Majela Colares

 

 

 


Zé Limeira e Orlando Tejo: surrealismo à flor da tinta
 


 

         Sob o açoite melancólico das cordas das violas e da forasteira brisa da Serra da Borborema a barra vinha quebrando e se embrenhava pupila adentro dos olhos de muitos que ainda se encantavam e aplaudiam a dupla de poetas-repentistas ali em combate. Campina Grande se desmanchava em versos.
         A figura de Zé Limeira, um dos cantadores em peleja, protagonizava as mais empolgantes cenas daquele momento.

O desafio já ia de serra a cima quando, de súbito,   Limeira   sacou   do seu pulmão de aço, ecoando na sua vibrante e imaginosa garganta, o repente:

          Eu briguei com um cabra macho
          Mas não sei o que se deu:
          Eu entrei por dentro dele,
          Ele entrou por dentro deu,
          E num zuadão daquele
          Não sei se eu era ele
          Nem sei se ele era eu
 

Teria sido, dizem, o último “verso” e, com certeza, a última peleja travada pelo poeta da Serra do Teixeira. O ano era 1954. Aquele magistral cantador, andarilho de sete fôlegos que trajava sempre mescla azul, chapéu preto, óculos escuros, meia dúzia de anéis em cada mão, um espalhafatoso lenço encarnado tremulando no pescoço e que chegava a devorar, andando a pé, cerca de vinte léguas por dia, nunca mais fora visto em lugar nenhum.

Afirmam alguns apologistas da vida e da poética limeiriana que a mitológica e contraditória desavença acontecera, em recinto até hoje não revelado, na cidade de Campina Grande, entre o Poeta do Absurdo e Orlando Tejo. Desde então um ficou dentro do outro. Tornaram-se, hermeticamente, a partir daquele instante, uma única pessoa.

Confirmei tais boatos recentemente, quando de passagem pela região. Um curioso ancião de longas barbas, voz mastigada e ares de profeta, natural da cidade de Areias, (disseram-me ter, aquele homem, mais de 120 anos de boa vida), afirmou-me a veracidade da propagada história: "presenciei a balburdia...” e complementou: "desde daquele dia nunca mais avistei Zé Limeira o maior cantador que conheci e muito menos Orlando Tejo. Ouvi dizer que tinham virado livro..., um livro misterioso", concluiu com um espichado suspiro, o profético ancião.

Convenci àquela fantasmagórica figura da hipotética metamorfose por ele comentada, ao presentear-lhe com o livro Zé Limeira - Poeta do Absurdo. Esta fictícia e insuperável dupla está viva, assegurei-lhe. E mais: se Orlando Tejo ressuscitou Zé Limeira, Zé Limeira eternizou Orlando Tejo e nessa eterna ressurreição, por obra e graça da poesia, percorrem mundos, causando mal-assombros e encantamentos aos que os encontram, vez por outra, Brasil a fora. Exemplo de prova é o escritor, teatrólogo e crítico Paschoal Carlos Mágno ao registrar no Jornal Última Hora de Porto Alegre: "Zé Limeira - Poeta do Absurdo é o livro que me assombrou nos últimos quarenta anos". Isto em 1974, vinte anos depois daquela fenomenal e metamorfoseante cantoria.

Entre autor e obra, ou mais precisamente, entre Zé Limeira e Orlando Tejo, reside um princípio de identidade, uma confluência de personalidades, tão profundo e evidente que se mostra impossível negar os relatos históricos revelados pelo misterioso visionário da terra de Pedro Américo. Poder-se-ia denominá-lo, dentro do contexto da sabedoria popular, de "princípio da psicologia limeiriana", mágico e mítico, que guarda uma consistente empatia com o inconsciente coletivo de um povo.

Zé Limeira - Poeta do Absurdo é um livro que oscila entre o erudito e o popular, de Camões a Inácio da Catingueira, que vagueia entre bancos de universidades e tamboretes de pés de balcão, enfim, entre um lampejo de intelectualidade e um gole ardente de cachaça. Um livro que, dono de uma linguagem própria e originalíssima, amolda-se perfeitamente às palavras de Manuel Bandeira em seu poema Evocação do Recife: "língua errada do povo, língua certa do povo". De resto o que fazemos é "macaquear" a sintaxe lusitana.

Se Salvador Dali foi surrealista e fantástico e Edgar Allan Poe, fantástico e revolucionário, obedecendo cada um as suas formas e dimensões de expressão da arte, Zé Limeira, de viola em punho e imaginação escancarada, a seu modo, no traquejo da invenção poética, foi surrealista, fantástico e revolucionário.

O poeta do absurdo obedecia somente – e com precisão – em suas divagações poéticas, à rigorosidade da métrica e à musicalidade da rima, ficando o resto à mercê do seu fecundo método de improviso.


Fiquemos com estas imagens:

Getúlio Vargas morreu
Foi com saudade da esposa,
Lampião inda tá vivo
Morando perto de Sousa
Por detrás do sete-estrelo
tem um casal de raposa!

No tempo do Padre Eterno
Getúlio já governava
Plantava feijão e fava
Quando tinha bom inverno
Naquele tempo moderno
São João viajou pra cá,
Dom Pedro correu pra lá,
Escanchado num tratô...
Canta, canta, cantadô
Que seu destino é cantá...


E mais estas:

No sereno sertão da Palestina
Eu cantava num dia de Finado,
Uma vaca pastava no cercado,
Um macaco comia uma menina
Um sargento chegava numa usina,
Um moleque zarôi vendia pente,
Um cavalo chinês trincava o dente,
Uma zebra corria atrás dum frade...
Quer saber quanto custa uma saudade
Tenha amor, queira bem e viva ausente!

Limeira só canta toada bonita
Pra moça da roça, pra moça da rua...
Braúna, chocalho de noite de lua,
Cardeiro enfeitado de laço de fita.
Carroça vestindo camisa de chita,
Novena na casa do Sítio Tauá,
Porteira, cancela, vereda, jucá,
Mutuca, facheiro, valado, pagode,
A cabra rodando na pimba do bode,
Cantando galope na beira do mar!
 

Surrealista, fantástico, revolucionário... o certo é que ninguém, até hoje, a meu ver, retratou tão espontaneamente, em poesia, original em todos os sentidos, recorrendo à linguagem, metalinguagem e neologismos, um tempo, um espaço e fundamentalmente a beleza artística, rude e sábia de uma região, como fez Zé Limeira.

"O Brasil – escreveu Gilberto Freire – não se define, como cultura, apenas pelos discursos pronunciados nas suas academias de letras, de filosofia e de ciências ou nas suas universidades. Define-se também pelas estórias contadas em português espontâneo, rústico, rude, porém expressivo. Por cantigas também espontâneas: cantos de analfabetos até. Pela sua sabedoria popular manifestada, por vezes, de modo surpreendentemente intuitivo e imaginativo."

Orlando Tejo, homem culto e intuitivo, ao escrever Zé Limeira - Poeta do Absurdo nos presenteou com um dos melhores trabalhos já realizados no campo da poesia popular. Um clássico das nossas letras. Considero este ensaio biográfico um dos mais importantes da literatura nordestina e brasileira. Não foi à toa que o renomado crítico de arte Mário Pedrosa disse: "Zé Limeira - Poeta do Absurdo é o livro que eu gostaria de ter escrito".

 

Majela Colares, poeta e contista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

03/10/2006