Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Magalhães da Costa


 

Conversa de pé de bodega
 

“Quando eu morrer, quero ser levado numa rede por quatro companheiros de pinga e ser enterrado lá no alto daquele morro, com uma garrafa de cana de lado, e que a última coisa que eu tenha de fazer seja tomar um bom trago de cachaça” (testamento oral público do finado Chico do Chato, cumprido fielmente por familiares e colegas).
 

Bom dia, Doutor. Vá-se abancando.

(- Vitorino, uma cadeira aqui para o cidadão).

Se assente, meu senhor. Nos dê o prazer da visita.

Então, que novidade traz pra nós? Nada? Nada não? Não nasceu nem morreu ninguém na cidade? E o delegado, ainda é o Tanajura, aquela do bundão, que o Gato Manso arranjou com o Governo pra ficar mandando aqui? Pois se é, não mudou, é mesmo o tal, não temos nenhuma nova, como dizem as Sagradas Escrituras... Quer dizer, tem e não tem: só o prezado por aqui nos dando essa alegria e essa satisfação.

Quê que toma, vamos beber? Nada? Nadinha?! Não diga, moço! Ah, uma pinga, pra abrir o apetite, não é? (- Vambora, Vitorino meu irmão, traz uma serrana aqui para o meu amigo). Com licença... Deixe eu soprar esse cisco aí no seu ombro. Pronto, tirei; caiu. Agora, vamos pra bicha, que está já nos esperando. Ande, experimente; tome, prove.

Limão? Um limãozinho, não é? Eu também aprecio. Sem dúvida que um excelente tira-gosto. Dos melhores, aliás. Como caju - igualzinho. Mas esse lamentavelmente não temos no momento, que estamos fora da safra, não é tempo deles. Agora que é bom, um dos melhores, lá isso é. Pelo menos pra mim. É, como caju não tem, não existe. O bicho chega chama, chupa. Um que o Vitorino safado nunca deixa faltar: piaba frita. Hoje todavia - não sei por quê - está vasqueira ... (- Vamos, chefe, traz logo o limão do homem). Ah, lá vem ele trazendo.

Muito bem. Ótimo. (- Agora, Vitorino meu filho, parta o bicho e ponha num pires, com uma pitada de sal de lado, viu?) Ou não, cidadão? Se prefere... Ah, deseja sem sal, não é? É como presta, é bom. Eu também gosto assim puro, que com sal só mesmo manga verde. Esta, sim, está só, sozinha. Servem, costumam servir também imbu inchado, tripa de porco torrada, torresmos, tamarindo zarolha, lingüiça assada, e até uma mancheia de farinha, quando se está danado. Agora, o que eu não consigo engolir é ovo - ovo de qualquer espécie. É, não entra, não desce. Não vai. Muito, muito sem graça. Não sei quem inventou.

Na certa que o mesmo sujeito descobridor da sardinha. Batata! Batatais! É, os dois se emparelham, são da mesma laia e topo. E eu dou um pelo outro e não quero torna, volta nenhuma.

Reparou como a bicha é boa de vera? Viu só o rosário de contas que ela faz no copo?! Pois ! Igual a essa do Vitorino, eu nunca vi, não conheço. É, ninguém acha. Pode é procurar, caçar à vontade, que não encontra. Descobre é uma pinóia! É, só ele tem. E só ele sabe também onde se esconde. Dizem que traz da Serra Grande. Deve de ser. De lá, e não de outro canto, garanto ao senhor. Ele tem umas viagens pra lá, e eu posso afirmar que foi lá mesmo que deu com a mina (- Ande, seu cabeça chata, diz logo pra gente onde que você consegue essa preciosidade, que eu quero ir lá buscar um tonel, o resto pra mim).

(- Outra. Mais uma. O patrão quer outra, Vitorino. Mais uma dose. E vê se traz uma rodela de limão, não esquece, viu ? Cadê, não tem um pedacinho de queijo pra nós não?) Aí é esperto, menino, escovado que nem urubu. Como esse... (-Vamos, bodegueiro velho, mais um pra gente, que o último foi de fazer vergonha. Aquilo nunca foi trago, mestre, mas água pra vinvim beber).

Ah, agora sim! Ah, dessa fez certo, mediu na risca... Receba, meu amo; essa aqui é sua, do senhor.

Como? ! Como é? Que foi que o distinto falou? Que só toma se eu provar antes? Foi? Ora, não seja por isso! Por isso não. Se a questão é essa, se este é o problema, está resolvido, tudo decidido: eu vou na frente primeiro, tomo logo a minha, o meu.

(- Ei, Vitorino, vem cá, homem de Deus! Anda, bota mais uma medida. Mas, bem cheia, derramando, está vendo? Vai, leva esse copo e traz outra. Corre, rapaz!)

(- Só isso, esta gota?! Êh, velhinho, desse jeito não. Só esse pingo, este tico ? Um triz desses? !... Homem, crie vergonha e deixe de escovice, que é melhor. Se quer enganar, procure outro, e não o nega, que este aqui você não pega, meu bichinho, nem passa os pés assim tão fácil não, seu sabido. Vamos, passe pra cá mais um quarteirão regrado, viu? Botou? Encheu na conta?)

Bom, agora eu vi!... Valeu! Acaba, não chore...

Virgem, que bruto, o patrão! Não é que despejou tudo de uma vezada! É homem macho mesmo inteirado. Nem careta fez, pessoal ! Nem cospe! Aí sabe tomar, beber. É, tem classe. Admiro gente assim, tipo ralo: que não alisa. Ou como guaxinim: que não toma chegada, voa logo em riba, sem respeitar cara nem tamanho. Eita animalzinho danisco de valente! Deixe eu lhe contar. O Sérgio morador de seu Almiro Avelino na Telha se viu aperreado com um, certa feita. Foi apanhar uns paus de lenha no mato, pra ferver uma tachada de mel de cana, e deu com o bichinho, que vinha vindo direto no caminho e saiu em cima do banqueiro. Esse caiu na asneira de espantar... Pra quê? A fera saltou-lhe nos gorgomilos, que o cabra andou apertado, viu foi alma; foi, teve que lutar muito, feito um danado, e só venceu porque se valeu do chiqueirador que havia deixado pendurado no cabeçote da cangalha do jumento. Foi a valença, santa salvação. O que livrou a criatura... Não fosse, não tivesse, o coisinha teria ido pra ele ligeiro, ligeirinho, ora se não... Bem...

Outra. Mais outra, o senhor pediu? Pediu, ou não pediu, seu doutor? Foi, mandou. (- Não mandou, Vitorino?) É, mandou, eu ouvi bem. Já dei fé que o senhor gosta, aprecia bastante uma birita, a gente está vendo. Tome cuidado, confrade, pois se duvidar a danada lhe pega, derruba direitinho. Ora se! Quando pensar que não, está com a cara enfiada na terra. Estou lhe avisando! E quem avisa, amigo é. Portanto, melhor se prevenir, caminhar devagar com tenência, que o andor é pesado e o santo é de barro, pode cair e se quebrar. Já rodei muito nesta estrada. Conheço bem todos os buracos e curvas dela, e sei onde perfeitamente correr e frear sem risco de desastre. Estou lhe advertindo, abrindo os olhos...

Mas se o meu não se importa, não liga, não quer, azar; toca pra frente (- Anda, Vitorino da fuzenga, vamos, traz mais dois mercados dessa corada que tu tem aí pra nós). Só quero que depois a cara-metade não vá dizer que estou botando o doutorzinho em mau caminho, embrulhando em ruins lençóis...

O que é isso, colega!? Está agastado? Então não se pode mais tirar uma prosa, caçoar com ninguém? E nós não estamos aqui mesmo não é brincando, se divertindo? Pensei que... Mas não. Me desculpe, viu? É, vá me perdoando: não sabia que o companheiro era enfezado a ponto de se zangar com tão pouco, se ofender sem mais nem menos. Vamos, me dispense por essa. Faça de conta que não estou aqui, não está mais aqui quem falou. E também vá me dando permissão pra me levantar e ir me retirando...

Não? Só depois? Depois de quê, moço de Nosso Senhor? De tomar mais uma, é? Pois não. Gozado! Gaiato! Interessante! Muito interessante! Muito, muito interessante mesmo. Eu lá supunha que o parceiro fosse capaz de se alterar, ficar ofendido desse jeito. É, de pegar corda como pegou. Não, não está. Ah, não está, não é ? Não ficou. É, não pegou. Vi logo! Logo vi!... Ótimo assim. Beleza! Se é dessa forma, eu fico; fico até o dia todo com o senhor; se preciso, varo a noite. Com o distinto - nós dois juntos - fecho o tempo e vou até onde o vento encosta e faz a curva. É, furo o mundo de um lado pro outro com vancê no tutum, e não levo peso, carga nenhuma. É isso, isto mesmo. Falei, está falado: o nó com a volta dada e a ponta escondida dentro - nó cego, nó-de-porco, seguro.

(- Vamos, irmãozinho, mais duas serranas pra gente, e vê também se não esquece o limão, está ouvindo?)

Como? O que falou? O que é que está dizendo essa ilustre pessoa? Será que estou ouvindo bem, minha Nossa!? Escute aqui, patrão, nós vamos mudar, é? Mesmo, mesmo...?

Boa! Gostei!

(- Ei, Vitorino, suspende! Carece mais não, mano. O patrone está querendo agora é celveja. Uma casco escuro bem gelada, ouviu direito, meu chapa?)

Deixe-me ver, pegar nela. ( - Anda, bota aqui, que eu digo já).
Oba! Eita que esta está de caldo grosso, seu menino! Olhe aqui, amigão; pegue, veja. Que tal? Boa demais!... Um colosso! Legal paca! Vamos, vamos logo pra ela?

(- Depressa, Vitorino! Que que tu espera aí parado, cristão? Anda, corre, abre ligeiro essa bendita, que a toada agora é outra, muito diferente).

O homem ficou rico! Começou!!!
 

 

 

 

 

08.07.2005