Victor Mikhailovich Vasnetsov, The Knight at the Crossroads

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Uma pequena lição de cavalaria


 

Fragmento de um questionário:

Francisco, personagem de um poema longo, Psi, a Penúltima, sai de dentro do poema e vem conversar com o autor, um certo SF, que também é Francisco.

 

 

 

99. Francisco: Domar cavalos, o senhor tem certeza, é assim mesmo, tão importante? Há uma impropriedade nesta resposta de há pouco (nº. 89), aqui está: Só os eqüinos correm assim, quando soltos. [clique para conferir] Ora, se o cavalo estiver preso, como poderá correr? Logo, a expressão "quando soltos" é descuidada.

SF: Veja: O bicho correndo de lado, olhando para trás, ora de um lado, ora do outro. É bonito. Era de lua, no descampado, cheia. No trote ligeiro, a cara de banda, rasgando o vento, o jegue garanhão. Só os eqüinos correm assim, quando soltos. A expressão "quando soltos", em se tratando dos eqüinos, há de ser entendida como em estado de Natureza, porque há duas modalidades em que não estão soltos mas continuarão correndo do mesmo jeito, ou até mais. Sem balançar a cabeça para os lados, nem retesar nas curvas. Na primeira, o cavalo está preso ao rodete, que é aquele moirão central, com uma corda de bom tamanho, o domador ali, controlando, incentivando, freando, aprumando. O cavalo correndo, trotando, chouteando os 360 graus do transferidor inteiro, sem parar. Evidente que ele não está solto, porque preso a um cabresto de cabo longo.

 

100. Francisco: Cabresto de cabo longo?

SF: Isto mesmo, preso, uma operação de rara sensibilidade! O cabresto está amarrado, é certo, uma volta livre em torno do moirão. Mas, entre o torno-moirão e a cara do cavalo há um um pulso-mão. Aliás, uma mão de pulso, que é de leve, extremamente leve, mas, ao mesmo tempo, excessivamente forte. Forte e gentil, anote aí, por favor. Gentil e forte! Entenda, se for possível, uma coisa quente e fria, no mesmo tacho, ao mesmo lance. A mão do domador. Leve, levíssima sobre o relho, um relho que pode bater mas não bate; um cabresto apenas.

 

101. Francisco: O senhor exagera! De onde essa mística? Não seria um cabresto comum?

SF: Apenas um cabresto comum, é certo. Melhor que seja uma corda de cabelos, artesanal; o domador, ele mesmo fazendo-a. Enquanto colhe e recolhe pêlos, crinas, rabos e cabelos mil, ele, secreto, já amansa, em mão e gesto, todos os potros do mundo. Pastam inteiros os cavalos selvagens naquele pêlo-couro, que não é couro, nem é pêlo; é coro, é canto, um cantochão; afago, voz e maciez. O cavalo correrá, e muito, mas não olhará para trás nem murchará as orelhas... Desde quê... a pedra, o sal, a estátua.    

 

102. Francisco: Desde que o quê? Olhar para trás? Orelhas? Haveria uma a outra hipótese em que o cavalo estaria a correr, porém preso?

SF: Muito simples! É quando ele, exemplo único em toda Natureza, se funde com o Homem num único animal. Claro que ele não está solto, posto que sobre si há um outro bicho, o Homem... mas os dois são um só, o centauro!

 

103. Francisco: Isto é apenas uma velha lenda indígena, os povos do México, que não conheciam o cavalo e, quando pela primeira vez o viram, imaginaram seria um só animal. Assombraram-se e perderam a guerra para os espanhóis.

SF: É um mito antigo, muito real porém. E, por isto mesmo, válido. O mito do centauro, quem o entendeu inteiro foi o poeta Franz Kafka. Já o filósofo Thomas Hobbes perdeu uma bela oportunidade de exemplificar o pacto social em cima do cavalo.

 

104. Francisco: Devagar, senhor! Não misture as coisas, por favor. Kafka, poeta?! Contista e romancista!? Paciência! Poeta, não! Nunca foi! Hobbes, a comandar uma cavalgada no pacto social?!

SF: Poeta, sim! Cuidemos de Kafka, em primeiro. Quando a poesia é verdadeira, poucos percebem-na. Tomemos este poema que ele apresenta como um conto, que também é conto, mas, e sobretudo, poesia. Alta Poesia:

 

O desejo de tornar-se um pele-vermelha

Se ao menos fôssemos um índio, ao mesmo tempo vigilante e montado a cavalo, inclinando-nos contra o vento, continuando palpitantes a agitar-nos sobre o solo trepidante até abandonarmos as esporas pois delas não precisávamos; largando as rédeas, porquanto não eram necessárias; e mal percebêssemos que a terra à frente já estava despojada de vegetação, o pescoço e a cabeça do cavalo já teriam desaparecido...

[Franz Kafka, A Colônia Penal, Nova Época Editora, tradução de Syomara Cajado]

 

105. Francisco: Algo a ver com centauros?!

SF: O senhor acha pouco?! Um índio, de ar-livre; o cavalo ali, pulsante. O índio em cima — montado e vigilante — que, de tão integral, melhor hifenizá-lo: montado-e-vigilante, índio. Fremem ambos, cavalo e índio. Chispam, inexplicáveis, contra o vento. Inclinam-se contra o horizonte. O chão estremece. Contudo, o chão está ali, bem quietinho. [Quem estremece, lá na planície terrível — um dia poderá estremecer de verdade —, é a Falha de Santo André, línguas de fogo de dentro da Terra. Há estupendas e terríveis profecias, o Big One!] Quem, pois, estremece quando passa um índio trajado de cavalo? Quem estiver a vê-lo, é claro! O estremecimento é de quem olha. Nem precisa "ouvir" nada, que dá para sentir perfeitamente na caixa do peito. E, por favor, nunca permaneça próximo por demais de uma parelha de índio e cavalo, ambos em disparada! Ainda que numa distância segura das patas dos animais, que o de cima também se transforma em patas!

 

106. Francisco: O tremor?

SF: Isto mesmo! Há o tremor para quem está em cima, para quem está embaixo, cavalo e cavaleiro, agora em peça única. Ambos sabem que o planeta inteiro treme. Pulsam. Indague dos outros cavalos, que, ao frêmito da dupla, retesam as crinas. Indague das feras do dia. Atestarão que sim. Pois agora tudo tremido, cavalo e cavaleiro, tal como ar que também treme no pingo do meio dia neste calorão daqui, sertão do Ceará. Aqueles matinhos do chão vão-se sumindo à velocidade dos olhos de quem olha de cima, cavalo e cavaleiro, se é que olham, que a velocidade é tanta...! Nem dá tempo a nada! Riscos... só riscos, pedras, paus, matos, buracos, saliências, umbigos. A terra... Subsumem-se coisas dantes, ao veloz! Oblíquos. Rédeas? Quem falou em rédeas?! Esporas? Para quê?! E, num cresceeeendo... endo... moendo... endo...! Pronto. Sumiu.

 

107. Francisco: Um animal, uma coisa mágica?

SF: É mágico, sim! Havia, por debaixo do pele-vermelha, um animal inteiro, o antigo cavalo, agora um cavalo em «ex», algo retirado daquele cavalo primitivo que estava ali sob o índio, ambos até há pouco tão calmos. A cabeça e seu pescoço, do cavalo, súbito, são apenas cabeça e pescoço do pele-vermelha. Se esticar a têmpera para mais um pouco, daquela nova massa, cavalo e cavaleiro, só um clarão ao infinito, varando o vermelho da planície estonteada. Um frio na cara, as pernas tremendo... Se romperem vivos do outro lado. Ambos! O animal há de ser contido, senão o risco de morte. O cavaleiro. Também!

 

108. Francisco: Há ferramentas? Comandos?

SF: Comandos? Tudo no âmbito da pré-linguagem. Interjectivos. Palavras curtas, que nem palavras são, com a força porém de imprecação de longo alcance, às orelhas do animal, no ponto justo. Com os joelhos, aliás; com todo o corpo; aliás, com a vontade, só isto: vontade! Mas o cavalo também está danado para correr, louco por uma corrida! Estilhaçando os cascos. Um joy stick, apenas uma manopla imaginária, tão-só de dentro, como quem joga no olhar. É coisa do conhecimento secreto. Ela jogava no olhar. E meus olhos se consumiam ao seu olhar. Domava-os aos seus olhos.

 

109. Francisco: Orelhas? Conhecimento secreto? O senhor falou antes que os eqüinos correm de lado?

SF: Secreto, sim, mas não há segredo algum. Apenas o intuitivo. A educação é pela pedra, disse o poeta, mas é pelo cavalo, digo eu, que passa o domínio do humano. Há um intenso jogo de orelhas. Quando murchas, saia de perto, é coice, é salto, é estranheza. As orelhas estão direcionadas à frente e em pé, em dupla ou alternadas. O domador tem que jogar o som lá na frente, no momento em que as orelhas apontam para frente, de modo que o som não venha de trás, como se fosse a fera a perseguir o animal. Claro que isto o senhor não vai ler em nenhum manual, nem mesmo perguntando aos melhores cavaleiros. Por sobre os cavalos também: há um momento de falar, há um momento de silêncios. Ritmos. A mão. Você, em cima do cavalo, é quem dá-lhe as ordem, mas ordens hão de vir de frente, e não de trás. Como seria possível ordens pela frente, se você, no lombo do animal, está atrás dos ouvidos da montaria? Aí é que está o passe de mágica: as palavras são lançadas à frente num ângulo de grau exato, de modo que o cavalo, à medida que corre, vá colhendo-as... e... quanto mais corre, mais ligeiro você joga palavras novas mais adiante. Até tombarem exaustos. Senão mortos.

 

110. Francisco: E a corrida de lado, o que é?

SF: Veja, há um único bicho valente total em toda a Natureza: o cavalo montado ou o homem a cavalo, tanto faz, que são apenas um bicho único. No estado selvagem, o cavalo é um bicho reconhecidamente medroso. O cavalo é animal de presa, de fuga, o oposto do predador, a onça, o tigre, o leão, a malta de lobos. Milhares de vezes por dia, o cavalo, quando pasteja na campina, levanta a cabeça a vigiar contra os predadores. Pronto para disparar. Na baia, não. Ele confia. Da mesma forma, ele corre quando solto de sua parelha, o Homem: a cabeça se alterna à esquerda e à direita, por baixo das pernas e por cima do lombo, a olhar de lado e para trás. Veja como correm:

Os poldros soltos — retesando as curvas, —
Ao galope agitando as longas crinas,
Rasgam alegres — relinchando aos ventos —

[Castro Alves, O São Francisco, in A Cachoeira de Paulo Afonso]

 

111. Francisco: A valentia do cavalo, fale sobre ela.

SF: Do cavalo, não! Nem do homem. Veja o Blake, este mágico monumental, William Blake, o que tem ele a dizer sobre a coragem do cavalo-e-cavaleiro:

 

William Blake, UK, Death pale horse

 

112. Francisco: Um quadro assombroso! Diga mais sobre a valentia do cavalo.

SF: Por favor, volto a repetir, do cavalo, não! Você já viu uma tourada a cavalo? Num certo texto, a justaposição da mão do artífice à pedra, que até parece estaria eu a falar de Michelangelo:

 

[...] trazia ele no gesto o gesto;
à eloqüência de sua mão de pedra
a pedra se entregava — 
[Os Cantares de Pulso, in Salomão]

 

Assim esta dupla: homem e cavalo; cavalo e homem. Ninguém pode dizer que o cavalo do quadro de Blake esteja com medo. Nem o cavaleiro! Ele está de braços abertos. Rédeas? Para quê? Na tourada a cavalo, o cavalo enfrenta o touro no mais absoluto destemor. O cavalo, um bicho reconhecidamente medroso, mas, se de parelha com o Homem, transforma-se na "máquina". O Homem, tão miúdo, por sua vez, ganha um porte de monumento! Veja agora em Benjamin West. É certo: cavalo-e-cavaleiro não tem medo de nada. As feras selvagens fogem do fogo. O cão, dos estampidos; o homem, ele mesmo, tem medo de qualquer coisa, até de fantasmas, vide os guardas do príncipe Hamlet. Nem se diga que cavalo e cavaleiro, de Blake e West, quadros do mesmo nome [Death on a pale horse], seriam do 4º Selo [apocalipse 6, 7-8]. Medo de que haveriam eles de ter?! Não! Medo nenhum, veja!

Benjamin West, USA, Death pale horse

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, The Knight at the Crossroads

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113. Francisco: Na modernidade, o que teria de proveito?

SF: É um jogo mortal. O cavalo pode matar. Coice, queda, brutalidades. Também pode morrer. Um campo de violência, mas, domador verdadeiro jamais espancará o animal. Há uma linguagem secreta. A viagem quase impossível, a aquisição de um domínio: Não espancarás! Moisés espancou.

 

114. Francisco: Moisés?

SF: Equitação, melhor que fosse curricular. A patente maior: domador de cavalos! Sim, Moisés! O forte é perceber que pode e deve espancar, mas não espanca; que o remédio mais rápido e eficiente é espancar, mas não espanca; que sabe e pode torturar, mas não tortura. Não espancarás! A pedra. O deserto. Água. Sede! A vara. Pafo-pafo-pafo! Moisés a espancar! Bastava o toque, a pedra ter-lhe-ia aplacado a sede do mesmo jeito. Veja, toda a pregação daquele filósofo de grandes bigodes, ainda que ele diga que não, leva ao espancamento. Quando o presenciou real e autoritário, agarrou-se com o cavalo. Aos gritos, aos berros, ao pranto. Imaginemo-lo em Auschwitz-Bikernau!? Louco! Estava louco. Irremediavelmente louco. O caminho possível é o da misericórdia. O Homem é infinitamente maior que o cavalo. O cavalo é infinitamente maior que o Homem. Ambos em misericórdia. Não espancarás. Precisamos dizer isto, como um segredo, aos jovens.

 

 

 

 

Dos Leitores

 

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Death on a pale horse*

William Blake, Death on a Pale Horse

William Blake,

UK, 1727-1957

 

Death on a pale horse*

Benjamin West, Death on a Pale Horse

Benjamin West,

USA, 1738-1820

 

* Death on a pale horse:

And when he had opened the fourth seal, I heard the voice of the fourth beast say, Come and see. And I looked, and behold a pale horse: and his name that sat on him was Death, and Hell followed with him. And power was given unto them over the fourth part of the earth, to kill with sword, and with hunger, and with death, and with the beasts of the earth. [King James, Revelation, 6, 7-8.]

 

* Death on a pale horse:

 

*Death on a pale horse:

Quando abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto Ser vivo que dizia: «Vem!» Vi aparecer um cavalo esverdeado. Seu montador chamava-se "a Morte" e o Hades o acompanhava. Foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra, para que exterminasse pela espada, pela fome, pela peste e pelas feras da terra. [Bíblia de Jerusalém, Ap 6, 7-8.]

 

** Pallidus: a maioria das traduções lusas dá "esverdeado".Flor do algodoeiro Mas não existem cavalos esverdeados! Repare em Blake e em West: os cavalos respectivos são o que chamamos aqui no sertão: «ruços», nem brancos, nem pretos; pardos, pardacentos, melados. Dizemos por cá: «pálido como a flor do algodão». De fato, sobremodo o cavalo central do quadro de West, muito mais para o amarelo-pálido do que para o esverdeado. Assinado: Francisco. Aliás, SF

 

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Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The knight at the crossroads

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads