Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Luiz Roberto Guedes


 

Pessoas inexistentes

 

Ninguém olha duas vezes para um mendigo. A não ser um repórter fotográfico em busca de um personagem. Ou um escritor deparando-se com uma história. O morador de rua habitava um enorme terreno murado, sombreado por velhas árvores. Preciosa reserva de solo com uma placa de “VENDE-SE”, tratar com a Intercity Imóveis. O escritor passava por ali a caminho do trabalho. Via a cabeça do homem surgir de um buraco no muro: uma juba frondosa de soba africano, barbado, desgrenhado, fuliginoso. Ou então já sentado na calçada, escrevendo em folhas soltas, que devia pegar no lixo empresarial da avenida.

Sua mesa improvisada era um caixote de madeira (Manzanas de Rio Negro), virado de borco. A mão escura movia-se rápida, enchendo o papel de garranchos.

O que tanto escrevia? A curiosidade do escritor não chegava ao ponto de puxar conversa com o homem, acocorar-se junto dele. A fixidez do olhar denunciava um tipo insano, insociável.

Uma tarde, o sujeito não estava lá. Havia manchas de sangue na calçada. Caído no meio-fio, um único sapato preto, deformado, descorado. E um punhado de folhas manuscritas, espalhadas em volta. O escritor recolheu-as com avidez, os olhos pinçando palavras no aranhol de letras, buceta, caralho, bunda, peitos, foda, chupada. Guardou o papelório sujo na pasta de couro, seguiu para a estação do metrô. Passando pelo bar da esquina, ouviu um pedaço de conversa, a caminhonete subiu na calçada, pegou o coitado, jogou ele longe, o pastor evangélico botou ele na Kombi, levou pro hospital.

Já no metrô, examinou seu achado. Doze páginas depois, estava fascinado com aquele diário caótico, quase tão interessante quanto os delírios de Nijinski.

Nenhuma reflexão metafísica: só o olho lúbrico lambendo as formas, cobiçando corpos, garotas de colégio, jovens mães, empregadas domésticas, palavras uivando uma fome feroz. E aquela estranha menção a uma “bichona com peitos de mulher, bunda grande e buceta do tamanho de um mamão”? Talvez uma fantasia alternativa. Prováveis apontamentos biográficos: “tive que largar a escola não consegui tirar diploma mas sei dirijir trator aprendi sem problema”. “agora você finji que não mi conhece mas não pode negar que já ficou comigo numa boa eu chupei sua buceta e você gosou muito sua vagabunda.”

Péssimo português, mas que força. Uma novela seca, bruta, antiliterária. Torrente de palavras alucinadas, mergulho na mente turva de um miserável animalizado, ganindo sua humanidade dolorida entre roncos de motores.

O escritor via sentido na desordem. Devia haver mais material entre os pertences do homem. Às vezes, ele assentava-se por trás de uma barricada de grandes sacos de plástico negro estufados por seus haveres, e, talvez, algumas centenas de páginas. Não resistiu à idéia de vistoriar o terreno baldio.

O espólio do escriba estaria lá, entesourado no oco de alguma árvore.

Deixou o carro numa rua transversal e esperou o trânsito rarear. No começo da madrugada, meteu-se de gatinhas no buraco do muro, a um tempo excitado e vexado com seu próprio disparate. Varreu o terreno com o facho da lanterna, divisou volumes escuros contra um tronco de árvore. Aproximou-se, o foco de luz revelou a matula do mendigo. Prendendo a respiração, revirou a sacaria, despejou o conteúdo. Roupas, trapos, um cobertor roído, retalhos de carpete, potes de plástico, uma garrafa com rolha, decerto cachaça, uma embalagem de álcool Zulu, revistas velhas, uma resma de papel. Agachou-se e enfurnou rapidamente as folhas na sacola que trouxera.

Conferia mais uma vez a mixórdia quando uma voz rouquejou:

“Isso aí é meu, larga tudo aí.”

Alvejou o vulto com o facho. O morador estava de volta, vivo, quase inteiro: apoiado em muletas, a perna esquerda engessada até a coxa, a cabeça envolta em bandagens. Tinham tosado sua cabeleira no pronto-socorro, poupado só a barba de profeta. O homem apontou uma muleta para o peito do saqueador:

“Isso aí é tudo meu. Deixa aí.”

“Eu compro de você”, o escritor recobrou a voz.

“Não, você não tem o direito de mexer no que é meu, larga tudo aí.”

“Olha, eu tenho dinheiro”, enfiou a mão no bolso do casaco, e viu o mendigo lançar subitamente a muleta para o alto, pegá-la pela ponta com ambas as mãos e desferir o golpe que encontrou sua cabeça.

Caído de quatro, sentindo o sangue escorrer sobre a pálpebra esquerda, ergueu os braços e aparou mais dois golpes, antes de arremeter cegamente contra a virilha do agressor, derrubá-lo, montar sobre seu peito e apertar-lhe a garganta com fúria e desespero, até certificar-se de que não havia mais perigo.

Ergueu-se, ficou esfregando as mãos nas calças, procurando refrear seus nervos. Cachorros latiram na vizinhança. Uma sirene de polícia uivou lá longe na avenida. Atento ao silêncio, controlou a ânsia de fugir. Molhou um trapo em álcool e pressionou o supercílio aberto. Cerrando os dentes, recolheu a lanterna, focou o rosto de sua vítima. Olhos arregalados, a boca negra escancarando o grito, baba viscosa brilhando na barba. Iluminou o chão em redor, notou suas próprias pegadas impressas no solo úmido.

Agarrou um saco de estopa, esfregou-o vigorosamente em torno, apagando as marcas de seus sapatos. Esvaziou a embalagem de álcool, arremessou-a para os fundos do terreno. Um romancista não pode deixar nada ao acaso. Esgueirou-se pelo buraco, caminhou rápido para a esquina onde estacionara o carro.

Jogou o trapo numa boca-de-lobo, atirou a sacola no banco traseiro, apanhou no porta-luvas alguns lenços de papel para pensar o ferimento. Deu partida e subiu novamente a rua. Ao passar pelo terreno murado, considerou que seria melhor avisar a polícia, com um telefonema anônimo, que havia um cadáver no local.

Os peritos constatariam o estrangulamento, mas certamente tomariam o homicídio por uma rixa entre párias. Dificilmente qualquer jornal noticiaria a morte de um ninguém, desumanizado já em vida, roubado até de sua morte, sua memória. Só escritores é que se ocupam de pessoas que não existem.
 

 

 

 

 

08.07.2005