Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Mantovanni Colares


 

Um furacão chamado Lígia ou “três
versões para uma só musa”


 

Ao andar pela primeira vez no calçadão de Copacabana, fiquei quase estático diante das belezas naturais e animais que só o Rio de Janeiro possui. Ali compreendi que a inspiração para Vinícius e Jobim esculpirem musicalmente a “Garota de Ipanema” jamais poderia ter sido noutro lugar deste vasto mundo, pois o andar cheio de graça daquelas meninas que vêm e que passam, só mesmo na cidade maravilhosa.

Todavia, a memória sentimental da música “Lígia”, de Tom Jobim, me impediu de ficar paralisado naquele calçadão, pois imediatamente comecei a cantarolar os versos “andar pela praia até o Leblon”, e parece que o dia ficou mais límpido com essa singela homenagem àquele que já foi chamado de maestro soberano por outro não menos soberano, o Chico Buarque; daí porque andar até o Leblon era questão de honra naquele dia cheio de luz.

E assim foi. Cantei a melodia “Lígia” que tanto embalara minhas jovens tardes de domingo a domingo ao som de Chico Buarque. Sim, porque a primeira referência dessa mais que bela cantiga era a versão gravada pelo Chico no então elepê “Chico Canta”. Desde essa época encantei-me por essa musa chamada Lígia, afinal ela inspirou o Tom Jobim a dedilhar no piano uma de suas mais belas melodias, carregada de um frêmito desejo.

Um dos aspectos mais inteligentes contidos na letra dessa cantiga é a negação do amor, pois de início se pensa que ele realmente está negando a paixão pela tal Lígia (“eu nunca sonhei com você”), mas logo se descobre que é uma negação infantil, de um frustrado que não consegue exprimir sua louca volúpia pelos olhos morenos que “metem mais medo que um raio de sol”. E a mentira se espalha nas afirmações nada coerentes. Afinal, como entender alguém que não goste de chuva e nem goste de sol? E que muito menos não vai a Ipanema? Eis aí a tragédia do tímido apaixonado.

Ainda assim, a música “Lígia” continua negando a paixão. “E quando eu lhe telefonei, desliguei, foi engano, seu nome eu não sei”. Claro, ninguém sabe o nome da musa, afinal ele só repete “Lígia” por seis vezes ao longo da canção...

O mais incrível, porém, ainda estar por vir. Quando ele diz que nunca quis ter a Lígia ao seu lado, num fim de semana, com um chope gelado em Copacabana, aí é demais. E não querer andar pela praia até o Leblon, então! Bem, quando eu estive nesse cenário desenhado pela pródiga natureza, passei a entender melhor a força da música.

Como se não bastasse a formidável construção dos versos musicados, descobri mais tarde que há outras duas versões da letra, escritas pelo próprio Jobim, mas que não se sabe ao certo do porquê de três mudanças na letra da música. Como a versão cantada pelo Chico Buarque foi a primeira que ouvi, chamo-a de primeira versão. E é a partir dela que assinalo as mudanças nas demais versões, gravadas tanto pelo próprio Tom Jobim, como por João Gilberto.

A segunda versão é a dedilhada pelo mestre João Gilberto – aquele que praticamente inventou a bossa nova, com a batida revolucionária de seu violão, resquício das lembranças ribeirinhas de sua meninice, onde observava o andar rebolado das lavadeiras em Juazeiro da Bahia – e o que se percebe nessa versão é uma letra mais direta, menos lírica, porque não há o intenso jogo de negação/afirmação da letra da versão primeira. Se bem que nessa nova faceta da música há uma tirada sensacional, quando Tom Jobim diz que jamais deveria se casar com a Lígia, pois fatalmente iria sofrer tanta dor pra no fim perder a musa. Um receio que só quem de fato a conheceu deve entender esse medo tão fatalista.

Há uma terceira versão, registrada em show de voz e piano com o maestro Jobim, realizado nas Minas Gerais, no ano de 1981, onde os olhos da musa já não são morenos, e sim castanhos. Nessa versão, ao invés de cantar “e quando você me envolver / nos seus braços serenos / eu vou me render”, ele diz que a Lígia tem modos estranhos de se aproximar (“você se aproxima de mim / com esses modos estranhos / eu digo que sim”). Infelizmente nunca saberemos a que modos o Antonio Brasileiro quis de fato se referir; mas dá para imaginar.

É um exercício interessante ouvir as três versões (Chico Canta, 1974, Philips; João Gilberto in Tokyo, 2003, Universal; e Antonio Carlos Jobim em Minas ao vivo, 2004, Biscoito Fino), porque assim se tem uma vaga idéia de como essa musa chamada Lígia não só inspirou uma belíssima música, como também foi capaz de render três versões sobre a mesma melodia. A mulher certamente era um furacão.

Quando eu estiver novamente caminhando pela praia de Copacabana, até o Leblon, será irresistível andar lentamente, a tempo de poder cantar todas as versões de “Lígia”, pois é mais que necessário relembrar canções como essa, de um gênio chamado Tom Jobim. Até porque essa música, além de ter o fascínio das boas cantigas, carrega em suas entranhas um inconfundível cheiro de maresia.
 

 

 

 

 

01.08.2005