Luís Augusto
Cassas
Fortuna crítica: José Mário da
Silva
Da aura do Deus Mix ao shopping do
homem múltiplo: uma poética caleidoscópica
(Cassas: Reinvenção da poesia e da vida)
Para Adriano Espínola, à Beira-Sol da poesia
Poderíamos dar início a este ensaio afirmando que o Maranhão é uma
ilha cercada de poesia e de poetas por todos os lados. Se é
exercício ocioso enumerar a todos os que competentemente têm feito
da áspera luta com as palavras seu pão estético de cada dia e a
ração diária de uma sobrevivência que se espraia para além da
ritualizada rotinização comportamental cotidiana, poderíamos, assim
mesmo, lembrar a densidade ontológico-metafísico existencial que
imanentiza o luminoso e corrosivo imaginário poético de Nauro
Machado, a fecundidade rítmico-imagística de Arlete Nogueira da
Cruz, sobretudo a que se delineia na sua belíssima Litania da Velha,
o telurismo impregnado de elevado pathos humano de certo viés da
apolineamente celebratória poética de José Chagas, Ferreira Gullar e
suas Muitas Vozes, dentre outros que compõem a cartografia lírica da
iluminada ilha.
Agora, prosseguindo essa rica tradição de luminosos artesãos da
palavra poética em suas múltiplas direções, surge Luís Augusto
Cassas, cuja poética caleidoscópica, estranha e delirantemente
visionária se tem constituído como um dos mais bem realizados
projetos literários de nossa lírica contemporânea.
Considero caleidoscópica a cartografia poética engendrada por Luís
Augusto Cassas porque, recusando-se criativamente a se enquadrar de
forma passiva nesta ou naquela vertente estético-filosófica, sua
poesia, portando exacerbada sede de eternidade e obsessiva ânsia de
infinito, transcende, pelo alto poder transfigurador de que se
reveste, as gramáticas mais rígidas e convencionais das elaborações
epistemológicas mais previsíveis, e, guiada por uma peculiaríssima e
transgressora lógica que rompe os interditos, venham eles de onde
vierem, propõe, universal e transdialeticamente, uma espécie de
síntese cosmogônica de tudo, atravessada por uma visceralmente
dramática compreensão do universo, através de um vertical
incursionamento pelas camadas mais abissais da sua mais
significativa e errante personagem histórica: o homem, com os seus
desafiadores enigmas e encantatórios sortilégios.
Significativa, porque é a partir do horizonte de expectativas
gestado pelo ser humano que tudo, a materialidade objetiva do mundo
circundante e os abismos da interioridade subjetiva, ganha o
desafiador estatuto e emblemático contorno de uma enigmática esfinge
que gera e produz significações (in) decifráveis; errante, porque a
travessia humana, em suas mais variadas peripécias, se tem
nuclearizado pelo indeclinável sentimento de uma permanente busca,
uma incansável procura pela utopia plenificadora; por fim,
histórica, por ser no palco impuro da história que as
intersubjetivas relações humanas se constróem, ora eufórica, ora
disforicamente.
A universalidade do projeto poético gestado pela febricitante
imaginação poética de Luís Augusto Cassas provém do fato de que, se
por um lado, é das motivações produzidas pela territorialidade
geográfica de São Luís que emerge o seu fabulário
multi-estratificado; por outro, o recorte telúrico, reordenado por
níveis crescentes de acendrada fantasia, é apenas ponto de partida,
nunca de chegada, de um transmanente vôo poético em busca constante
pela totalidade das coisas, dos seres, dos fenômenos, da linguagem,
da poesia; enfim, de tudo o que compõe o vasto e heteróclito
repertório da plural e cósmica existencialidade humana.
Já a transdialeticidade, de que o imaginário poético de Luís Augusto
Cassas se nutre, na compacta corporeidade de cada verso inventado,
com a cumplicidade vigilante da tessitura afetiva dos seus ritmos e
imagens, e da sua tonalidade situada nas estésicas fronteiras entre
o lúdido-epifânico e o profético-apocalíptico, sinaliza para uma
espécie de núcleo ideativo de base ostensivamente holística que,
escavando uma espécie de mítica memória ancestral do ser, recusa as
dicotomias empobrecedoras e o binarismo recepcional previsível das
leituras reducionistas e setorizadas da realidade.
Aventura irreprimível da liberdade criadora, a poesia mobilizada e
posta em cena por Luís Augusto Cassas, ancorando-se no porto mágico
de uma espiral infinita de sentidos, é uma movediça arquitetura
semântica que a si mesma se (des) classifica do ponto de vista de um
enquadramento genológico unidimensional, rebelando-se contra os
rótulos e etiquetas por vezes postos por uma crítica sistêmica
incapaz, diria Eduardo Portella, de ouvir a voz do silêncio ou
perceber, mesmo minimamente, os sentidos que ultrapassam as
enganosas estruturas imanentes à superfície textual.
Secreta via de um originalíssimo itinerário mental, como o que
aflora do fremente diálogo entre discípulo e mestre no estuário
semântico do inquietante BHAGAVAD-BRITA-A Canção do Beco, a ascese
por que passa o discípulo em busca da iluminação de sua própria
consciência segue a estranheza dos roteiros incomuns que, ao fim e
ao cabo, podem levar ao bem supremo, exatamente a escorregadia
unidade, mas sem a frieza glacial da tirania racionalista, antes com
a orquestração consorciada e harmônica de todas as dimensões que
essencializam o complexo plural a que na falta de melhor rótulo
chamamos de ser humano, cuja maior dificuldade, diria o sinuoso
narrador de Clarice Lispector nas asas do seu selvagem coração, é
ser humano.
No Sermão do Beco, pregado em três sincronizados tempos, a pedagogia
existencial emanada, em cujo estuário consorciam-se tecelagem
barroca e acendrado panteísmo cósmico, conflui, uma vez mais, para a
única conversão em que acredita o poeta e que se depreende da sua
fusionista cosmovisão, o correlacionamento sujeito X objeto, a
indissolubilidade entre Deus e o homem, entre a materialidade
concreta das raízes da terra e a diafaneidade azul do cromatismo
celestial, entre a treva, contraface do bem, e a luminosidade, por
vezes disfarce do mal.
Nesse sermão, cuja profissão de fé e credo mais acalentado têm na
percepção totalizadora da existência seu paradigma comportamental
predileto e parâmetro axiológico inafastável, a bênção maior é a
reconciliação do homem com a ordem cósmica de que ele emergiu e para
onde voltará, de acordo com a opção mater-espiritualista do
eu-lírico multifacetado que Luís Augusto Cassas construiu e fez
circular na sedutora diegese lírica que inventou com tanto rigor
estilístico e tão arraigado centramento na vitalíssima escola da
experiência, ponto final do seu obsessivo evangelho poético
integratório, no qual "Deus e a matéria são uma coisa só".
Repelindo enfaticamente qualquer ranço dogmático, seja ele de
inspiração física ou metafísica, a poética transmanente de Luís
Augusto Cassas, consoante o belíssimo Agradecimento Final do
Discípulo Depois da Iluminação com Pedrada no Cocuruto, propõe o
desvendamento do ontológico mistério do ser como algo a ser obtido
como resultado não de uma epifania episódica e circunstancial,
tragada pela desoladora finitude de um tempo fragmentário porque
aprisionado ao mero transcorrer inflexível das horas, mas pela
recorrente e obstinada travessia do caminhar de todos os instantes,
"esvaziando-se o cheio e enchendo-se o vazio", até o atingimento
totalizador da sábia lição do beco, tornar o poeta, e a tantos
quantos lhe espreitam o labiríntico roteiro, a imagem e a semelhança
do coração, território confluente dos mais díspares e às vezes
aparentemente inconciliáveis sentimentos.
Sinfonia de uma procura existencial imanentizada por uma, convém
reiterar, irrefreável sede de eternidade e ânsia de infinito,
flagradas ambas pelo poeta em cada espetáculo do cotidiano, mesmo
nos mais aparentemente prosaicos e intranscendentes, a música final
do concerto polifônico do Bhagavad-Brita- A Canção do Beco, com a
sua intencionalíssima exortação conclusiva, quer atingir o cerne do
ser, e, enfim, cumprir a sua alta missão de poesia que, conjugando
admiravelmente a inalterabilidade do verso com a inesgotabilidade da
imagem e a vertical profundidade de um pensamento radicalmente
transgressor porque corajosamente contra-ideológico, como diria o
semiólogo português Salvato Trigo, perfurando o hímen da palavra,
produz o gozo estético da expressão.
Migramos do cais da polimórfica canção do beco e desembarcamos, uma
vez mais, no porto do sagrado em cujo espaço destituído da
indiferenciação homogeneizadora de valores e percepções, de acordo
com as postulações conceituais de Mircea Eliade, emerge, triunfante,
O Retorno da Aura, protagonizado por Luís Augusto Cassas não na
busca modista e ridiculamente burguesa pelas paisagens exteriores e
macrocósmicas, precário roteiro que às vezes nem consegue disfarçar,
como diria Caetano Veloso, a condição de avesso, de avesso, de
avesso do velho consumismo estéril em cujas águas turvas a cidadania
e o cultivo da subjetividade são tragadas pelas demoníacas
engrenagens da ilusão.
A aura, recuperada por Luís Augusto Cassas na encantatória magia
verbal do seu febril e incontrolável imaginário poético, não está
situada em Jerusalém, Meca, ou qualquer outra mítico-mística
geografia planetária, mas na difícil odisséia de volta para dentro
de si mesmo, no exigente pacto ético de polimento do próprio
coração, para que ele enfim, translúcido como um espelho, se
converta num palco sereno em que a vida possa desabrochar com a
força soberana de sua celebratória plenitude.
Promovendo a interpenetração dos contrários e, mais que isso,
desconstruindo falsos dualismos, a poética de Luís Augusto Cassas,
"aos pés do cosmos", faz contracenar, na mesma tessitura sígnica, o
sagrado e o profano, face e contraface de um mesmo espetáculo
humano, ancestral e jovem, sórdido e sublime, vulgar e solene, em
cujo âmago nada há de novo sobre o solo, senão o ingente percurso da
busca e a alucinante procura da aura, entre outras coisas, "ora
escurecida na perda do amor pelo prazer, ora vilipendiada pelo
elogio do ressentimento em lugar do perdão, ora obscurecida pela
cobiça em vez do desapego e fragmentada pelas ideologias de falsos
profetas e poetas".
Na poética de Luís Augusto Cassas, penalizado qualquer ludismo
gratuito e inconseqüente, repelido qualquer retoricismo vazio e
esteticamente inconsistente porque desprovido da verdade humana
essencial, atributo inafastável de qualquer obra de arte que se
preza, há uma alta e assumida consciência de missão ética, para além
de qualquer filigrana de ordem estilística ou propriamente
genológica.
É que, radicalizando as relações entre a vida e a arte, como fizeram
os arautos da desreprimida poética romântica com a excentricidade
contracultural dos seus profetas, loucos e dândis, Luís Augusto
Cassas, trazendo no peito o fogo prometeico que Prometeu roubou dos
deuses e doou aos homens, num visceral gesto de comprometimento com
a liberdade, compreende a poesia como a mais revolucionária de todas
as artes, daí, "entre um corpo e outro corpo, entre um espírito e
outro espírito, o poeta, que cultiva a humildade, "não com devoção,
mas com drummondiano constrangimento, e que nasceu em São Luís do
Maranhão onde o vento faz a curva e a ilha é parada final de urubus
e aviões", bradar, com a força inexpugnável das suas convicções
ético-estético-existenciais, as jupiterianas verdades do seu credo e
apostolado transdialético e transpoético; no limite, mais que divino
porque humano, demasiadamente humano.
Do Retorno da Aura e das suas fecundas transmutações e alquimias
densamente transfiguradoras, rumamos, com os olhos embriagados de
imagens e a alma encharcada de poesia por todos, para o mais que
envolvente território da paixão e sua indisciplinada liturgia, em
cujo epicentro, o amor, a Deus, a vida, a si mesmo, à mulher amada;
enfim, a tudo o que integra o vasto enredo da existência, paira
soberano como a mola propulsora da vida em suas plurifacetadas
dimensões.
Precedida paratextualmente de um luminoso prefácio, a liturgia
passional a que Luís Augusto Cassas se entrega com a ostensivamente
visível volúpia dos santos e dos místicos, nada tem de idealista nem
de ingênua, antes tem consciência nítida dos interditos que intentam
obstaculizar a transmanência do vôo humano em busca da plenitude,
mas, mesmo assim, se nutre do desejo maior, único pastor de sua
humano-divina ascese, que é, nas asas e nas garras do amor,
"descobrir o paradoxo de todos os mistérios e desnudar a plenitude
de todos os fracassos".
A Liturgia da Paixão, cartografada multidirecionalmente por Luís
Augusto Cassas, para além das sombras que a espreitam e contra ela
conspiram, renova a profissão de fé no homem, e, mais que isso, faz
do espírito o esconderijo mais privilegiado da esperança , e da
esperança, o antídoto mais seguro contra os volumosos caudais de
desespero que ameaçam subjugar não somente a arte, mas todo e
qualquer projeto civilizatório gestado nos incertos tempos do aqui e
do agora, nos arraiais da pós-modernidade relativizadora de tudo e
de todos.
O amor, orficamente celebrado por Luís Augusto Cassas, recusa as bem
arquitetadas algaravias de inúteis e desnecessariamente complexas
elucubrações mentais, para ser flagrado, com a conspiração de todos
os sentidos, no "centro da folha branca", onde o mistério luminoso
da poesia, com a sua insaciável fome e sede de infinito,
paradoxalmente se desentranha das mais prosaicas e aparentemente
desimportantes cenas do cotidiano, como,por exemplo, a caseira
matemática do lavar os pratos, o diálogo com as formigas, o brincar
com as crianças, o alface que se prepara para a salada e, por fim, o
bom dia à mangueira, gestos que, lembrando um pouco a objetivista
poética caeiriana, conferem ao caleidoscópico olhar do poeta
maranhense a nitidez e primitividade de quem, litúrgica e
permanentemente posto em estésico estado de paixão e êxtase, quer
recuperar o mundo em sua (im)possível virginal intocabilidade, e ,
mais que isso, com ele, nas asas de uma transmanente paixão
litúrgica, assinar, racional e intuitivamente, um pacto de perene e
poética comunhão.
Na apaixonada liturgia amorosa protagonizada por Luís Augusto
Cassas, há também espaço para a corrosiva e afiada faca só lâmina de
uma lírica que não suporta a teatralidade inautêntica de uma Alta
Sociedade que tem na posticidade das atitudes e no culto espúrio à
cartografia dos simulacros , o seu paradigma comportamental
predileto.A amorosa e passional liturgia inventada por Luís Augusto
Cassas, ao mesmo tempo em que propõe a comunhão universal de tudo
com todos, reconhece, com pungente consciência, que o roteiro
traçado para a convivência do eu com o outro é espaço do atrito que
fere, do conflito que esmaga e da fratura que mata; sabe também, com
Eduardo Portella, que, se por um lado, "somos um ser para o outro e
fora do diálogo o que existe é o precipício"; por outro, não ignora
que a verdadeira "coroa de espinhos é amar o próximo ainda que
distante", daí a cortante e paródica sentença final da pungente
oração do Poema da Vã Glória ou Da Glória Vã, "Crucifica o
próximo,Senhor. Crucifica-me junto com o outro, pra ver se o suporto
no paraíso".
Promovendo magistralmente o acumpliciamento dos contrários e a fusão
dos mais aparentemente inconciliáveis paradoxos, a liturgia
passional de Luís Augusto Cassas celebra ardentemente o amor, e,
mais que isso, busca, através dele, restaurar a primitiva unidade de
todas as coisas. Da Liturgia da Paixão transportamo-nos para uma
Ópera Barroca, na qual, transitando do escárnio para o maldizer numa
espécie de revivescência moderna da jocosa, não raro escrachada,
poética contestatória dos trovadores medievais, Luís Augusto Cassas,
ancorando-se no hegemônico motivo da cidade, centralíssimo nas
poéticas da contemporaneidade, canta, às avessas, a ilha de São
Luís, pondo em evidência, numa mesma cena lírica, ora suas
grandezas, ora o caráter predatório de uma traumaticamente
asfixiante modernidade, em cujo estuário, para usar a expressão
adotada por Marshall Berman em seu fecundo ensaísmo, "tudo o que é
sólido, desmancha no ar", nada ficando de pé diante da voragem
impiedosa do progresso, seja o "ciclo do algodão-ciclo do
barão-ciclo da jaca-ciclo da mulata-ciclo dos coronéis-ciclo dos
cartéis- ciclo do boi- ciclo do já foi".
Aqui, nas asas da vigorosa denúncia social que esses versos
encerram, a lacerada e impotentemente cultivada memória do passado é
esmagada pelo fraturado e intranscendente tempo presente,
tornando-se incertos todos os horizontes de expectativas de um
futuro, mais que desconhecido, ameaçador, já que, cindida ao meio, a
cidade, dolorosamente cantada pelo poeta, é uma clivada partitura
cujas notas musicais mais efetivamente significativas jamais se
harmonizarão.
Uma é a nostalgia impotente do que se foi; a outra, a inalcançável
utopia do que nunca se vai ser, daí, a "ruína barbárie / de uma
acareação em série / redundará às duas / uma procissão de cáries /
uma está entrevada até os ossos / a outra tem penhorada as veias do
pescoço / uma está tombada / outra desmoronada / uma quer exílio / a
outra, auxílio / mas na embaixada do meu peito / meu coração em
beleza / põe mesa e lhes dá asilo".
Exilados ambos, o poeta e a sua cidade, natural extensão das suas
vivências íntimas, só lhes resta, ao desolado poeta e à arruinada
cidade, o asilo da poesia, coreografado pela força escarninha do seu
debochado ritmo e aquecido pelo fogo purificador de sua virulenta e
cortante tessitura imagística.
Da Ópera e seu dramático barroquismo seguimos para o Shopping de
Deus. Lá encontramos não somente a alma do negócio como também a
imagem mais irretocável do multifário e tumultuado espírito da
modernidade dividido entre a hóstia e o cartão de crédito, entre a
fé avulsa e a razão convulsa, entre o céu e o inferno de cada
eternidade feita sobre os escombros fugazes de cada epifânico
instante.
Discordo da afirmação do ensaísta Marcelo Coelho quando ressalta que
na obra poética de Luís Augusto Cassas tenha havido uma fase
marcadamente religiosa, da qual o Retorno da Aura e Liturgia da
Paixão pontificam como momentos culminantes, a que se seguiria um
mergulho mais vertical na materialidade do mundo, acerca do qual
esse inquietante Shopping de Deus se corporificaria como a onda mais
efetiva.
Não. O conceito de fase, pelo que implica de estanque e
estacionário, me parece absolutamente incompatível com a poliédrica
cartografia de um imaginário poético deslizante que parece estar,
desde o primeiro verso produzido, celebrando ou querendo celebrar,
contra todas as interdições inerentes à nossa congênita
falibilidade, uma espécie de síntese universal de tudo,"matrimônio e
litania dos opostos, somente para usar duas belas imagens
mobilizadas pelo poeta maranhense.
Caleidoscópica e portadora, isto sim, de múltiplas faces que
coexistem simultaneamente na tessitura plural de uma vasta e
complexa identidade poética que, no limite, chega a lembrar o
heteronímico projeto estético idealizado por Fernando Pessoa, Luís
Augusto Cassas, tanto quanto o genial Pessoa, parece querer "deixar
ao cego e ao surdo a alma com fronteiras, para sentir tudo de todas
as maneiras".
Por essa razão, também discordo frontalmente das leituras
setorizadas que insistem em reduzir o Shopping de Deus, inventado
pelo mercador das palavras , Luís Augusto Cassas, ao
unidimensionalismo redutor da mera denúncia social das narcotizantes
engrenagens do consumismo, do qual o shopping, imantado por sedutora
aura, funcionaria como clausura predileta, templo primordial e
porta-voz oficial da sua irresistível propaganda.
Aliás, contra o equivocado lugar comum em que normalmente claudica a
crítica das obsessivas sondagens do conteúdo, desatenta aos
negaceios e malandragens da forma e dos subterrâneos simbólicos do
texto, ainda que tal separação obedeça apenas às travessias do
recorte didático, o próprio eu-lírico multifacetado do abrangente
sistema poético engendrado por Luís Augusto Cassas afirma, em
acendrada postura metalingüística, "Se alguém disser / que é a favor
do espírito / mas é contra a matéria, / não me compreendeu: / quem
não está comigo / não está nem consigo".
A angústia na poesia de Luís Augusto Cassas, nem sei bem se esse é o
termo adequado, nada tem do desolado niilismo imanente a
significativas parcelas da lírica presentificada nos decantados
tempos pós-modernos, nem muito menos se organiza em torno do surrado
mote segundo o qual a nossa era prioriza a matéria em detrimento do
espírito. Nada disso. O desconforto
estético-ético-religioso-físico-metafísico-lógico-ontológico que
recobre todas as camadas afetivas da expressão poética do notável
poeta maranhense e lhe empresta um tom e dicção originalíssimos em
nossa plurifacetada lírica contemporânea, em cujo estuário não falta
nunca a celebradíssima esperança, provém exatamente do fato de que a
poesia e o homem, a arte e a ciência, a fé e a razão ainda não foram
capazes de perceber que são faces indissociáveis de um mesmo projeto
divino-humano que clama por total plenificação.
Por último, desembarcamos no híbrido e desconcertante santuário do
Deus Mix, de cujo código bíblico, recriado paródica e
palimpsestuosamente, emerge uma procissão de preces que,
caleidoscopicamente uma vez mais, consorcia o alto e o baixo, o
solene e o trivial, a suma transcendência e a mais desauratizada
percepção da fenomenologia humana, tudo urdido e curtido por um
refinado pathos humorístico e por uma extremamente risível alquimia
verbal, mas que nada tem, que fique bem claro, do raquítico ludismo
trocadilhesco em que se convertem certas escrituras poéticas da
contemporaneidade, indigentes de imaginação, criatividade, e, mais
que isso, de um mínimo de verticalidade no processo, nem sempre
fácil, de acumpliciar fecundidade imagística e profundidade de
pensamento.
No divertido humor presentificado na poética de Luís Augusto Cassas
não falta a gravidade alegre do sempre presente tom de meditação
existencial polimorficamente lançado sobre todos os desvãos e
abismos de quantos existem e compõem a multifacetada realidade
humana. Seguindo as trilhas abertas pelo Shopping de Deus e com ele
mantendo nítidos vínculos de relacionamento e dialogicidade textual,
o Deux mix, nascido da sugestão dada pelo rei Davi que, em sonhos,
visitou o poeta maranhense solicitando-lhe, onírico-visionariamente,
a empreitada de celebrar, para além do conúbio Deus X homem, o
próprio mundo em sua santa materialidade ou espiritualidade
materializada, de modo a, rasurando o empobrecedor superficialismo
das falsas polaridades, ratificar a recorrente proposta de quem,
assumidamente multifário, tem como desiderato ético-estético maior,
a cosmogônica síntese universal de todas as coisas.
Como diria Adélia Prado, a poética de Luís Augusto Cassas "funda
reinos, inaugura linhagens, e, para além disso, cumpre a sina de,
transdrummondianamente, penetrar,surdo-barulhentamente, no reino das
palavras e reinventá-las, porque, com Cecília Meireles, decerto o
poeta maranhense aprendeu a bonita lição segundo a qual, "a vida só
é possível reinventada". Bendita, pois, a reinvenção da vida
promovida por Luís Augusto Cassas sob a égide de uma tão
caleidoscópica poética.
José Mário da Silva é professor
de Teoria da Literatura na
Universidade Federal da Paraíba, Campus II.
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