Marcelo Pen
Romance de Wilson Bueno insinua os
"pecados" de ontem e de hoje
"O maior pecado,
depois do pecado, é a publicação do pecado", diz a epígrafe de
Machado de Assis. Mas qual o pecado presente em "Amar-te a ti nem
Sei se com Carícias", de Wilson Bueno, 55, poeta e ficcionista
paranaense, autor de bestiários e de uma novela, "Mar Paraguayo", em
que mistura português, espanhol, portunhol e guarani?
À primeira vista,
parece um romance bem-comportado, que trata do Brasil do século 19.
O título, se escandido, revela um decassílabo, o verso de dez
sílabas de que se faz um soneto. Mas o livro encerra várias camadas
de denúncia e de provocação.
Leocádio Prata, o
protagonista, é educado, culto, sedutor, mas também escravista,
pernóstico, reacionário. Segundo Bueno, o personagem representa o
século 19 brasileiro, "contraditório, cruel e alguma vez bestial",
que "não terminou, a rigor".
O lado provocador de
Bueno remete à época aguerrida do final dos anos 60 e os 70, quando
ele morou no Rio, ou ao finado "Nicolau", um dos principais
periódicos de cultura que o Brasil já teve, admirado por Paulo
Francis, Millôr e Octavio Paz, e que foi dirigido pelo autor de 1987
a 1994.
Bueno considera sua
temporada carioca uma "experiência essencial". Enquanto escrevia
"loucuras inomináveis" no jornal "Tribuna da Imprensa", viveu "tudo
o que se possa imaginar: dos derruimentos existenciais à resistência
à ditadura; todas as dunas da Gal, todo Baixo Leblon, 'sex, drugs,
and rock and roll'".
Já de "Nicolau",
ganhador de cinco prêmios, o autor guarda lembranças boas e amargas.
Desavenças com o secretário da Cultura do governo Jaime Lerner o
fizeram perder o comando do periódico. A edição subseqüente à sua
saída foi sobre a Força Expedicionária Brasileira. "Contam que Paulo
Francis devolveu seu exemplar, dizendo que enviava ao então
governador os seus escarros", afirma Bueno.
Por essa época, o
escritor já havia lançado "Mar Paraguayo", que acabou repercutindo
intensamente nas Américas.
"Amar-te a ti..."
também pressupõe uma investigação lingüística, mas, agora,
direcionada ao português de nossos ancestrais oitocentistas,
brasileiros e lusitanos. Não espanta que os livros de Bueno cuidem
da palavra. Para o autor, que julga incompetente e medíocre "o
neonaturalismo que grassa como uma praga nas letras tupiniquins",
"não há autêntica literatura sem um obsessivo trabalho com a
linguagem".
Mas atenção: a fala
castiça pode servir para achincalhar outro pecado de nossa cultura.
"O Brasil é um país de retóricos e de bacharéis, no mau sentido do
termo. Nossa elite é oca e tende a preencher os seus vazios através
da norma culta da língua, os vocábulos difíceis, as palavras
suntuosas."
Desde seu nível mais
primário, portanto, o leitor não deve tomar o romance ao pé da
letra. Supostamente escrito por Leocádio Prata, o caderno de notas
manuscritas encontrado num palacete prestes a ser demolido, no
bairro do Botafogo, pode ter sido adulterado, digamos, por Licurgo
Pontes, rival do protagonista.
Há um triângulo
amoroso, à Machado, entre Leocádio, Licurgo e Lavínia. Mas, em vez
do ciúme do primeiro pela última, o que entrevemos é um tesão
recolhido desse "mimoso e mimado" representante da elite nacional (Leocádio),
cujo avô negociava escravos e o pai transacionava "uns negócios
obscuros" na corte, pelo jovem oficial, recém-chegado da Guerra do
Paraguai (Licurgo).
O romance apresenta
muitos pontos de contato, tanto de conteúdo quanto de forma, com a
obra machadiana, mas sempre numa visada subversiva. E o leitor pode
divertir-se à procura dos possíveis paralelos. A borboleta negra de
"Memórias Póstumas de Brás Cubas", por exemplo, vira uma aranha
cinza, de "olhar inominável", com as devidas transformações de
sentido que a troca acarreta. Como afirma a crítica literária Aurora
Bernardini, trata-se de um livro que "merece ser sorvido lentamente,
como o vinho de uma colheita rara".
Do autor, a editora
Planeta pretende lançar o inédito "Cachorros do Céu", conjunto de
fábulas que recupera a linha de "Manual de Zoofilia" e "Jardim
Zoológico", em que Bueno examina a condição humana por meio de
animais, reais e imaginários.
05/06/2004 - 07h01 Folha Online - Ilustrada
Leia Wilson Bueno
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