Mantovanni Colares
Pendões líricos
Espero que o título desta crônica não
afaste principalmente os mais jovens, que na indesejada
possibilidade de retorno à memória colegial, venham a concluir que o
título esteja relacionado com nosso Hino à bandeira nacional, aquele
dos versos de Bilac: “Salve, lindo pendão da esperança/ Salve,
símbolo augusto da paz!”
Embora o substantivo masculino
“pendão” signifique bandeira, não vou me referir aqui ao
“auriverde pendão de minha terra” a que aludia Castro Alves. Quero
falar de pendão no sentido de pendurar, suspender algo em
lugar elevado ou não. Isso porque, acreditem, há muitas coisas que
penduraram em versos notáveis de nossa música popular brasileira, e
às vezes é preciso não somente escutar as músicas como também
ouvi-las.
Por exemplo. Muito se fala no famoso
verso de Orestes Barbosa “Tu pisavas os astros, distraída”, de “Chão
de Estrelas”. Manuel Bandeira chegou a escolher esse verso como
sendo o mais lindo que já conhecera. A figura desenhada pela poesia
é, de fato, magnífica. Só mesmo um romântico inveterado para criar a
fantasia do luar invadindo o interior de um barraco, por conta do
teto de zinco cheio de furos, a projetar no chão da humilde morada
as estrelas artificiais (A porta do barraco era sem trinco/ Mas a
lua furando nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão), e a
imagem da amada que pisava os astros, totalmente distraída, não só
em relação ao chão de estrelas que certamente ali se formava para
homenageá-la, mas sobretudo sem saber que a ventura desta vida
reside no encontro entre a mulher, a poesia e a música; ou como diz
a composição musical, “a cabrocha, o luar e o violão”, na visão
boêmia do tripé da existência mundana.
Poucos se dão conta, porém, que essa
obra-prima de nosso cancioneiro contém uma passagem tão ou mais
inteligente do que a amada pisoteando tantos astros luminosos a seus
pés; e que diz respeito ao pendurar. Ao descrever o morro do
Salgueiro, o morador que encarava sua simplória vida como um palco
iluminado, recorda o bom tempo em que ele e a amada viveram juntos,
e as roupas dependuradas na corda atestavam uma festa de trapos
coloridos, semelhantes às bandeiras, mostrando a todos que nos
pobres morros é sempre feriado nacional (Nossas roupas comuns
dependuradas/ Na corda qual bandeiras agitadas/ Pareciam um estranho
festival/ Festa dos nossos trapos coloridos/A mostrar que nos morros
mal vestidos/ É sempre feriado nacional).
Quadro Varal de Roupas, de J. Correa
A construção poética é de uma
inteligência sem tamanho. E só podemos perceber o alcance do
simbolismo dessa metáfora ao lembrarmos que nos dias de feriado
nacional, a bandeira do Brasil deve ser hasteada, desde quando se
instaurou a República neste país tropical que dizem ser abençoado
por Deus, pois o Decreto 98.068, de 18 de agosto de 1989, afirma que
nos dias de festa as repartições públicas devem hastear a bandeira
nacional. Pronto. Eis o elo que faltava, para se entender a
comparação dos trapos coloridos no morro com a impressão de que era
feriado nacional. No morro as bandeiras são hasteadas diariamente,
num festival estranho, porém magnífico, de roupas dependuradas do
lado de fora dos barracos, enquanto do lado de dentro é possível até
mesmo se pisar em estrelas.
E por falar em morro e em bandeiras,
quando dois gênios musicais – Chico Buarque e Tom Jobim – quiseram
atender ao chamado da Estação Primeira de Mangueira e levar o piano
àquele paraíso verde-e-rosa, pediram licença para entoar uma música
que não levantava poeira, mas que poderia até mesmo entrar no
barracão, que na visão carnavalesca é o local de preparação da festa
maior do samba, e também o canto do repouso dos foliões, pois o
barracão é o lugar “Onde a cabrocha pendura a saia/ No amanhecer da
quarta-feira” (música “Piano na Mangueira”).
Novamente nos deparamos com o
pendurar, no sentido lírico, extraído por grandes poetas que
sempre ergueram a bandeira da boa música popular brasileira. E nesse
caso do “Piano na Mangueira” é a saia pendurada dentro do barracão –
e não fora, como em “Chão de Estrelas” –, que dá o sentido todo
especial do vestuário como algo inanimado e que paradoxalmente
fornece um sentido de vida à canção.
A meu ver, porém, os versos mais
geniais que utilizam o simbolismo da roupa que, pendurada, transmite
a mensagem poética, estão na enebriante “Os Seus Botões”, de Erasmo
e Roberto Carlos.
Pode-se até não gostar da dupla de
compositores – há quem ainda não tenha percebido a importância de
Erasmo e Roberto na construção da MPB – mas ao ouvir essa música, e
idealizando-se todo o cenário construído pelos notáveis artistas,
duvido que um arrepio não se manifeste no decorrer da viagem
musical.
É só imaginar a cena do sôfrego amante
(Os botões da blusa/ Que você usava/ E meio confusa, Desabotoava/
Iam pouco a pouco, me deixando ver/ No meio de tudo, um pouco de
você), e sobre os lençóis macios as bocas murmurando palavras de
amor, enquanto as roupas se mostravam espalhadas pelo chão. O toque
de inspiração maior, contudo, está por vir. Esses são os versos que
dão toda a magnitude de como se pode utilizar o particípio do verbo
pendurar com toda a maestria lírica: “Chovia lá fora, e a
capa pendurada/ Assistia tudo/ E não dizia nada”.
É impossível não se deixar influenciar
pela construção lírica, a nos causar espanto de como uma capa pode
assistir tudo e não dizer nada. Ela – a capa – teria agido assim,
por respeito diante dos amantes? Ou porque estava como voyeur,
espiando silenciosamente a cena romântica? Seu silêncio se
justificava por conta do espanto no cenário perfeito do amor
transformado em gestos? Não, claro que não. Só tardiamente nos
apercebemos que a capa não dizia nada porque ela é um ser inanimado,
e seria impossível um mero pedaço de produto industrial se
expressar.
Eis a genialidade dos versos. Eles
conduzem-nos a um estado surreal; chegamos a considerar que o
silêncio da capa é algo destoante dos acontecimentos, dentro de uma
possibilidade fantasiosa de que o vestuário poderia até mesmo
interagir com os amantes.
Lembremo-nos, porém, que enquanto toda
a roupa do casal estava ao chão, a capa era a única pendurada,
ou seja, ocupava posição privilegiada quanto às demais peças dos
amantes. E de fato ela assistia tudo. E não dizia nada. Mas deveria.
Deveria soltar um grito de espanto diante de tamanho ardor revelado
ali, à sua frente. Ainda assim, não dizendo nada, aquela capa se
transformou, silenciosa e definitivamente, na bandeira maior do amor
indescritível.
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