Majela Colares
O fantasma de Samoa
No banco da praça, absorto, Juvêncio
folheava calmamente um livro. Naquele resto de tarde, a brisa
prenunciava uma noite comum a todas as noites de sempre. Motivo
algum existia para vexames ou desatinos; nem mesmo a tarde que
findava assustadoramente vermelha rente aos edifícios.
Como em qualquer final de dia, a
passos longos e ritmados, as pessoas levavam coisas em sacolas e um
desejo surdo de voltar para casa. No banco da praça Vendôme,
Juvêncio, indiferente lia, absorvido em palavras. Alguém se senta ao
seu lado. Distraído, mal chegou a perceber a presença do estranho.
– O fantasma de Canterville? Sou
fascinado por Oscar Wilde, senhor Juvêncio.
– Como sabe meu nome? Não nos
conhecemos.
– Está no livro. O meu é Robert.
Aguardo um amigo.
– E o conto... Adivinho ou mágico?
– Sempre sei. Sempre... Num piscar de
olhos.
– Hábil, heim!?
– Obrigado.
– Wilde é realmente fascinante,
concordo – diz Juvêncio desconfiado voltando-se para o livro.
– Pobre fantasma! Quanta frieza...
Por instantes, Juvêncio pára e
questiona-se com o olhar. Vira a página.
– Pobre fantasma! Insiste Robert.
– Neste conto Wilde ironiza,
genialmente, essas histórias de fantasmas. Ou você acredita nisso?
– Claro, acredito sim e em momento
algum, a meu ver, Oscar Wilde ironiza histórias de fantasmas. Esse
não é o intuito dele, sua visão vai mais além.
– Não entendi.
– Ah, Juvêncio, eu tenho uma outra
concepção. Penso que a grande idéia, a intenção maior do conto, é
demonstrar o materialismo exacerbado e a frieza insuportável do
americano. Aí sim, como sempre, Wilde foi genial.
– Não percebi isso. Uma observação
sugestiva... instigante.
– Esse povo, amigo, para além dos
limites, é por demais egoísta. Frio por natureza. Um inverno
atípico, diria. O Fantasma de Canterville retrata muito bem essa
insensibilidade impiedosa e pífia do americano. Nem mesmo um
fantasma – tão humano – foi capaz de arrancar-lhes um gesto mais
afável.
– Mas na senhorita Virgínia o fantasma
confiou e tornaram-se amigos.
– A senhorita Virginia era uma outra
pessoa; ao contrário dos gêmeos e do irmão mais velho, demonstrava
uma certa consciência da realidade. Sensata e meiga, pensava por si;
possuía idéias próprias. Era diferente do resto da família. Virgínia
representa o lado bom e fraterno daquele povo.
– É, senhor Robert, um ponto de vista
estritamente político, não acha? – Interroga Juvêncio, fechando o
livro, marcando a página com o dedo, num cruzar de pernas.
– Não só político, mas também
cultural. Fundamentalmente cultural. Os americanos se sentem os
donos do mundo. Ditam regras e querem que toda a humanidade lhes
obedeça. Sempre apoiados pela Inglaterra, a Rainha-Mãe. É a minha
pátria, mas discordo, em muito, do posicionamento político inglês em
relação àquele país.
– Não é uma opinião radical, Robert?
Existem os laços de consangüinidade. São nações que possuem o mesmo
código genético.
– Não importa. Sempre pensei assim e
quando estive em Oxford sedimentei ainda mais esse posicionamento.
– Oxford?
– Sim, estive lá por seis meses
aperfeiçoando meus conhecimentos em Ciências Políticas. Saí antes de
concluir a tese. Perdi o estímulo. Abandonei tudo e fui viajar pela
Europa, América, Ásia e, finalmente, em Samoa, encontrei a minha
paz. Dediquei-me à literatura.
– Há quanto tempo está refugiado
naquelas ilhas solitárias do Pacífico?
– Cheguei por lá no início dos anos
setenta. Quanto a você Juvêncio, fez bem vir pra Paris aprofundar
seus estudos em literatura francesa.
– Não te falei nada. Como sabe que
estudo literatura...
– Sempre sei. Sempre. No semblante...
implícito.
Juvêncio, assustado, estranha a
afirmação precisa de Robert.
Com um olhar distante, indecifrável,
Robert observa as pessoas que passam pelas ruas, mas logo retoma a
conversa, quando Juvêncio ameaça reiniciar a leitura:
– Pensava em Nova York, no 11 de
setembro...
– Lamentei muito, Robert. O terrorismo
é irracional, estúpido.
– O terrorismo é repugnante. No
entanto, os maiores culpados são eles, os próprios americanos. A
arrogância e a prepotência também não se justificam, assim como a
emoção levada ao extremo. Mas isso terá um fim, tenho certeza; está
chegando ao fim. Essa nação hegemônica, dominadora, um dia sentirá
na pele a sua crueldade e suplicará a sua morte, assim como o
fantasma de Canterville.
– Pura ilusão, Robert. Jamais chegará
esse dia.
– Penso já estar acontecendo. Essa
mudança percebe-se no ar. Isso não só em relação aos Estados Unidos,
mas a todos os países. Impõe-se a decadência do Estado vigente,
baseado na teoria contratual defendida por Hobbes, Locke, Rousseau
e, de certa maneira, por Marx. É a desconfiguração da norma e do
gesto instituídos. Caminhamos para uma outra forma de Estado mais
evoluída, mais sublime e que melhor atenda aos interesses e
necessidades materiais e espirituais do homem.
– Você até parece estar em Oxford,
defendendo uma tese.
– Não, não... é que o 11 de setembro
me fez repensar as Ciências Políticas. Sem dogmas, é obvio, sem
academicismo. Naquele dia me veio a idéia de uma nova forma de
Estado. O Estado virtual. O início de uma outra ordem. Esse suposto
Estado teria apenas comando, dirigentes. Dispensaria os outros
elementos fundamentais ao convencional estabelecido. Sua base se
restringiria à sala de um edifício em Paris, Londres, Moscou, Rio de
Janeiro, sua terra, ou Washington. Poderia ser, sem maiores
problemas, uma fortaleza subterrânea no Novo México, na Pensilvânia,
em Bagdá ou nas planícies geladas da Sibéria... Quem sabe? Uma
caverna no Norte da China ou no Afeganistão, quem sabe?
– Absurdo!
– Parece absurdo, mas com a internet
tudo é possível. Enfim, é uma hipótese, uma simples hipótese. Esse
espectro, sim, atormenta e apavora aquele povo, os semideuses
americanos do norte. A hegemonia deles tem seus dias contados.
Sentir-se-ão o próprio fantasma de Canterville.
– Está ficando maluco, Robert?
Impossível.
– Você que pensa!
Robert se cala. Juvêncio retorna ao
conto.
Já é noite. Algumas lojas ainda
permanecem abertas. A cidade já está iluminada.
– “A essa altura ele abdicou de
qualquer esperança de um dia assustar aquela família americana
grosseirona...”
– Lê pensamentos, Robert? Estranho!
Estou passando por essa parte do texto.
– Calma, calma, não se assuste, foi
mera coincidência, telepatia talvez. É que essa parte do conto vem
só confirmar a minha tese da visão de Oscar Wilde sobre os
americanos. Ele foi irônico e preciso.
Juvêncio, sobressaltado, fecha o livro
com um certo medo estampado no rosto.
– Mas a culpa é deles. Pessoas assim,
como os americanos, nunca enxergam a dimensão das outras. São cegas
em sua prepotência e estupidez. Incapazes de sentir o tempo
confinando sonhos.
– Você diz coisas diferentes, Robert,
mirabolantes. Foge do senso comum.
– Tudo bem. Falemos de literatura.
Esse assunto interessa-me bem mais. Meus autores preferidos, além de
Wilde, são: Kafka, Defoe, Proust, Allan Poe... Adoro o fantástico. E
os seus?
– Poe era americano.
– A literatura e as artes como um
todo, pairam acima do convencional. Você sabe disso, caro Juvêncio
quis apenas me provocar.
– O tempo em Proust é enigmático.
– Concordo, mas do tempo,
verdadeiramente do tempo, poucos se dão conta. Em algum outro
momento paralelo já conversamos sobre isso; noutro ainda iremos
conversar. Em um outro momento nunca nos encontraremos.
– Agora senti uns calafrios, uma
sensação estranha. – Diz Juvêncio, fechando o livro de súbito.
– Aquele homem de terno escuro que
cruza a rua, com uma pasta na mão, apressado, de gravata esvoaçante,
me assusta. Talvez seja esse, também, o motivo da sua estranha
sensação. Por que fechou o livro? Continue. Estava no trecho de
minha preferência... quando a senhorita Virgínia pergunta ao
fantasma se está falando da morte, e ele responde: – “Sim, da morte.
A morte deve ser tão linda. Ficar deitado debaixo do fofo marrom da
terra, com a relva balançando acima de nossas cabeças, ouvindo o
silêncio”.
– Nossa! Você é misterioso. Como sabia
que parei nesse parágrafo? – Confuso, Juvêncio volta ao livro,
procurando localizar a página. – Quem é você realmente, Robert?
Uma voz distante e serena parece
sussurrar em seu ouvido: eu lia Oscar Wilde: O Fantasma de
Canterville – e morri exatamente nessa passagem em que você se
encontra. Morri feliz, amigo. A morte é linda.
Juvêncio, atônito, se perde na
penumbra... Naquele instante o mesmo homem de terno escuro e gravata
esvoaçante cruza a rua. O livro fica a desfolhar-se sobre o banco.
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