Lucas Tenório
Luanda Beira Bahia – Tradição (Africanidade) e Colonização
Em Luanda Beira Bahia, de Adonias
Filho (Editora Bertrand Brasil S.A., 13ª edição, 1991), temos um
romance de ficção, se não de costumes, muito mais de anseios,
inquietações e pulsões existenciais. No intertexto de realidades
africanas ou africanizadas (afrodescendentes) da obra, as
personagens projetam-se em perspectivas histórico-vivenciais de
“terra”, em projetos e movimentos telúricos de manutenção e
superação – talvez – de tradições e (con)tradições. Vem disso a
multiplicidade? pergunta-se. Ou seria o próprio livro o monumento a
uma grande, celebrada e hegemônica Tradição?
Percebi na fala de Adonias Filho a
reescritura redimensionada, e (relativamente) reposicionada –
refundada -, da saga da colonização portuguesa em terras “lusodescendentes”:
brasileiras (Bahia), angolanas (Luanda) e moçambicanas (Beira) –
nesta última de forma dedutiva. Observamos no arranjo da narrativa,
na constituição ideológica do entrecho do livro e das personagens,
uma linha mestra, talvez também psicanalítica, de sobrevalorização
do “português”, não muito sutilmente diluída na prevalência do traço
étnico, disseminador, luso. Uma lembrança/associação metonímica
relativamente esmaecida e repintada do acento “valente”, civilizado,
universal, superior (europeu), incorporador e desbravador do “homem”
colonizador, não especificamente da “cultura” (lato sensu)
colonizadora em si, coisa que o autor não põe materialmente em
relevo, a não ser quando do reconhecimento sub-reptício da
confrontada inferioridade das culturas mestiças dos três estados
colonizados, verbis:
“O mar levava os homens para muito longe. Voltavam alguns, quando
voltavam, e outros desapareciam como se morressem.(...) Tinham que
ir e iam como enfeitiçados. O resto do sangue português, talvez,
cedo fervendo nas areias de Pontal [próximo a Ilhéus, Bahia] e
dentro das cabanas dos pescadores (...) O Sardento, agora, era um
deles.” (p. 7) (Grifos meus.)
“Jamais esqueceria o que ouvira sobre o pai, a quem não
conhecera, menos de um ano tendo vivido no Quibala [Luanda, Angola].
Um homem de passagem, oito ou dez meses, tempo bastante para
engravidar a mãe e sumir nas funduras da selva. Caçador de
crocodilos, o pai, negociava as peles. Metia-se na selva cinco ou
nove dias, a barba nos peitos, o rifle e o machado nas mãos, a lata
de querosene e a mochila nas costas. Esperava a treva para acender o
facho, encadear o bicho, matava a machado. Filho de Portugal, forte
e valente, [Iuta] não entendia o que ele, o pai, encontrara em sua
mãe” (p. 44) (Grifos meus.)
Veja-se mais da caracterização do
“brasileiro” Sardento, o marinheiro João Joanes, um dos personagens
principais do romance, ao lado do seu filho, Caúla (a seguir o
destino do pai), que alegoricamente reproduzem, respectivamente,
espaços de colonizador e colonizado; dominador e dominado:
“A cara sardenta e vermelha de galo de briga, a cabelaça
alourada, azulão nos olhos. Alto não era, mas forte, de peitos
largos. Parecia um gringo” (p. 10) (Grifos meus.)
“- O mar, filho, é ruim – ela [a mãe] sempre dizia.
A jindiba falasse e não diria o mesmo. A árvore, que Caúla já
aceitava como um pedaço de si próprio, conhecia o mar. As raízes na
areia penetravam. Salgado o vento que movia as folhas.” (p. 16)
(Grifos meus.)
E, nesse contexto, ainda (e mais)
dessa Jindiba:
“E ali já estava, alta e forte, quando se fez a casa (...) O
silêncio, apesar das ondas e dos pássaros, era próprio desse campo
tão próximo do mar. (...) E foi esse silêncio, pondo ouvidos na
árvore, que lhe permitiu escutasse as vozes da casa. Em primeiro,
durante certo tempo, vozes de homem e de mulher. Choro de criança a
seguir, invadindo o ar carregado de maresia.” (pp. 3 e 7) (Grifos
meus.)
O autor me parece dar visivelmente à
arvore, ao lado do mar, o estatuto da imanência da Tradição
colonizadora; mas a tradição, como se percebe, tanto originária
quanto incorporada. O mito genealógico: “árvore” que ouve o silêncio
(onisciência e onipresença); “árvore”, portanto, que gera, enquanto
sêmen e ventre: [cria e mantém] vozes de homem e mulher; choro de
criança invadindo o ar carregado de maresia. De Mar, de tradição – a
expressão não-continental da Tradição portuguesa. A jindiba estava
lá (e na simbologia da obra sempre esteve), com suas raízes no
Pontal, tudo vendo e regendo magicamente: eis de fato a Tradição
incorporada e incorporadora; a viga mestra, e dialética, da
Colonização.
Em retomada necessária, um pouco mais
do porquê, portanto, de se falar em superioridade, incorporação e
dominação. Valhamo-nos de mais alguns trechos do livro no mister
desse esclarecimento:
“ – Mãe [fala Caúla], é a professora Maria da Hora – avisara.”
“A mulher [a professora], acurvada de tão alta e magra, grossas as
lentes dos óculos para vencer a miopia, a saia abaixo dos joelhos, a
blusa caindo reta que não havia seios, os cabelos de carrapicho,
comeu o doce de caju com o queixo se movendo no rosto parado. Negra,
as unhas sem pintura, os dedos sem anéis, o calor de contas no
pescoço.” (pp. 16-17) (Grifos meus.)
“ – Roberto Pé-de-Vento chegou com a grande notícia. Sujeito alto e
magro, negro de invejar o carvão, o maior amigo de Sardento.
Pescador de saber onde os ninhos dos robalos e vermelhos, capaz de
escorar sozinho um saveiro pequeno em alto mar, era um pertence do
Pontal como a própria jindiba.” (pp. 20-21) (Grifos meus.)
“E Caúla [em Ilhéus], erguendo a cabeça, não mais sentiu os
próprios olhos. Uma imagem enchia-os. A moça de louros cabelos,
olhos azuis, pele de leite e seios pequenos na blusa de renda. Não
era a criatura mais linda que já vira porque havia o mar.” (p. 26)
(Grifos meus.)
“Mãe Filomena se deteve, muito espantada, com as mãos nas ancas.
Acreditava [que Caúla era o filho de João Joanes], porque mestre
Vitorino dizia. E se aquela femeazinha, Conceição do Carmo, sua
neta, aparecesse? Rebolando, atraindo os homens, a vagabunda.
Mulatinha de olhos verdes, cabelos corridos, seios grandes e coxas
grossas, uma cachorra sempre no cio. Aparecia quase todos os dias,
no almoço, caçando os marinheiros [em Salvador]. Seria inevitável o
encontro com o grumete de mestre Vitorino.” (p. 58) (Grifos meus.)
“Marinheiro que chega, antes que agradeça a viagem ao Senhor dos
Navegantes, pensa nas quiandas. Moram nas águas de Luanda, são as
sereias, transfiguram-se em peixes, mulheres e palmeiras. Não se
pode olhar em torno – as prais e as ilhas – sem que se admita seja
uma quianda o coqueiro ou a própria areia cor-de-leite.” (p. 40)
(Grifos meus.)
A relativa presença da
tradição-alienação (aqui mais incorporada) leva o autor a assinalar
as semelhanças materiais - algumas outras de cunho predominantemente
ideológico foram já demonstradas -, entre as afro-colonizadas Bahia
e Luanda - principalmente (e Beira):
“Ali, na coberta [do navio], Caúla via as manchas cinzas [de
Angola], muito distantes, e sabia que grande era o mundo dos
africanos. Selvas por dentro, feras em liberdade, tribos dançando.
Pedaços vivos desse mundo estavam na Bahia, as gordas velhas
sentadas frente aos tabuleiros e panelas de acarajé, negras de
Angola, a própria Conceição tinha muito daquele sangue.” (p. 117)
(Grifos meus.)
“As praças velhas [em Luanda] de séculos, cercadas pelos
sobradinhos magros e os casarões pesados, tão iguais às de Salvador
da Bahia que até o calçamento é o mesmo. Ver os mercados, sobretudo
aquele dos pobres, é voltar à Bahia. É andar de novo com os negros,
comer as mesmas frutas, pegar no ar o cheiro do dendê fervendo.” (p.
40) (Grifos meus.)
É nesse cenário, no cenário da
identidade da “terra” (ou terras) colonizada - a que Caúla,
contrariamente ao pai, é mais “apegado”, apesar do “sangue” - e
nessa altura pode-se dizer, sangue mesmo português -, que o filho do
marinheiro João Joanes, depois de “navegar”, encontra o resgate de
sua própria identidade, e tenta estabelecê-la relativamente fora do
domínio determinista da tradição. Apaixona-se pela também mestiça
Iuta, neta de português e angolana, mas não só isso: sua irmã
paterna. Brasil e Angola, num grito de liberdade, unem-se num traço
de identidade dos mais fortes: de amor, mas de tradição incorporada.
Mas também tragicamente de sangue, tragicamente porque, como dito,
sangue do pai português.
Caúla fora sapateiro em Ilhéus, e
depois de uma desilusão amorosa com Conceição do Carmo resolvera
correr o mundo a navio, mas nunca fora, como se percebe das notas do
texto, marinheiro inveterado como o pai Sardento: daí a costura
dialética de uma espécie de neo-tradição, resultado da Tradição
incorporada ou revista/repensada. Encontra Iuta, alma gêmea, que
quase que misticamente compartilha da mesma concepção de mundo de
Caúla, e que depois de uma acidente em Angola resolve, por
iniciativa do amante, voltar com ele para o Brasil, para a casa do
Pontal, ao lado da velha jindiba, que do ponto de vista marxista
estaria ao mesmo tempo na base e na superestrutura ideológicas do
enredo; e voltando Caúla ao velho ofício de sapateiro, deixando o
mar, num sentido simbólico de conciliação plena com a tradição
revista/incorporada.
Como elemento de ruptura e
reafirmação, resgate, da velha, monolítica e hegemônica tradição,
surge (novamente e ressurgirá sempre que for necessário) o sangue, o
sêmen de João Joanes aos dois filhos: os dois reconhecem, na chegada
a casa, o pai como pai de ambos (Iuta é filha do Sardento quando de
uma passagem dele por Luanda), e o pior: como avô do futuro filho
deles, já que Iuta tragicamente estava grávida do irmão, Caúla. A
identidade (ressignificada) torna-se banida, na violação da
interdição.
Angola e Brasil, numa relação
incestuosa, como “Prometeus” pegos em pecado com um fogo novo, um
novo uso, um novo costume, uma nova práxis, ou Adão e Eva na sua
ingenuidade e inocência, são devidamente punidos pela Tradição: João
Joanes mata os filhos na casa do Pontal, logo após o reconhecimento
e a maldição do filho “ Pai dos infernos!” Suicida-se logo após.
Fica clara, em seguida, a
reconciliação proposta por Adonias Filho na recomposição do
equilíbrio ideológico do enredo, do imperativo do tradicional, “com
a Jindiba”:
“- Vamos! – exclamou um dos pescadores.
Mulheres surgiram, não muitas, flores
dos quintais nas mãos. Debruçaram-se sobre o caixão de jindiba e,
dentro, viram o Sardento sozinho, em frente. Abaixo, lado a lado,
Caúla e Iuta. (...) Pé-de-Vento [negro pescador do Pontal, amigo de
Sardento] atrás, a seguir sem pressa, a pensar que deviam pôr um
velame. Um velame de saveiro pequeno na canoa que era o caixão,
largá-lo em mar alto, João Joanes e Caúla gostariam daquela viagem
como bons marinheiros. O negro, pensando, a andar.
E, com o velame aberto, fariam novamente a viagem por Luanda,
Beira e Bahia.” (pp. 138-139) (Grifos meus.)
Vale dizer que o autor de Luanda Beira
Bahia também nos dá a sua visão – sútil - de acomodação da tradição
com a modernidade, sem no entanto, subliminarmente não abrir mão da
proeminência do tradicional como elo por excelência de fundação e
refundação, re-situação de categorias, estados e valores:
“Muito para se olhar em Ilhéus, muito mesmo, a estrada de ferro e
a feira, sobretudo o centro com a lojas, as ruas calçadas e os
postes de iluminação. Dia-a-dia, aos poucos, foi descobrindo a
cidade. Apertada pelo mar, quase uma ilha, pequeno labirinto de ruas
estreitas que chegavam até ao pé dos morros. (...)
“Quando retornava, para encontrar a mãe sempre debruçada na
janela, Caúla não via a jindiba. Passava rápido, quase correndo, já
não sentindo a presença da árvore que era, agora, um objeto como as
pedras amontoadas no oitão da casa. Ela, a jindiba, sabia que o
menino não tardaria a empregar-se. (p. 20) (Grifos meus.)
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