Leonardo Martinelli
Jornal do Brasil, Caderno Idéias
Sábado, 8 de maio de 1999
Lugar-comum sobre o
feminino disfarçado
por truque estilístico
Em "Noturnos" e "Clarice", Ana Miranda
peca por falta de sal e excesso de açúcar
Literatura brasileira
NOTURNOS
Ana Miranda
Companhia das Letras
140 páginas
R$ 20
CLARICE
Ana Miranda
Companhia das Letras
95 páginas
R$ 19
Ana Miranda
despontou como prosadora há exatos dez anos, a partir do sucesso
editorial de Boca do Inferno, seu primeiro romance. Nele a
vida do poeta baiano Gregório de Matos e o contexto sócio-cultural
do barroco brasileiro tentavam recriar-se por meio de uma linguagem
seca e descritiva, à maneira dos relatos históricos e das narrativas
policiais. Não por acaso, seu "conselheiro de estilo" na confecção
da obra foi ninguém menos do que Rubem Fonseca, de quem a autora
recebeu cuidadosa orientação técnica. Chegou mesmo a realizar quatro
versões diferentes do livro, como uma espécie de dever de casa
prescrito pelo mestre.
O resultado final,
contudo, difere bastante da estética brutalista do autor de Feliz
Ano Novo, dele herdando somente o gosto pelo fraseado ágil e
conciso a la Hemingway, bem como o apego à montagem algo
cinematográfica dos blocos narrativos (outro costume da prosa
fonsequiana). Recursos que manteve em obras posteriores, e que
permanecem vivos, entremeados a novos truques estilísticos, em dois
de seus últimos trabalhos: Clarice (primeira edição em 1996,
reeditado agora) e o recém-lançado volume de contos Noturnos.
Noturnos
compõe-se de 65 mini-contos cuja moldura sintática nunca extrapola o
padrão de um único parágrafo ininterrupto, pontuado apenas por
vírgulas, de extensão sempre limitada ao espaço de duas páginas. É
como se a autora quisesse criar um equivalente em prosa para as
formas fixas da poesia clássica, como o soneto e a sextina (embora
não seja o caso de caracterizar tais peças como "poemas em prosa",
gênero de contornos indecisos e muito menos rígidos que os
utilizados por Ana Miranda). O título geral da coletânea parece
reivindicar um parentesco de segundo grau com o formato musical
consagrado por Chopin: composições pianísticas de andamento grave e
sinuoso, marcadas pela concisão e por intenso lirismo melódico. Já
os contos de Ana Miranda vão buscar sua matéria lírica na expressão
melancólica da figura feminina que narra ou é narrada em todas as
estorietas do livro. Dos medos, desejos, delírios e embaraços dessa
persona narrativa, a autora subtrai o segundo princípio da
coesão de Noturnos (além da monotonia formal rigorosamente
concebida pela série).
Tanta ânsia de
unidade poética e univocidade expressiva não impedem o conjunto de
tornar-se o que de fato é, desde o próprio projeto da obra: um
frágil amontoado de lugares-comuns da "alma feminina" ("não quero
revelar meu corpo nem minha alma, eu não saberia dizer as palavras
que penso ou as palavras que ele espera de mim ou eu mesma espero,
visto a blusa vermelha, a blusa marca os meus seios e envolve meu
corpo numa espécie de fulgor, de sugestão sexual", diz em "Blusa
vermelha"), clichês erótico-sentimentais no estilo softcore
("tiro os sapatos de salto fino, as camisolas de seda, no
porta-jóias do banheiro tiro os enfeites e os batons, experimento
tudo, me pinto, me lavo, visto e desvisto, me desnudo, será hoje
mesmo, tomaremos vinho", afirma em "A invenção do amor") e
fastidiosas digressões pseudo-filosóficas, baseadas num metaforismo
inócuo ("Nunca estou no lugar onde aparento estar, como se meu corpo
e minha alma fossem seres dissímiles, sem nenhuma afinidade íntima,
meu corpo é manso e persistente mas minha alma vive fugindo pelas
janelas", lê-se em "Corpo e alma").
Quando o texto se
arrisca a citar e dialogar com obras de outros autores - uma das
notáveis características do que se convencionou rotular de
"pós-moderno", em literatura (o que não é necessariamente uma
afronta nem um elogio, como muitos insistem em pensar) - o efeito
permanece frustrante. Por exemplo, a tentativa de uma "desleitura"
em relação a Raduan Nassar (mais precisamente do conto "Hoje de
madrugada", de Menina a Caminho) faz do mote biográfico/metaficcional
um mero pretexto para outro circunlóquio egoísta: "ele permanece com
a cabeça baixa sobre o livro, ao fundo o homem que me pareceu
familiar, talvez algum escritor, sim é um escritor de quem não me
recordo o nome, me olha penalizado" ("Mulher a Caminho").
Já no ralo onirismo
de "Jantar", a decepção dos convidados poderia funcionar como
alegoria do insosso cardápio servido pela autora: "duas taças fêmeas
bêbadas de vinho do corpo da mulher, eles vão embora achando que não
houve jantar, esqueci de dizer que o jantar era eu". Banquete
antropofágico dos mais indigestos para leitores pouco afeitos à
degustação complacente de migalhas alheias - especialmente
intragáveis pelo falso ar de "intimidade" e "delicadeza" que
pretendem exalar.
Se em Noturnos
falta sal, em Clarice sobra açúcar. Aqui a idéia de misturar
fatos biográficos e dados ficcionais da escritora ucraniana conduz
aos piores equívocos possíveis, deixando de lado qualquer visão mais
problemática sobre as relações sempre perigosas entre vida e obra de
um autor, em favor de analogias simplórias e empobrecedoras. A
ambigüidade que distingue uma novela como A hora da estrela,
figurada através do conflito entre um narrador masculino que
manifesta sua obsessão diante de uma personagem feminina (Macabéa),
criada por ele e, no entanto, "fugindo" ao seu controle - merece de
Ana Miranda o seguinte tratamento: "Clarice ama as nordestinas
pobres. Entende tanto essas mulheres que até tem medo delas. Mas as
acha encantadoras, com suas manchas no rosto, seus cheiros
morrinhentos (...) Ama suas empregadas. Aninha, Jandira, Irene. Elas
lhe mostram um outro mundo, que não é o real e nem o mundo irreal de
Clarice, é o mundo dos pobres, dos subúrbios, dos lotações
entulhados, dos trens".
Confundindo o espaço
referencial da vida da autora com o universo ficcional das
suas criações, Ana Miranda chega ao extremo de expulsar o "mundo dos
pobres" tanto do "real" (qual?) como do "mundo irreal de Clarice".
Cabe ao leitor perguntar: em que mundo vive Ana Miranda? Certamente,
em algum lugar isolado da realidade brasileira - talvez beneficiada
pelas inexplicáveis cifras de vendagem logradas por seus livros.
*Leonardo Martinelli é poeta e mestre em
Literatura Brasileira pela Uerj
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