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Ademir Demarchi

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


 Alguma notícia do autor:

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

 

 

 

 

Ademir Demarchi

Bio-bibliografia


Ademir Demarchi nasceu em Maringá-PR, em 1960, e reside em Santos-SP. Editor da revista de poesia BABEL (das 15 edições publicadas, seis foram viabilizadas pelo prêmio do MinC, primeiro lugar entre170 projetos) e do selo Sereia Ca(n)tadora (30 livros publicados). Organizou para a Biblioteca do Paraná a antologia 101 poetas do Paraná —Antologia de escritas poéticas do século XIX ao XXI. Publicou também os livros de poemas Os mortos na sala de jantar (Realejo, 2007), Pirão de sereia(Realejo, 2012), O amor é lindo (Patuá, 2016), Louvores gozosos (Olaria Cartonera, 2020), Cemitério da Filosofia (Kotter, 2020); o livro de crônicas Siri na lata (Realejo, 2015); o livro de ensaiossobre literatura Espantalhos (Editora Nave, 2018), o de ensaios sobre poesia, Contrapoéticas (Editora Nave, 2020), entre outros. Pela Editora Urutaupublicou o livro de poemas Gambiarra — Uma pinguela para o futuro do pretérito, em 2018.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Ademir Demarchi


O caldo espesso do verso rebelde

Segundo livro de poemas de Ademir Assunção, inspirado em ópera-rock, mistura cinema, música, artes plásticas e literatura

ADEMIR DEMARCHI
27.10.2001

ZONA BRANCA

Ademir Assunção

Altana, 126 páginas,

R$ 15

Em boa parte da poesia brasileira que se publica contemporaneamente pelos novos escritores, aqueles nascidos da década de 60 em diante, chama a atenção a predileção dos poetas pelo uso de formas clássicas - em muitos isso chega ao exagero da imitação não apenas formal mas expressional de linguagens de outras épocas, a tal ponto que irremediavelmente fica no leitor a dúvida quanto à idade do poeta que se lê, uma vez que os traços do contemporâneo são obscurecidos ou inexistem.

Outro dos sintomas de muita dessa poesia é a preferência por um lirismo em geral ingênuo, ao qual qual se poderia perfeitamente aplicar a palavra alienado, pelo tanto que nele também transparece a ausência de interrogação do próprio tempo, ainda que se diga que essa é a forma possível de representá-lo, ignorando-o e aplicando a ele uma identidade estranha.

Essa ausência de interrogação direta do próprio tempo no texto poético é como que sinônimo de ausência de rebeldia, trocada pelo gosto por um beletrismo que promete a ilusão de ascendência fácil ao panteão da academia. Ilusão aqui é palavra apropriada porque essa poesia, construída à sombra da diminuição da potência destruidora e renovadora do ideário moderno, recende a monotonia e, padecendo de criticidade, daquele impulso corrosivo, não aparenta energia suficiente para superá-lo, renovando o pensamento. Essa prática, no entanto, não chega a ser nada de novo pois, desde que o movimento modernista arrefeceu seus ânimos, apregoa-se sua morte, iniciada lá pela década de 30 com Tristão de Ataíde cantando a volta triunfal do soneto, símbolo dessa retomada classicista e em geral marcadamente conservadora.

Pluralismo - Sua continuidade e o enfraquecimento do impulso modernista nos trazem à cena contemporânea, na qual o conflito praticamente inexiste e todas as formas e ideologias convivem em nome do pluralismo e da diversidade que a regem. Essa poesia, no entanto, não seria de todo desinteressante se aprendesse com seu oposto, assimilando sobretudo a criticidade ou, em suma, a rebeldia que, mais afeita às vanguardas, desanestesia o pensamento e o renova ambicionando desalienar o homem que, hoje, mais do que nunca, é um mero objeto de consumo e de ainda mais desigualdades na sociedade globalizada.

Se, no entanto, não é possível encontrar a insatisfação objetiva com o presente nessa poesia, não nos faltam exemplos de poetas que contra ele investem usando de imaginação e o que de melhor acumulamos de experiência de linguagem e de reflexão neste século que passou. É o caso de Zona branca, segundo livro de poemas de Ademir Assunção, que já começa pelo título contaminando-se do imaginário de um presídio de segurança máxima, inspirado na ópera-rock Joes garage, de Frank Zappa, para onde são enviados os rebeldes, dissidentes e arruaceiros.

Não se trata de um mero Carandiru, mas de uma outra dimensão do espaço-tempo, onde os presidiários são submetidos à incomunicabilidade total, embora possam ver em detalhes tudo o que está acontecendo no chamado mundo real, estruturado por um sistema de poderes disseminados e não identificáveis facilmente. Nele, a cooptação de artistas é moeda corrente para transformá-los em celebridades e burgueses decadentes; a manipulação de fatos e idéias, por sua vez, mantém no ostracismo os criadores brilhantes e promove clones descartáveis para alimentar as hordas miseráveis que se humilham, matam e morrem nos semáforos e becos mal-iluminados.

Urbano - Trata-se, portanto, de um livro eminentemente urbano, de um poeta que se alimenta de filmes, música artes plásticas e literatura e do caldo que sai dos meios de comunicação de massa, cuja epígrafe inicial é de William Burroughs e dá o tom da sua escrita: ''Linguagem é um vírus.''

A poesia de Ademir Assunção, portanto, é um libelo de insatisfação contra o mundo contemporâneo: beira o jorro da fala, é calculada e incisiva em sua expressão e sobretudo petulante contra o status quo. Há um poema, por exemplo, ''Anti-Ode aos publicitários (De um guerrilheiro morto em combate)'', que diz ''eu quero que vocês morram'' - referindo-se aos publicitários que usaram a figura de Che Guevara como propaganda do Limpol em comercial televisivo e anúncios de revistas em 1998.

Não se trata, no entanto, de uma raiva xiita a se manifestar, pois nela percorre um senso de humor refinado, que funciona como antídoto a esse que poderia ser mais um clichê e, assim, a morte desejada aos vampiros publicitários pode ser ultimada com ''uma estaca / cravada no prepúcio''.

Inferninhos - A contestação à sociedade de consumo (''o meu cartão de crédito é uma navalha'' - epígrafe de Cazuza) se derrama para o meio da poesia, esse meio cândido, em ''Descida aos inferninhos'' que ironiza: ''eureka - grita o poeta / achei meu estilo, traço rude de fino tino, / quer dizer, daqui detrás dos montes / vai ser ferro na perereca / cuspe seco, pedra cabralina''; define uma postura: ''cansado da palavra polida / hímen rompido da beleza clássica / o poeta talha o verso com pedra lascada / primata astuto, ladrão convicto / despedaça pétalas, arrebenta rimas / imola virgens, deflora rosas / segue viagem com um guia cego / desce aos infernos, aos inferninhos'', onde encontra o que abomina: as musas e os poetas ''sugando esperma em troca de dinheiro / vulgares em suas rimas ricas / musas de luxo na corte das artes / carne à la carte, poesia em postas / máscara bem moldada ao talhe da face / técnicas, sem dúvida / mas sem as dádivas e com eternas dívidas''.

Zona branca, assim, é um livro percorrido pela insatisfação, impregnado de literariedade sem ser beletrista e nele não há lugar para o clássico, a não ser pela via referencial de signos como sereias e seus silvos, navios e obeliscos que podem habitar os poemas como retalhos e imagens, como se estivessem num sonho de alguém que vive plenamente sua época, ironizando-a em suas banalidades, inclusive literárias, tal como se comprova no poema de sugestivo título, ''Terapia de vidas futuras''. O clássico, então, comprova-se que pode ser assimilado como signo sem ser repetido como linguagem extemporânea.

Quanto ao lirismo em tal ambiência, ele também se manifesta, principalmente numa das partes do livro, ''um deus está a caminho'', mas em consonância com a época, sem ingenuidade e contaminado pela crueza deste mundo. O poema ''5 dias para morrer'', dedicado a Hector Babenco, expõe o olhar sensível de quem ainda encontra lirismo no mundo, em seus detalhes, na natureza, nos objetos que o cercam, mas definitivamente a inocência está perdida e se existe, manifesta-se como fratura: ''morreremos loucos, Ana// os sapatos / novos / em cima da mala/ - mala notte / o dia, a pior / foto: olhos úmidos / no vídeo / flashbacks: / a virilha imunda / do marinheiro / os eletrodos frios / nas têmporas / as pílulas coloridas / peixes / num aquário / cujo vidro / quase se quebra / toda vez / que o tocamos // sim, Ana / morreremos loucos / mas / esta noite / dormiremos / juntos.''

Esse lirismo e sua prática são definidos pelo poeta por uma epígrafe de Assim falou Zaratustra, de Nietzsche e se encaixa perfeitamente ao livro e a essa poética que tem se construído desde o livro anterior, LSD nô (poemas, Iluminuras, 1994) e A máquina peluda (prosa, Ateliê Editorial, 1997): ''De tudo o que se escreve, aprecio somente o que é escrito com o próprio sangue''.

Ademir Demarchi é doutor em Literatura Brasileira, poeta e editor de Babel: Revista de poesia, tradução e crítica (revistababel@uol.com.br)

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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