bobamente, do verso
de Mário Quintana: “todos os poemas são de amor”.
É sobretudo a aposta
na plenitude amorosa que garante a “brisa poética” de R. Leontino
Filho. É ela que faz possível, no trânsito permanente e constante do
real ao imaginário, o aço ser vôo de flor. Talvez seja essa mesma
flor a favorita de John Ashbery, cujo ensinamento é o de que devemos
escrever sobre as mesmas coisas de sempre para o amor continuar e
ser pouco a pouco diferente. Pode ser também a imensa rosa vermelha
d’O túmulo dos lutadores, de Magritte, cuja expressividade sensual
mal cabe no aposento, mal cabe na moldura do quadro, mal cabe no
ventre do texto de R. Leontino Filho (precisamente no poema
“Represa”), autor este que parece conhecer muito bem as “avencas
cotidianas do querer” e a possibilidade de vivermos um “grisalho
amor nascente”. A leveza do tratamento da temática amorosa em Cidade
Íntima me faz pensar na figura do jardineiro, para quem é possível a
transformação de aços em vôos de flores e a existência de avencas
cotidianas do querer. Para não me estender ainda mais em
considerações tão livres (talvez leves), termino com um trecho do
romance Extinção, de Thomas Bernhard,
(...) Adorava a
gente simples, seu modo simples de ser. Tal como as suas plantas,
também a mim eles tratavam, quando os visitava, com amor. Tinham
compreensão pelas minhas angústias e aflições, justo a compreensão
que os caçadores jamais tiveram comigo, para mim eles só tinham
frases tirânicas na ponta da língua, a mim, criança bem pequena,
acreditavam ter de contar só suas piadas picantes, poder me animar
agitando as garrafas de aguardente sobre suas cabeças, quando esse
jeito repugnante de ser apresentar só me deixavam mais inseguro e
mais triste do que já era, ao contrário dos jardineiros, que, sem
muitas palavras, me entendiam e toda vez eram capazes de me ajudar.
Araraquara, Inverno de 2000
(*) João Carlos
Biella – Poeta e doutorando em Estudos Literários/UNESP-CAR.
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