Ligia Cademartori
Tradição e ruptura na poesia
contemporânea
Um poeta forte, disse Vico, é aquele
capaz de adivinhar-se e ousar o impossível: dar origem a si mesmo.
Em Eterno passageiro, recentemente lançado, Ronaldo Costa
Fernandes, escritor de carreira sólida, dialoga com a tradição, mas
consegue afastar-se dela para falar em língua própria. Expõe-se,
portanto, à experiência de viver a continuidade e a ruptura.
Poesia marcada pela cisão, traço
distintivo da arte contemporânea, encontrará receptividade maior
entre aqueles que se reconhecem no exercício de simbolizar pelo
verbo criativo os sentimentos de desconcerto e restrição. O título
do livro instala a ambigüidade e abriga contradição aparente. Pois,
na verdade, eterno e passageiro não estão em posições opostas.
Antes, mantêm-se em reversão constante na contramão da lógica. Já na
capa, o prenúncio que é do tempo e do incontornável exílio que se
trata, e não importa aí a geografia. A noção do tempo instila a
morte pressentida e imaginada. E é também imaginária a relação com o
espaço, do qual o sujeito poético parece habitar apenas o reflexo
fantasmagórico.
Na relação entre tal sujeito e seus
objetos não há embate, mas tampouco ocorre conciliação. Transfigura
objetos e situações ordinárias – o telefone, a geladeira, o
barbear-se – investe-os de características insuspeitadas, estabelece
relações inéditas e é assim que são deflagradas significações
emergentes no poema, e só nele.
As coisas nomeadas em sua concretude
não excluem a subjetividade de quem olha nem ocultam ou descartam
emoções. Mas entre o homem e seus circundantes concretos não há
interação harmônica, porque sequer é evocação direta o que faz. Os
objetos são desconstruídos e refeitos sem alusões ou aura. De fato,
ao nomeá-los, o poeta os desembaraça de suas funcionalidades para
fazê-los apenas matéria de poesia. Não remetem, necessariamente, à
prática humana.
O livro propõe ao leitor que participe
desses sentidos novos nascidos de infrações calculadas,
transgressões feitas norma e categorias impertinentes. O poeta sabe
a seu modo, como Nietzsche, que na vida a discordância é regra e o
acorde a exceção. Por isso, diz de si, dizendo de outro, preferir
“em vez do trinado a rima rouca”.
A insuficiência do comentário crítico
se faz maior quando é de poesia que trata, pois o “poeta só se
traduz em sua língua” e essa não é traduzível em outra fala. A
poesia é a linguagem em situação extrema, experiência com a potência
e a fragilidade dos sentidos atribuídos, e com a fronteira que
separa a palavra do silêncio. Talvez por isso possa facear com
privilégio a angústia, a falta, o instável e a dispersão. E quando,
ao fazê-lo, encanta e expande a vivência tida, teve sucesso o poeta
e celebrou-se a poesia.
O NÃO-LUGAR
Lugar tão exaurido
que dele não emana nem a morte,
já que a morte,
existência pela negação,
não pode negar o que não existe.
A cada volta um parafuso a menos,
as palavras sem roscas.
Não é apenas o tempo que me devora.
Há outras bocas:
o amor que tem vários lábios,
o rio da infância que, seco, ainda saliva.
O MOINHO E A BICICLETA
Os olhos pisados
miram as pegadas
daquilo que não se pode ver.
E o moinho pervertido,
em vez de grão, mói sombras.
Gira a bicicleta absurda:
rodas de adeus redundante,
guidão de vontades escuras.
Este vestíbulo não antecede a nada
e não me ante-sala para ninguém.
ANIMAL BARBADO
Este animal que se rasura
como quem raspa a orelha do porco
para a feijoada de fim de semana,
este animal feroz e matutino,
como um auto-retrato,
com seus olhos 3 x 4,
observa a paisagem da janela
e do outro lado do vidro
está ele mesmo,
é ele a paisagem que envelhece
cada vez que a freqüenta.
Este homem ao espelho,
gilete de martírios e angústias violáceas,
barbeia seu minuto e sua morte,
exasperada e afiada servidão,
a consciência espumosa da pequena guilhotina.
CINE ÉDEN
No cine Éden, hollywood da Rua Grande,
a leste de coisa alguma,
o mundo tinha a dimensão de
seis metros estirados de pano.
As janelas abertas deixavam ver o céu
como se fosse a tela e os astros
representassem piscando os olhinhos
de gás das estrelas.
Cleópatra se sentava na cadeira de madeira
depois de servir o jantar aos patrões.
E Marco Antônio,
o filho da puta do Marco Antônio,
tinha as mãos calosas de pedreiro.
Ó tempo das imagens fugidias,
o mundo como um grande rolo,
a lata de lixo da História
estava cheia de papel amassado dos bombons Pippers.
Que viveremos nós depois do
The end da História?
Caderno PENSAR do Correio Braziliense em 20
de novembro de 2004.
Ligia Cademartori é doutora em Teoria da Literatura, ex-professora
da Universidade de Brasília - UnB, autora de diversos livros e
artigos sobre teoria e crítica literária.
Leia Ronaldo Costa Fernandes
|