Lau Siqueira
Fortuna crítica: Antônio Mariano
Lima
Um rebanho de
sorrisos
O Guardador de Sorrisos. Falar deste livro é incorrer de imediato na
dupla intertextualidade mantida com a obra de Fernando Pessoa. A
primeira com O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, o
heterônimo do bardo português. A segunda com o poema Autopsicografia,
sobremodo a primeira estrofe, que se refere ao poeta e sua condição
de fingidor. Neste sentido, o primeiro livro de poemas solo do
gaúcho de Jaguarão, parece corroborar, desmistificando aquela visão
do ser sorumbático que muita gente tem do poeta. Para Lau Siqueira,
como também para Pessoa, temos somente um sujeito que faz de conta
que é infeliz e este engenho consiste em nos vender esta imagem,
nessa eficácia em fingir tão completamente.
A ensaísta Nelly Novaes Coelho aponta o sentido para a primeira
estrofe deste famoso poema. Para ela, "Pessoa apreende aí, com
nitidez, a dialética entre eu pessoal X eu poético que se impôs ao
poeta moderno, obrigado a distanciar-se do seu eu comum, preso na
teia social e rotineira do mundo cotidiano, para poder ouvir com
clareza o seu "outro" eu, o eu criador, sensível e intuitivo que
serviria de mediador entre o Conhecido e o Desconhecido".
Semelhante tônica parece ter se inclinado Lau Siqueira a seguir
nesta coletânea de 55 poemas, volume 5 da Coleção Registro da Trema
Edições, publicada em 1998. São versos marcados pela fina ironia
frente às verdades estabelecidas, versos participantes, como toda a
poesia onde ele bebeu, bem como Paulo Leminski, Ulisses Tavares,
Nicolas Behr, Leila Míccolis e todos os poetas marginais dos anos
70, sem no entanto abdicar do trato da palavra em benefício do
discurso. "Eu sustento/ a minha loucura/em meia dúzia/de olhos
atônitos// um trem de energias/ expostas no riso". É assim que se
apresenta no poema título.
Aqui, o poeta descreve a sua fórmula para manter, dar de comer à sua
extravagância, à sua fuga da "normalidade": provocar a perplexidade
nos circunstantes e depois, ou simultaneamente, o riso. Dele ou dos
outros. Ou de todos. O ato de rir, aliás, é mecanismo de dupla
finalidade: para os circunstantes, de defesa; para o agente, de
traquinagem. Ou vice-versa. Ou, numa e noutra situação, as duas
coisas, confundidas. O que nos intriga é o fato deste poema se
chamar exatamente "O guardador de sorrisos". Por que afinal guardar,
se os risos estão tão patentemente expostos? Então me lembrei de
Guardar, de Antônio Cícero
A idéia do fingidor (trazida de Pessoa) também está presente mas
como que nega (ou confirma?) o discurso de Lau Siqueira onde o poeta
não é triste, apenas guarda sorrisos.
O riso é tema reincidente em Lau Siqueira em peças como "Síntese"
(p.11), "O guardador" (p.18) já referido, "Não" (p.40) e "Ad" (p.
64), seguido do oferecimento "para quem guardou meus sorrisos. Afora
a dedicatória, aliás, o corpo do poema não refere-se textualmente ao
riso mas ao que porventura poderia provocá-lo: "diante de você/sou
um lobo ridículo/rebentando seus cios/revolvendo seus mitos".
A propósito, já em "O comício das veias", dividido com Joana
Belarmino, em 1993, o primeiro poema com que abriu a coletânea foi
"A dor do palhaço, que diz: "morre no riso/a lágrima desesperada".
O verbete sorriso por si só já rendeu, rende e renderia ensaios à
parte com diferentes abordagens, mas é tarefa que fico devendo e que
certamente não pagarei.
Outra curiosidade nesta coletânea é a estrutura, a forma como o
livro foi montado. A surpresa espoca quando nos trai a expectativa
de encontrar referências ao riso e encontramos muitas exposições do
trágico. Coincidência ou não, o livro abre com o poema Síntese, na
página 11 e termina com o poema de tratamento gráfico-visual
(desculpem-me o eco) "Ponto final", na página 68. Em síntese, diz
ele: "que a morte/me encontre/embriagado/e que não ria/ao me ver/do
outro lado". Um e outro tem na morte, na destruição, na consumação
de tudo, a sua temática.
Já o outro poema, que não utiliza a palavra como meio de
comunicação, é somente (somente?) é grande círculo negro tomando
toda a página. O buraco pode ser a hecatombe, o fim de tudo. Pode
ser também apenas uma referência à Cosmologia .
Salvo em poesia ou nos cálculos físico-matemáticos que cristão
poderá comprovar isto? Há ainda quem faça uma associação erótica com
este ponto final, como o poeta José Caetano. Mas Eros não escapa a
Tânatos. E pode ser simplesmente também apenas o fim da coletânea.
A temática tem continuação em "Estampido" (p. 25), "Tocaia" (p. 27),
"Ali Khatchab não vai dormir em paz apesar da lua cheia" (p. 32),
"Notícias populares" (p. 56), "Conluio" (p. 60) e "A um certo
aprendiz de feiticeiro" (p. 61).
Em alguns, como em "Conluio", há uma certa revolta, não porém isento
de comicidade: "a morte/é um passo/absurdo/junta os pés/de todo
mundo".
Mas há também a visão lúdica, encantatória de morte como em "Ali
Khatchab não vai dormir em paz apesar da lua cheia": (por que/seu
coração/fez zupt/e fechou/as portas). Ou em "A um certo aprendiz de
feiticeiro": "Agora/Mário caminha/sobre as nuvens// anjo travesso/ri
da cara aflita/dos coveiros// e de nós/caminhantes desatentos/da
'rua dos cataventos'".
Passando em revistas as 65 peças veremos que a temática é vária. Há
os experimentos concretistas: "Poema de amor"(63), "Consciência do
sólido" (p.65) e "Ponto final" (p.68), já referido. Aqui como em
outras exercícios o poeta se mantém sintonizado com vozes da
contemporaneidade como Frederico Barbosa, Moacy Cirne, Dailor
Varela, Affonso Ávila, sem esquecer, é claro os pais do movimento.
Ainda o experimentalismo, o poema "Vertigem"(p. 38), é disposto
graficamente como um balão, como de fato o texto sugere que se
esteja viajando num deles.
A parte erótica é talvez a menos privilegiada, com apenas três
poemas: "Olho/dividido" (p. 13), "O chupador de bucetas" (p.36), que
tirando o título até que é bem comportado na seleção vocabular, e "Hardcore"
(p. 45).
Há ainda versos puramente lúdicos e contemplativos como "Poemas
noturnos" (p. 16), onde ele nos diz que "as folhas do coqueiro não
dormem: balançam o sono do quintal" . Singeleza e despretensão dando
um grau de fascínio e beleza ao pequeno poema. Ao memorialismo são
dedicados dois poemas: "1965" (p.21) e "Rio Jaguarão" (p.41). Ao
político-social, cinco poemas são representativos: o belíssimo
"Croácia" (p. 20), o não menos belo "Aos predadores da utopia" (p.
22), "Pornografia brasileira" (p. 42) e "Notícias populares" (p.56).
Para fechar estes comentários, cá estão os poemas metalingüísticos:
"Por que escrevo poemas curtos" (p.29), "O poeta caminha sobre as
palavras sem espetar os pés" (p. 31), título que já vale por um
poema, "Domésticália" (p.44), à guisa de receita de como se deve
fazer um poema recluso e finalmente o excelente e inequívoco "Ploft"
(p. 51): "escrever poesia/algumas vezes/ é como jogar/ pedra em
açude// as ondas se formam/e a gente conclui/que aquilo não é/
poesia// é física". Este poema retrata o dilema do poeta na dúvida a
respeito que seja ou não poesia dentre o material que manipula. Uma
lição de lucidez sobre o processo criativo poético
Muito ainda poderia ser dito nesta saudação ao poeta que escolheu a
Paraíba como morada afetiva e poética e nos diversos espaços
alternativos que ocupa Brasil afora é uma referência à nossa terra.
A revista literária Blau, do Rio Grande do Sul, uma das mais bem
acabadas graficamente e mais exigentes na veiculação do material
publicado, numa edição recente imprimiu um poema de Lau Siqueira e,
que ironia!, creditou ao poeta a naturalidade paraibana. E assim tem
sido com outros suplementos.
O que constato nessa leitura, aliás prazerosa, é existência de um
escritor zeloso de seu ofício, que trabalha e que estuda.
Insatisfeito em suma com a sua produção. Fui testemunha das vezes em
que ele quis desistir desta publicação, de seus conflitos em
publicar ou não esta coletânea.
Renegue o poeta ou não o cerebralismo, o rigor excessivo defendido
por alguns criadores, o que se encontra nos seus poemas na sua
maioria é a conjugação do ritmo certo, a musicalidade, a consonância
entre idéia e imagem. Que não são mirabolantes, diga-se de passagem,
mas se pautam na simplicidade, na oralidade espontânea. É aquilo que
observou certo dia o escritor anglo-americano Wystan Hugh Auden: o
tema que procura a forma correta e esta que por seu turno procura o
tema exato. Não diremos que Lau nunca erre mas certamente sua lírica
(ou antilírica, se quiserem) tem mais acertos que falhas. A fina
ironia apontada no início, o humor politicamente correto, a
generosidade, o humanismo latente, o desapego a valores que nada lhe
dizem, o eternecimento com coisas mínimas e desprotegidas, o ser
apaixonado e o compromisso com a palavra fazem de Lau Siqueira outro
guardador de rebanhos, onde seguramente o de sorrisos será o último
a desgarrar-se.
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