Lau Siqueira
Fortuna crítica:
Amador Ribeiro Neto
Sem Meias Palavras
Desde que li o primeiro poema do Lau Siqueira (e foi via internet),
sua poesia concisa e substantiva, muito pouco adjetivada, me chamou
a atenção. Havia ali uma provocação com o leitor. O sublime do
lírico, a irreverência do satírico, o despojamento do coloquial, a
reflexão haikaísta, o experimento concreto, o engajamento
maiakovskiano. Estava tudo lá. E ainda uma esbanjada, muito bem
trabalhada, com a displicência irresponsável e apressada da Poesia
Marginal.
Na matéria de base desta poesia, que se caracteriza pela integridade
da expressão poética, o tema sempre ficando fora de foco. A
distorção do dito pelo sugerido. Nada a ver com simbolismos
evanescentes. A matéria concreta da palavra e do referente
consubstanciam esta poesia que é pedra e é pó.
Era isto, então: em meio a porrada poética de um rigor poético pouco
usual entre os novos poetas, a provocação do inconcluso. Algo de
sólido desmanchando no ar. Ou desmanchando na página de um grande
jornal, em ondas - mas próxima aos pés - como na capa do livro.
De novo o jogo matéria concreta e matéria rarefeita. Os pés, que
sustentam-se ao chão, estão ao ar, apontando para o alto, para o
título do livro, que Joana Belarmino leu bem, não como Sem Meias
Palavras, mas como Semeias Palavras. Isto mesmo: o leitor é chamado
a ser parceiro do poeta. Já que os 50 poemas deste livro pedem sua
participação cúmplice.
O leitor é quem semeia palavras. Tu semeias, sugere o título. Na
verdade, o dado lúdico de Lau já se lança na busca de novas
decodificações.
Mas podem me contestar: decodificação? Mas os poemas do Lau são tão
simples: decodificar o quê? E de fato o são, sim. Mas a simplicidade
não é sinônimo de facilidade. Fosse assim, e teríamos milhares de
Manuéis Bandeira. Temos um só.
Lau consegue tomar a simplicidade de Bandeira e associá-la a
requintes de uma linguagem poética que não se entrega de imediato.
Acho que entrega-se parcimoniosa e incompletamente variadas vezes.
Como toda boa poesia.
E o que me provocava nos poemas de Lau, o que me atiçava na busca de
novos significados, pude perceber depois, é o deslocamento contínuo
que ele promove do referente, numa entonação melódica que mais
preenche o leitor de significantes do que de significados
propriamente ditos. Resultado: fazendo uma leitura radial destes
significantes o leitor começa a vislumbrar alguns contornos de uma
rede de possíveis significações, todas devidamente escamoteadas pela
musicalidade de sua poesia.
Música é forma. A música nos informa pela forma. Ninguém jamais
perdeu tutano reclamando que isto seja alienação (exceção a Adorno,
mais um ou outro gato pingado, etc. e tal - coisa que não vem ao
caso agora). No geral transamos música e ponto. Pois a música de Lau
nasce da palavra num rol de metáforas, símiles, antíteses,
contrastes, paronomásias e até parábolas. Mas tudo arranjado num
jogo de paralelismos muito bem arquitetado, realçando proximidades e
destacando dessemelhanças.
Há uma coisa mas falta outra. Falta algo mais. O que é que acontece
nestes poemas de Lau? É que Lau não chama o referente pelo seu nome,
nem por codinomes chapados em imagens chiclezadas. Lau chama o
sentimento (sua poesia é quase sempre expressão de um sentimento
diante do mundo - e nisto ele é drummondiano) descrevendo-o como se
o sentisse pela primeira vez. Melhor: como se este sentimento
estivesse sendo sentido pela primeira vez pelo leitor. Ao tomar o
sentimento como pessoal, Lau singulariza-o e o torna, assim,
universal no seu mínimo polifônico.
Não se re-conhece o sentimento de que o poeta fala, mas sente-se o
sentimento na sua materialidade singular. Isto quer dizer que o Lau
libera a percepção, a sensação e a reflexão do automatismo prosaico.
E aí a percepção do leitor (percepção lógica e subjetiva) dirige-se
e concentra-se na linguagem poética, chamando atenção para a palavra
no poema. Assim, sua poesia estabelece-se enquanto duração. Ela
dura, permanece, fica. Ganha o leitor, imantando-o com o novo
objeto.
Para chegar a este novo objeto (criado pelo poema), o leitor tem de
vencer a dificuldade criada pelo poema: a coisa a ser apresentada
surge do inesperado, como se o acaso se fizesse senhor do jogo.
Em parte sim, e em grande parte não. Lau me disse que é mais coração
que mente ao fazer os poemas. Acredito nele, mas acho que ele mente.
Lembro, por ecemplo, que os cordelistas negam-se a reconhecer os
processos estruturais e estruturantes de sua poesia, mas reagem
energicamente ao primeiro sinal de quebra destes elementos.
Lau pode não pensar na hora H, mas sua poesia é pessoana até no "o
que em mim sente está pensando".
Ao leitor cabe entrar neste jogo e saber que sempre sentirá a falta
de algo. Sempre há um dentro reclamando de um fora. Um fora que não
se basta e berra por um dentro. Há uma parte que busca o todo e um
todo que não se basta na unidade. Há o vazio querendo o
preenchimento e um preenchido exangue de ser uno. Este movimento
incessante de incompletude e busca é que faz com que a poesia de Lau
assuma o sólido e o pulverizado, numa linguagem que vale-se de
artifícios concisos, densos, rigorosos. E à qual não temo nomear
linguagem neobarroca.
Lau é neobarroco na condensação de significantes que explodem numa
cadeia de dissimulações de sentimentos universais, sempre anunciados
e adiados. Por isto mesmo este livro faz jus ao chamado de semear
palavras. Não idéias. Palavras. A palavra é a matéria de Lau. Objeto
de deleite erótico, minimal e neobarroco.
*Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico de literatura e
música popular – doutor em semiótica pela PUC/SP (amador.ribeiro@uol.com.br)
O livro Sem Meias Palavras pode ser adquirido pela internet:
semmeiaspalavras@bol.com.br.
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