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Jornal do Conto

 

 

Luiz Horácio Rodrigues


 

Milonga

 

Na estância os dias não correm e são longos demais. Ainda era possível molhar os pés no sereno quando Santiago sentiu uma fisgada de angústia, semelhante aquela que no céu empurrava nuvens negras na direção do açude onde o sol,dali a pouco, começaria a temperar sua luz.

Encostado ao cinamomo, entregue à permanente insatisfação que agora o incomodava de maneira quase insuportável, respeitava o silêncio que protegia o lugar.

Apenas o ruído tímido das galinhas esgravatando e o zumbido de uma solitária mamangava davam mostras de alguma atividade, Guarani e mais seis cachorros enrodilhavam sua fidelidade sob o banco de madeira. Ao menor movimento de Santiago eles abriam, por breves instantes, os olhos cansados, espantavam as moscas porque mosca é o único bicho que não respeita nada, e voltavam ao inerte consumo das horas. Só tinha um gato na casa ,um brazino que o avô de Santiago dizia ser símbolo do azar e, por razões de sobrevivência, não costumava abandonar a segurança de poltronas e sofás, saindo apenas quando era dia de caçada e restava na estância o velho e de poucos dentes Lorde, um vira-latas misturado com ovelheiro. Um homem em meio ao silêncio é como uma solitária tuna encimando a coxilha, Santiago não se sentia bem.

Aquele sossego era dos mais tristes visto que dentro dele adejava Santiago e no interior de Santiago quase tudo que um ser humano pode sentir, menos paz.

Retornou ao interior da casa, andou da sala pro quarto, do quarto pra sala onde os vestígios da noite, baralho e copos, sobravam no chão sobre o tapete feito de couro de boi.Inquieto passou pelo quarto de seu Hildebrando, o pai, e pode notar que ele não dormia. Lia. Então respeitou. No seu quarto, avistou mulher e a filha dormindo na mesma cama. Na cozinha limpa, as moscas não tinham o que fazer, lenha no fogão,escolheu a erva e pôs água para ferver. O primeiro gole do jujo foi suficiente para Santiago sentir o castigo das agulhas do medo, nesse igual instante uma trovoada provocou o latido dos cachorros e as galinhas correram para a clausura protetora do galinheiro. Luiza chorou e Vanessa chamou por Santiago que não esboçou gesto tampouco respondeu. Por instantes, apesar dos retratos nas paredes, teve a impressão de não saber onde estar.

O tempo, palhaço celerado, aproveitando-se da confusão, jogou seu laço funesto e apertado em Santiago que doravante não conheceria mais a diferença entre as manhãs e as tardes, entre sua mulher e Perciliana, a negra robusta que fazia doce de abóbora, a única sobremesa que ele comia com gosto.Peixe e churrasco trariam igual sabor, para geada ou verão a mesma vestimenta, bombachas, alpargata, camiseta de física sob a camisa e chapéu.

Sem querer, mais um ardil do tempo, aprendeu que entre a dor e a felicidade só existe o homem e que na ausência deste, o espaço se oferece aos fantasmas que sopram as árvores. Santiago nunca acreditou na felicidade e certa feita, tinha exagerado nas canhas, se atracou de punhal com um amigo de seu pai que confessou estar feliz por que a filha assim se sentia após recente casamento. Para Santiago aquilo significava roubar um sentimento, alguém se apoderar do que não lhe pertencia, bradava em lágrimas, irreconhecível. Duvidava, desde menino, da existência da felicidade.Infeliz e covarde foram os outros adjetivos que provocaram o desembainhar dos punhais. Garrafas e copos quebrados, cancha do jogo de osso estropiada, gritos, honras deslustradas, nenhum ferido.

A chuva estava por uma intriga de nuvens que não tardaria, Santiago, sabendo que ainda demoraria um pouco, foi tomar chimarrão na frente da casa, da estante do seu Hildebrando ele trouxe um livro, poucas coisas despertavam sua atenção.Bem mais tarde que de costume o velho sai da casa, traz consigo duas gaiolas com canários e pergunta se o seu cavalo ainda está no galpão. Sem resposta decidiu ele mesmo verificar enquanto o filho ganhava à casa pela porta da cozinha de onde passaria a castigar a vidraça com seu olhar gelado, a cabeça, vazia de pensamentos, não doía. Luiza chama pelo pai e o eco a estimula a vasculhar cômodo por cômodo, na cozinha corre em direção ao pai que chorando a abraça. Um dia, como acontecera com Ladislau e Dora, ela também deixará de ser criança e ele sofrerá por ainda não conseguir amar os adultos. Com os filhos maiores também foi demorado o aprendizado. Só sentia amor quando eles passavam as férias na fazenda do tio e ainda hoje desconfia que o maior incentivo do amor seja um simples fragmento da perda. Da sua mãe falecida ficou a certeza de não ter sabido amá-la e do sentimento por seu pai não conserva a mínima dúvida, tem conhecimento de que falta algo mas não sabe precisar o quê? Ainda envolto no abraço de Luiza sentiu novamente as agulhas do medo. Satisfeita a menina retornou à companhia da mãe.

Santiago olhava o pai escovando os cavalos, não sabia o que fazer. Não tinha amigos, ou melhor, tinha sim. Perciliana, a negra que fazia doce de abóbora e que agora me conta essa história, afirma que ele tinha alguns amigos e só não costumava estar com eles para não criar saudades. A doceira que mora comigo desde o dia em que Santiago encilhou seu cavalo preferido e partiu, foi até a cozinha preparar meu chimarrão. Me trata com zelos de avó.

Pressentindo a melancolia no olhar parado de seu marido e a certeza de sua inútil intervenção, Vanessa retorna ao quarto com o café da filha. Vivia com ele há cinco anos e tudo o que podiam ter feito de bom ou ruim, um pelo outro, já haviam feito. Agora ele estava sentado na cadeira de balanço em frente à porta, o mesmo olhar parado admirando a imensidão, ele sempre soube que o pampa maior não é aquele que se vê e sim aquele que se sente. Continuava sem idéias do que fazer.

A chuva se aproximava e Luiza veio juntar-se ao pai.Acomodou-a sobre a barriga de modo que não notasse seus olhos afogados em lágrimas enquanto contava uma história. Santiago contou a história de um homem que nunca quis da vida nada além de tempo para admirar a infância, a história de um homem que entendia o adulto como um golpe baixo da natureza, um homem triste que gostava de sorrir. Quando levou a mão esquerda ao bolso das bombachas reparou que Luiza dormia. Respirou forte e chorou, sem lenço.

O barulho de Luiza chupando o dedo acompanhava os miados frágeis dos filhotes paridos ao amanhecer pela gata branca que se aquerenciara na tarde anterior.

Regressando do galpão, Hildebrando avisa que a égua tordilha não passa daquela noite. Já estava deitada, a cria estava a caminho. Santiago aquiesceu em silêncio e apontou com o queixo para a filha que dormia. Com o carinhoso hálito de avô, o velho beijou a menina, em seguida arrancou com mãos, ainda de filho, as guanxumas que teimavam em se aproximar do alpendre. A chuva chegou com vento e força.

Num dos galpões mulheres preparavam o charque, enquanto Renato, negro alto dos pés grossos, descalço de verão a verão, tocava milongas no acordeom atiçando as agulhas do medo que tornaram a espetar Santiago. Luiza acordou e foi ter com eles, Hildebrando já estava lá., Vanessa passou a mão nos cabelos do marido e ele lembrou que o revólver estava dentro de uma caixa em cima do guarda roupa.
 

 

 

 

 

02.12.2004