Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Mantovanni Colares


 

As cores, o tempo e a memória

 

O que de imediato chama a atenção no livro “O Camaleão no Jardim”, de Mirian de Carvalho, é o fato de que a autora nos convoca a sentir, no âmbito das emoções, a sua intimidade. Afinal, o camaleão está no jardim; e não na praça. A propósito, existe um trabalho notável de um filósofo pernambucano (Nelson Saldanha, O jardim e a praça, Porto Alegre, Sergio Fabris, 1986), que nos mostra a diferença entre o jardim (arquétipo do ambiente privado) e a praça (símbolo do que é público). E foi pensando nesse trabalho de filosofia que me dei conta de que é no jardim que a poeta sutilmente nos leva a percorrer nossas emoções.

Mirian de Carvalho nos revela a fixação n’alguns temas, porque é de praxe que os escritores destaquem – ainda que inconscientemente – ao longo de seus pensamentos aqueles pontos que lhes são paradigmáticos. No caso, tem-se um tripé de referência praticamente ao longo das poesias de “O Camaleão no Jardim”; e essa tripartite fixação é centrada nas cores, no tempo e na memória. Esses elementos permeiam explícita e implicitamente a viagem na doce porém cortante poesia mirianiana. É nas primeiras linhas de Azul Incontido que a poeta nos deixa essa pista (Dos antepassados não herdei jóias. Herdei/ essa loucura que me faz beber a vida até/ o último verso).

Um ponto também se revela particularmente curioso. Alguns trechos de poesia são entrecortados por letras em itálico. Ainda não descobri o sentido dessa mudança de fonte. Talvez se queira desnudar um pensamento da poeta, como se fora uma indiscreta revelação do seu íntimo na divagação do tema. Quem sabe se os versos deitados na escrita guardam alguma mensagem subliminar de erotismo, como um suspiro na horizontal posição das letras. Ou então, penso cá na minha humilde condição de poeta às avessas – que é o que faz o leitor –, a autora pretende dar uma forma de camaleão às próprias letras, fazendo-as molde da emoção no texto. Fica o mistério. E talvez o mistério não deva ser desfeito, como todo bom enigma.

Em certos momentos a poeta nos evoca uma sensação de erotismo que vai além de nossos dissimulados fingimentos, como se não estivéssemos atentos à sensualidade que brota de toda e qualquer poesia. Assim ela o faz em Vermelho (Lambendo a imagem desfeita/ ele ergue imenso falo. E a tarde/ o amansa às horas de lascívia). E no final da leitura nos damos conta de nossa face rubra, corada pelo despertar súbito do Eros; e então percebemos que acabamos de cair na armadilha da poeta: ao metamorfosear nossa face na encarnada cor, nos confirmamos camaleões, camaleões de fato.

Logo em seguida a candura de versos de Azul nos faz remontar ao útero (Ele veio do mar/ Às origens retornará. Azul), e nos dá a idéia de que essa linguagem binária da poeta (paz versus angústia) será o traçado do livro, exatamente como um balanço das sensações das quais somos meros reféns. Uma sinuosidade de sensações, como nos lembra a própria Mirian em Margens (Os lábios? Eu os quero dizentes/ de sinuosas palavras./ E percursos).

Há momentos de intensa reflexão. O freudiano Unicórnio e o angustiante Fênix são exemplos disso; esses poemas nos deixa com aquela sensação de que a poeta almeja a constante ressurreição de seus mais profundos sentimentos, represados pela vantajosa/desvantajosa possibilidade de se tornar camaleão no jardim das circunstâncias. É como ela arrebata na mensagem/síntese da obra que dá nome ao livro (Para sobreviver, o camaleão/ vai além das suas forças. Ressuscita/ os canteiros. Espanta os fantasmas./ Esconde-se da morte).

Ao final da cambaleante viagem por seus versos que rasgam como adagas os corações dos homens, três poesias dão o tom da advertência aos desavisados.

Em Recebendo o visitante, uma espécie de antítese da magnífica poesia A Hóspede, de Guilherme de Almeida (Não precisa bater quando chegares./ Toma a chave de ferro que encontrares/ sobre o pilar, ao lado da cancela,/e abre com ela/ a porta baixa, antiga e silenciosa), Mirian de Carvalho nos dá a exata medida dos cuidados que se há de tomar quanto a visitantes não desejados.

Na estupenda Porta-retratos – a poesia mais lírica que já me deparei em relação à moldura tantas vezes ignorada quando se fala em retratos –, a coragem de verbalizar o desprezo aos visitantes não desejáveis ou já descartados sentimentalmente, ainda que se pague o preço pele conseqüente torpor (Do Camaleão, aprendi a vertigem) eis que, nesses casos, há de se alcançar conteúdo (retrato) e forma (moldura).

E por fim, a reveladora Sapatos na Caixa, que nos mostra a quietude das lembranças guardadas (Horas depois do chá das cinco, meus/ sapatos repousam na caixa), a surpreendente aparição do camaleão até mesmo fora do jardim (Que verso é esse que me salta/ das flores estampadas na toalha,/ sonorizando-se nos talheres?), e a mensagem final (Nos canteiros, semeei aromas), onde temos a certeza de que o tripé que conduz a obra - as cores, o tempo e a memória – nos obriga a ler novamente toda a obra.

E essa nova leitura será a viagem que nos transformará em camaleão a cada investida nas letras; com a esperança de que enfim sejamos o leitor-visitante no mundo da poeta, cuja chave há de estar forjada no convidativo verso: O que for do bem – entra sem convite.

 

 

 

 

 

09.01.2006