Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Lygia Fagundes Telles


 

Uma narrativa firme e segura

 

12.06.2005


 

A leitura de "Meus Contos Esquecidos", de Lygia Fagundes Telles, é uma eficaz ponte de acesso à vasta obra da escritora paulista. Os relatos reunidos nessa coletânea ressaltam, antes de tudo, a delicadeza psicológica de sua escrita, a sensibilidade não só para se aproximar de algumas das regiões mais inacessíveis do espírito humano, como também o pudor e a elegância para apresentá-las sem estridências, sem ênfases, com absoluta suavidade.

Um conto como "Eu era mudo e só" exemplifica, em especial, esse jeito brando, mas firme, seguro, de narrar. O relato trata, basicamente, das dificuldades do homem em lidar com a perfeição - ou, melhor dizendo, com a simulação de perfeição. Depois de doze anos de casamento, e pai de uma filha adorável, o marido - o narrador de Lygia - é capaz de exibir uma vida que causaria inveja a qualquer um.

A mulher, Fernanda, não só é doce e exemplar, como zela com eficiência pela vida do marido, acompanhando cada uma de suas vontades, vigiando cada desejo insatisfeito, aceitando cada limitação. Mas é justamente essa perfeição e esse zelo extremo que incomodam o marido, que tinha tudo para ser feliz, mas não é feliz. É da felicidade que provém sua infelicidade. "Você parece um postal", ele diz para a mulher. "O mais belo postal da coleção Azul e Rosa."

Mas é justamente isso, a vida fixada em traços sublimes, domada pelas margens protetoras da segurança e da certeza, rígida como a morte, que lhe parece insuportável. Sente-se preso em uma gaiola de ouro, na qual tem como companhia uma mulher que, fiel e piedosa, adivinha cada um de seus pensamentos, e a eles sempre se antecipa, oferecendo uma solução, ou uma compensação.

"Ergo o olhar até Fernanda", ele diz. "Pronta para ir buscar a aspirina se a dor é na cabeça, pronta para chamar um médico se a dor é no apêndice. Sou um monstro." Monstruoso, ele pensa, é sentir-se sufocado pela perfeição e, ainda, desejar a liberdade, isto é, desejar a imperfeição. Quer dizer, reconhecer a felicidade, mas admitir também que o melhor da vida, que é instável e quente, se passa fora dela.

"Abro os olhos. Eu também estou dentro do postal", ele reconhece, e é essa constatação terrível, que em princípio devia despertar regozijo e alegria, que lhe parece intolerável. A monstruosidade é, por fim, a constatação de que, à perfeição mortífera, ele prefere, na verdade, os erros e a inconstância da vida.

É também o que se passa em "Herbarium", a história de uma menina que, para agradar a um rapaz interessado em botânica, se põe a colher folhas em um bosque, enfrentando insetos e o medo, em busca de delicados presentes. O rapaz chegou ao sítio em que ela vive para se recuperar de uma doença misteriosa. Na verdade, ele é o próprio mistério. É na delicadeza das plantas que a menina encontra maneira de expressar seu interesse, de encenar sua sedução.

A sutileza é o método de Lygia. Nada de revelações grandiosas, ou de discursos edificantes, ou de cenas explosivas. Nada de fixo, ou de completo. Lygia pega as coisas discretamente, pelas bordas, puxa fios que parecem imperceptíveis, ou inexistentes, tateia. Vai sempre pelo caminho mais difícil, acredita no invisível, não foge do precário, e é assim que seus relatos - sem a necessidade de um escândalo, de um excesso, de um grande mistério - se tornam assombrosos.

 

A sutileza é o método de Lygia Fagundes Telles.
Nada de revelações grandiosas, ou de discursos
edificantes, ou de cenas explosivas

 

 

Um conto esplêndido como "A testemunha" sintetiza a estratégia sutil de Lygia. Para ela, o objeto da literatura não é o real, mas o indizível, isto é, aquela parte do real que nos escapa. Tudo aquilo que não pode ser dito, nem com o discurso rigoroso da ciência, nem com os argumentos sedutores da razão. É esse indizível que, visto com sensibilidade, se aproxima do extraordinário, que sua literatura tenta dizer.

Em "A testemunha", um homem se sente ameaçado por um amigo, a quem toma como única testemunha de um acesso de loucura que ele teria experimentado na noite anterior. O acesso de fato aconteceu? Não aconteceu? Isso é o que menos importa. O que interessa a Lygia não é a resposta, mas a dúvida. É o sentimento inquietante do "pode ser", mas também do "pode não ser", a vacilação interminável diante do real. Isso é o humano e é disso que a literatura de Lygia trata. De um veredicto judicial, ou de um relato médico, ou de um estudo científico, esperamos respostas. Da literatura, não: é a arte de suportar o que não se pode responder.

É assim, ao menos, para Lygia. É o que se dá, ainda, em um conto como "A fuga", a história de um homem, Rafael, que foge, mas não sabe de quê. Aquilo que o massacra pode não ser nada, pode ser só uma impressão, um engano, ou o sinal de um cansaço. Isso não importa, já que, sendo o que for, a coisa continua a sufocá-lo. O difícil é isso, fugir de um inimigo desconhecido. E é o que interessa a Lygia, o homem aflito e impotente diante de sua ignorância.

Talvez seja esse conhecimento da ignorância que a tenha impulsionado, quando moça, em um movimento inverso, a estudar direito. O trato e a firmeza das leis - ela se formou em 1946 - fazem contraponto com a situação desgovernada em que ela trabalha como escritora. Não só a situação do escritor é desorientada e se aproxima do transe: seu objeto é, ele também, inalcançável, fugidio. Como se o escritor fosse um ingênuo caçador (pensemos no russo Vladimir Nabokov, munido de sua cesta, à caça de borboletas), tentando aprisionar pássaros inexistentes. De seu esforço não surgem pássaros, mas livros.

Lygia persistiu no trato das leis. Em 1961, começou a trabalhar como procuradora do Instituto de Previdência de São Paulo. Acabava de se separar de seu primeiro marido, Goffredo da Silva Telles Jr., mas não de seu sobrenome. Já era mãe de um filho, Goffredo Neto, nascido em 1954. A literatura e o direito encontraram maneira de conviver. Provavelmente, de se compensar e se suportar.

Em 1970, lançou "Antes do Baile Verde", coletânea de contos que a consagrou. Em 1973, a José Olympio editou aquele que é, ainda hoje, seu romance mais célebre: "As Meninas". A coletânea de contos "Seminário dos Ratos" é de 1977. Antes de os anos 70 terminarem, as bases de sua literatura estavam fixadas. Mas, com outros livros importantes, como "A Disciplina do Amor", de 1980, "Mistérios", de 1981, "A Estrutura da Bolha de Sabão", de 1991, ela continuou a surpreender os leitores.

Em um tempo em que a literatura se despedaça, em que a dúvida preside a criação literária, em que os escritores tiram de seu próprio desânimo o ânimo para continuar, as narrativas seguras e serenas de Lygia parecem surpreendentes. E, diante de um mundo tão instável e tumultuoso, são mesmo quase irreais. (JC)

 

 

 

 

 

27.03.2006