Uma pequena lição de cavalaria
Fragmento
de um questionário:
Francisco, personagem de um poema
longo, Psi, a
Penúltima, sai de dentro do poema e vem conversar
com o autor, um certo SF, que também é
Francisco. |
99.
Francisco: Domar cavalos, o senhor tem certeza, é
assim mesmo, tão importante? Há uma impropriedade nesta resposta de
há pouco (nº. 89), aqui está: Só os eqüinos correm assim,
quando soltos. [clique para conferir] Ora, se o cavalo estiver preso, como poderá
correr? Logo, a expressão "quando soltos" é descuidada.
SF: Veja: O bicho correndo de lado, olhando para
trás, ora de um lado, ora do outro. É bonito. Era de lua, no
descampado, cheia. No trote ligeiro, a cara de banda, rasgando o
vento, o jegue garanhão. Só os eqüinos correm assim, quando soltos. A expressão "quando
soltos", em se tratando dos eqüinos, há de ser entendida como em
estado de Natureza, porque há duas modalidades em que não estão
soltos mas continuarão correndo do mesmo jeito, ou até mais. Sem
balançar a cabeça para os lados, nem retesar nas curvas. Na
primeira, o cavalo está preso ao rodete, que é aquele moirão
central, com uma corda de bom tamanho, o domador ali, controlando,
incentivando, freando, aprumando. O cavalo correndo, trotando,
chouteando os 360 graus do transferidor inteiro, sem parar. Evidente
que ele não está solto, porque preso a um cabresto de cabo longo.
100.
Francisco: Cabresto de cabo longo?
SF: Isto
mesmo, preso, uma operação de rara sensibilidade! O cabresto está
amarrado, é certo, uma volta livre em torno do moirão. Mas, entre o
torno-moirão e a cara do cavalo há um um pulso-mão. Aliás, uma mão
de pulso, que é de leve, extremamente leve, mas, ao mesmo tempo,
excessivamente forte. Forte e gentil, anote aí, por favor. Gentil e
forte! Entenda, se for possível, uma coisa quente e fria, no mesmo
tacho, ao mesmo lance. A mão do domador. Leve, levíssima sobre o
relho, um relho que pode bater mas não bate; um cabresto apenas.
101.
Francisco: O senhor exagera! De onde essa mística? Não
seria um cabresto comum?
SF: Apenas um cabresto comum, é certo. Melhor que
seja uma corda de cabelos, artesanal; o domador, ele mesmo
fazendo-a. Enquanto colhe e recolhe pêlos, crinas, rabos e cabelos
mil, ele, secreto, já amansa, em mão e gesto, todos os potros do
mundo. Pastam inteiros os cavalos selvagens naquele pêlo-couro, que
não é couro, nem é pêlo; é coro, é canto, um cantochão; afago, voz e
maciez. O cavalo correrá, e muito, mas não olhará para trás nem
murchará as orelhas... Desde quê... a pedra, o sal, a
estátua.
102. Francisco:
Desde que o quê? Olhar para trás? Orelhas? Haveria uma a
outra hipótese em que o cavalo estaria a correr, porém
preso?
SF: Muito simples! É quando ele, exemplo único em
toda Natureza, se funde com o Homem num único animal. Claro que ele
não está solto, posto que sobre si há um outro bicho, o Homem... mas
os dois são um só, o centauro!
103. Francisco:
Isto é apenas uma velha lenda indígena, os povos do
México, que não conheciam o cavalo e, quando pela primeira vez o
viram, imaginaram seria um só animal. Assombraram-se e perderam a
guerra para os espanhóis.
SF: É um mito antigo, muito real porém. E, por isto
mesmo, válido. O mito do centauro, quem o entendeu inteiro foi o
poeta Franz Kafka. Já o filósofo Thomas Hobbes perdeu uma bela
oportunidade de exemplificar o pacto social em cima do
cavalo.
104. Francisco:
Devagar, senhor! Não misture as coisas, por favor. Kafka,
poeta?! Contista e romancista!? Paciência! Poeta, não! Nunca foi!
Hobbes, a comandar uma cavalgada no pacto social?!
SF: Poeta, sim! Cuidemos de Kafka, em primeiro.
Quando a poesia é verdadeira, poucos percebem-na. Tomemos este poema
que ele apresenta como um conto, que também é conto, mas, e
sobretudo, poesia. Alta Poesia:
O desejo de tornar-se um
pele-vermelha
Se ao
menos fôssemos um índio, ao mesmo tempo vigilante e montado a
cavalo, inclinando-nos contra o vento, continuando palpitantes
a agitar-nos sobre o solo trepidante até abandonarmos as
esporas pois delas não precisávamos; largando as rédeas,
porquanto não eram necessárias; e mal percebêssemos que a
terra à frente já estava despojada de vegetação, o pescoço e a
cabeça do cavalo já teriam desaparecido...
[Franz Kafka, A Colônia Penal, Nova Época
Editora, tradução de Syomara Cajado]
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105. Francisco:
Algo a ver com centauros?!
SF: O senhor acha pouco?! Um índio, de ar-livre; o
cavalo ali, pulsante. O índio em cima — montado e vigilante — que,
de tão integral, melhor hifenizá-lo: montado-e-vigilante, índio.
Fremem ambos, cavalo e índio. Chispam, inexplicáveis, contra o
vento. Inclinam-se contra o horizonte. O chão estremece. Contudo, o
chão está ali, bem quietinho. [Quem estremece, lá na planície
terrível — um dia poderá estremecer de verdade —, é a Falha de Santo
André, línguas de fogo de dentro da Terra. Há estupendas e terríveis
profecias, o Big One!] Quem, pois, estremece quando passa um
índio trajado de cavalo? Quem estiver a vê-lo, é claro! O
estremecimento é de quem olha. Nem precisa "ouvir" nada, que dá para
sentir perfeitamente na caixa do peito. E, por favor, nunca
permaneça próximo por demais de uma parelha de índio e cavalo, ambos
em disparada! Ainda que numa distância segura das patas dos animais,
que o de cima também se transforma em patas!
106. Francisco:
O tremor?
SF: Isto mesmo! Há o tremor para quem está em cima,
para quem está embaixo, cavalo e cavaleiro, agora em peça única.
Ambos sabem que o planeta inteiro treme. Pulsam. Indague dos outros
cavalos, que, ao frêmito da dupla, retesam as crinas. Indague das
feras do dia. Atestarão que sim. Pois agora tudo tremido, cavalo e
cavaleiro, tal como ar que também treme no pingo do meio dia neste
calorão daqui, sertão do Ceará. Aqueles matinhos do chão vão-se
sumindo à velocidade dos olhos de quem olha de cima, cavalo e
cavaleiro, se é que olham, que a velocidade é tanta...! Nem dá tempo
a nada! Riscos... só riscos, pedras, paus, matos, buracos,
saliências, umbigos. A terra... Subsumem-se coisas dantes, ao veloz!
Oblíquos. Rédeas? Quem falou em rédeas?! Esporas? Para quê?! E, num
cresceeeendo... endo... moendo... endo...! Pronto.
Sumiu.
107. Francisco:
Um animal, uma coisa mágica?
SF: É mágico,
sim! Havia, por debaixo do pele-vermelha, um animal inteiro, o
antigo cavalo, agora um cavalo em «ex», algo retirado daquele cavalo
primitivo que estava ali sob o índio, ambos até há pouco tão calmos.
A cabeça e seu pescoço, do cavalo, súbito, são apenas cabeça e
pescoço do pele-vermelha. Se esticar a têmpera para mais um pouco,
daquela nova massa, cavalo e cavaleiro, só um clarão ao infinito,
varando o vermelho da planície estonteada. Um frio na cara, as
pernas tremendo... Se romperem vivos do outro lado. Ambos! O animal
há de ser contido, senão o risco de morte. O cavaleiro. Também!
108. Francisco:
Há ferramentas? Comandos?
SF: Comandos?
Tudo no âmbito da pré-linguagem. Interjectivos. Palavras curtas, que
nem palavras são, com a força porém de imprecação de longo alcance,
às orelhas do animal, no ponto justo. Com os joelhos, aliás; com
todo o corpo; aliás, com a vontade, só isto: vontade! Mas o cavalo
também está danado para correr, louco por uma corrida! Estilhaçando
os cascos. Um joy stick, apenas uma manopla imaginária,
tão-só de dentro, como quem joga no olhar. É coisa do conhecimento
secreto. Ela jogava no olhar. E meus olhos se consumiam ao
seu olhar. Domava-os aos seus olhos.
109. Francisco:
Orelhas? Conhecimento secreto? O senhor falou antes que
os eqüinos correm de lado?
SF: Secreto,
sim, mas não há segredo algum. Apenas o intuitivo. A educação é pela
pedra, disse o poeta, mas é pelo cavalo, digo eu, que passa o
domínio do humano. Há um intenso jogo de orelhas. Quando
murchas, saia de perto, é coice, é salto, é estranheza. As orelhas
estão direcionadas à frente e em pé, em dupla ou alternadas. O
domador tem que jogar o som lá na frente, no momento em que as
orelhas apontam para frente, de modo que o som não venha de trás,
como se fosse a fera a perseguir o animal. Claro que isto o senhor
não vai ler em nenhum manual, nem mesmo perguntando aos melhores
cavaleiros. Por sobre os cavalos também: há um momento de falar, há
um momento de silêncios. Ritmos. A mão. Você, em cima do cavalo, é
quem dá-lhe as ordem, mas ordens hão de vir de frente, e não de
trás. Como seria possível ordens pela frente, se você, no lombo do
animal, está atrás dos ouvidos da montaria? Aí é que está o passe de
mágica: as palavras são lançadas à frente num ângulo de grau exato,
de modo que o cavalo, à medida que corre, vá colhendo-as... e...
quanto mais corre, mais ligeiro você joga palavras novas mais
adiante. Até tombarem exaustos. Senão mortos.
110. Francisco:
E a corrida de lado, o que é?
SF: Veja, há
um único bicho valente total em toda a Natureza: o cavalo montado ou
o homem a cavalo, tanto faz, que são apenas um bicho único. No
estado selvagem, o cavalo é um bicho reconhecidamente medroso. O
cavalo é animal de presa, de fuga, o oposto do predador, a onça, o
tigre, o leão, a malta de lobos. Milhares de vezes por dia, o
cavalo, quando pasteja na campina, levanta a cabeça a vigiar contra
os predadores. Pronto para disparar. Na baia, não. Ele confia. Da
mesma forma, ele corre quando solto de sua parelha, o Homem: a
cabeça se alterna à esquerda e à direita, por baixo das pernas e por
cima do lombo, a olhar de lado e para trás. Veja como
correm:
Os poldros soltos — retesando as curvas,
— Ao galope agitando as longas crinas, Rasgam alegres —
relinchando aos ventos —
[Castro Alves, O São Francisco, in A
Cachoeira de Paulo
Afonso] |
111. Francisco:
A valentia do cavalo, fale sobre ela.
SF: Do cavalo,
não! Nem do homem. Veja o Blake, este mágico monumental, William
Blake, o que tem ele a dizer sobre a coragem do
cavalo-e-cavaleiro:
112. Francisco:
Um quadro assombroso! Diga mais sobre a valentia do
cavalo.
SF: Por favor,
volto a repetir, do cavalo, não! Você já viu uma tourada a cavalo?
Num certo texto, a justaposição da mão do artífice à pedra, que até
parece estaria eu a falar de Michelangelo:
[...] trazia ele
no gesto o gesto; à eloqüência de sua mão de pedra a
pedra se entregava — [Os Cantares de Pulso, in
Salomão] |
Assim esta dupla: homem e
cavalo; cavalo e homem. Ninguém pode dizer que o cavalo do quadro de
Blake esteja com medo. Nem o cavaleiro! Ele está de braços abertos.
Rédeas? Para quê? Na tourada a cavalo, o cavalo enfrenta o touro no
mais absoluto destemor. O cavalo, um bicho reconhecidamente medroso,
mas, se de parelha com o Homem, transforma-se na "máquina". O Homem,
tão miúdo, por sua vez, ganha um porte de monumento! Veja agora em
Benjamin West. É certo: cavalo-e-cavaleiro não tem medo de nada. As
feras selvagens fogem do fogo. O cão, dos estampidos; o homem, ele
mesmo, tem medo de qualquer coisa, até de fantasmas, vide os guardas
do príncipe Hamlet. Nem se diga que cavalo e cavaleiro, de Blake e
West, quadros do mesmo nome [Death on a pale horse], seriam do 4º Selo [apocalipse 6,
7-8]. Medo de que haveriam eles de ter?! Não! Medo nenhum, veja! |