Marcos Palacios
As torres de Abraham
Para Enric Tremps, que sabe dos Ventos
e Torres da Catalunha...
Soprava o Llevant com seus
humores úmidos alborotando o mar onde se perdia a vista de Abrahan
Llong, sentado à sombra de um carvalho à frente da casa, no maior
calor do dia, naquela tarde descansada, naquela terra de costas
bravas, onde não são as estrelas mas sim os ventos, caprichosos e
com nomes próprios e personalidades tão fortes quanto os entes
vivos, que determinam o curso da vida dos homens. E levantando os
olhos, eis que Abrahan viu três viajantes que se aproximavam. E tão
logo os viu, soube ou pensou que soube, e sabendo correu ao seu
encontro e disse ao mais velho:
-Meu Senhor, eu vos peço, se encontrei
graça a vossos olhos, não passeis sem vos deterdes. Trarei um pouco
d’água para lavar de vossos pés a poeira do caminho. Trarei um
pedaço de pão e bom vinho e vos saciareis antes de irdes mais longe.
E Abrahan apressou-se em direção a
casa, chamando por Sarah, sua mulher, e dizendo:
-Toma depressa três medidas de
farinha, da flor da farinha, amassa-as com tuas próprias mãos e
prepara pães cozidos.
Depois correu aos fundos da casa,
tomou um coelho tenro e bom, matou-o e levou-o à cozinha para ser
preparado. Tomou também tomates maduros, alhos, azeite e sal,
botifarras brancas e negras, vinho forte e de bom corpo e trazendo o
pão quente e o coelho preparado colocou tudo diante dos hóspedes.
Comeram e beberam em silêncio e se
fartaram e ao final lhe perguntaram:
-Onde está Sarah, tua mulher?
E Abrahan respondeu:
-Na casa...
O velho levantou-se, tomou seu bordão
e disse:
-Voltarei a ti no próximo ano e então
tua mulher Sarah terá um filho.
Sarah escutava, no portal da casa, e riu-se em seu íntimo, pois já
eram velhos e ela deixara de ter o que as mulheres têm.
-De que te ris, Sarah ?- perguntou o
hóspede.
-Desculpe-me se rio, senhor, mas já
somos entrados em anos, eu e meu marido. Como poderei conceber e dar
à luz agora, se em nossas primícias tal não foi a vontade de Deus?
O hóspede limitou-se a repetir:
-Voltarei a ti no próximo ano; terás,
então, um filho.
E assim aconteceu, ou assim é contado
e dado por acontecido.
Soprava o Tramontana, com seus
humores de fúria, seco e frio, fazendo bramir as águas do mar,
vergando árvores e enchendo de medo os pescadores que com suas velas
se abrigavam na pequena e protegida baía, rezando e fazendo
bruxedos, clamando aos deuses por calmaria.
E em meio à procela e aos rugidos do
Tramontana, o visitante regressou e Sarah deu à luz Isaac.
Abrahan contemplou em silêncio o bebê
em seu berço, ainda sem poder crer totalmente que tudo aquilo era
real, temeroso de que qualquer movimento ou palavra equivocada
pudesse desfazer o encantamento e levar nas pontas das asas do corvo
o júbilo que enchia seu espírito.
Retirou do berço o recém nascido,
envolveu-o delicadamente em suas mãos grandes e fortes e alçou-o
acima de sua cabeça, como numa oferenda. Bem baixinho, a princípio,
e pouco a pouco com mais e mais alento e exultação ele cantou com a
voz de seus antepassados:
“ Vossa obra é esplendor e majestade
e vossa justiça permanece para sempre.
Felizes os íntegros em vosso caminho,
os que se conformam à vossa Lei!
Fazeis nascer a luz
e cair a escuridão.
Fazeis brotar fontes de águas pelos vales
e de vossas altas moradas regais os montes.
Mesmo do carvalho mais velho
fazeis nascer seiva jovem.
Felizes os que guardam vossos testemunhos.
Vós promulgastes vossos preceitos
para serem cegamente seguidos.
Que meus caminhos sejam firmes
para eu observar vossos desígnios.”
E prostrou-se aos pés do visitante
dizendo:
-Senhor, tal portento e maravilha
estão além de minha compreensão e de meus merecimentos. Por anos a
fio rezei por um herdeiro, por anos a fio implorei por um filho que
perpetuasse meu nome e meu sangue, lavrasse minhas terras, esmagasse
meu vinho, tosquiasse minhas ovelhas, zelasse por minha velhice, mas
minhas preces não fizeram eco nos Céus. Agora, entrado em anos,
tenho um varão forte e saudável, nascido do ventre de Sarah. Como
posso agradecer, Senhor, uma bênção tão extraordinária? Como me
tornar merecedor de tão grande felicidade?
-Fazendo subir aos céus uma torre -
respondeu o velho.
-Uma torre, Senhor? – surpreendeu-se
Abrahan. Onde? Com que altura e dimensões?
Mas o velho virou-lhe as costas e sem
mais falas ou explicações seguiu seu caminho.
Abrahan era um homem justo e tão logo
terminaram os ritos e festejos pelo nascimento de seu primogênito,
lançou-se à empreitada da construção da torre, na ala norte da casa.
Abrahan era um homem de posses. Seus
vinhedos eram generosos e de larguíssima extensão, suas ovelhas eram
férteis e quase incontáveis e seu comércio com o Oriente movimentava
grandes caravanas, fazendo dele um dos mais abastados habitantes
daquelas costas rochosas. Tal era seu regozijo pelo nascimento do
herdeiro que resolveu fazer da torre uma obra para encher os olhos
de quantos a vissem, sem par naquela ou em outras terras.
Não poupou despesas. Mandou vir do sul
artesãos mudèjars, afamados por seus trabalhos de cantaria, e exigiu
que ali se erguesse uma torre tão imponente em sua solidez externa,
quanto leve e delicada em seus detalhes e acabamentos internos; uma
torre para rivalizar com os mais altos campanários, com os mais
altivos minaretes. Não satisfeito, ordenou que os interiores fossem
ornados com os mais finos materiais, os pisos decorados com
intrincados mosaicos. Mandou vir jade da India, ônix da Pérsia,
alabastro da Tchetchênia, âmbar do Mar Báltico, lápis-lazúli de
Ismênia. Mandou lavrar madeiras exóticas do Turcomenistão e marfim
dos confins da África.
Noite e dia trabalharam os artesãos,
revezando-se em turnos, gastando as vistas à luz das lamparinas de
azeite, alevantando o magnífico torreão, esculpindo, incrustando,
polindo.
Abrahan não media gastos e não
colocava peias à sua imaginação, a despeito dos reclamos de seus
contadores, que se horrorizavam com tal desrazão e com a sangria
incessante dos cofres de seu amo.
Quando Isaac foi desmamado a torre
estava terminada.
Soprava o Migjorn, com seus
humores cálidos, e foram dias e dias de festas. De todos os
quadrantes acorreram multidões para ver a maravilha, beber o vinho
abundante e bailar as alegres danças da terra, ao som de cavos
trompetes e agudos flabioles, marcadas pelo compasso envolvente dos
tubales.
Contabilizados os gastos com a
construção da torre, os vinhedos de Abrahan haviam diminuído um
pouco em extensão e eram menos numerosas suas ovelhas. Mas nada
disso o preocupava, nada disso importava, pois seu comércio com o
Oriente florescia como sempre, as ovelhas continuavam férteis, ele
confiava em Deus e em sua boa fortuna e, acima de tudo, agora ele
tinha um herdeiro, agora seu sangue não morreria, sua casa e seus
campos seriam, um dia, os campos e a casa de Isaac, seu filho.
Mal porém eram cessados os cânticos da
festa e eis que Sarah, vestindo amarelo, a cor das notícias gozosas,
vai a Abrahan e anuncia:
-Abrahan! Abrahan! Aconteceu
novamente, Abrahan! Não sei como, mas é fato. Outra semente cresce
em meu ventre. Vamos ter outro filho, Abrahan...
E assim foi, ou assim ficou registrado
e dado como verdade, e nasceu Samuel.
Abrahan exultou: tinha agora dois e
não apenas um herdeiro.
E seguiram-se os ritos e as festas do
nascimento e Abrahan, mandando convocar os mesmos artesãos mudèjars,
iniciou a construção da nova torre, na ala sul da casa, ordenando
que em tudo ela fosse idêntica à primeira, em cada detalhe em cada
ornamento, pois não queria que Samuel, seu segundo filho, viesse
algum dia a dizer que a torre de seu irmão Isaac era mais alta, ou
mais rica, ou mais nobre.
Mais uma vez as caravanas se
movimentaram e trouxeram do Oriente as finas pedrarias, o alvo
alabastro, o amarelo do âmbar. Sangraram novamente as árvores do
Turcomenistão para prover madeiras finas e exóticas e sangraram os
cofres de Abrahan, diminuindo em muito a extensão de seus vinhedos,
e tornando ainda menores seus rebanhos. E foi mais lenta a
construção da torre.
Soprava o Garbí, vento afável,
de caráter suave e morno e, orgulhoso por haver cumprido sua
promessa, fitava Abrahan a torre recém-erguida, comparando-a com a
primeira e não encontrando reparo a fazer no extraordinário trabalho
executado. As torres eram idênticas e magníficas e Abrahan se encheu
da certeza de haver cumprido a vontade do Senhor.
O sol se punha na imensa extensão do
mar. As primeiras estrelas pontilhavam o céu e Abrahan, abrindo os
braços em atitude de submissão, cantou o Smechin Bezetan, a prece de
agradecimento:
“Alegres estão as estrelas ao sair
e exultantes ao se por;
cumprem obedientes a vontade de seu Senhor.
Conferem honra e esplendor a seu nome,
proclamando a fama de seu Reino.
O Senhor chamou o sol
e o sol nos inunda de luz.
Concebeu a lua e lhe deu forma .
Tudo nos céus e na terra lhe rende homenagem
e sua glória e grandeza
são cantadas pelos anjos e serafins”.
Sentiu então a presença silenciosa de
Sarah, a seu lado, esperando que terminasse a prece.
Vestindo amarelo, a cor das notícias
gozosas, ela anunciou, mais uma vez:
-Meu senhor, tudo se repete, e cresce
em mim nova semente... Serás pai, novamente...
E Abrahan mirando o mar, limitou-se a
dizer:
- Naasse retzom hashem ! Seja feita a
vontade do Senhor !
E a vontade de Deus se fez e novamente
nasceu um varão e foi chamado Ozias e novamente Abrahan se ateve
fielmente à sua palavra e cumpriu o determinado. E a terceira torre
se ergueu, na ala oeste da casa, tão magnífica quanto as outras
duas, tão altiva, tão custosa...
Abrahan era agora o pai de três varões
e para cada varão erguera e legara sua torre. Mas não era mais o
homem rico de outrora. Seus vinhedos ainda produziam para muitos
odres e suas ovelhas eram ainda em número a impor respeito a seus
vizinhos, mas longe estavam os dias em que, por léguas e léguas em
derredor, nenhum homem podia fazer sombra à sua fortuna. Já não era
rico, mas sendo um homem justo, sabia que trilhava o caminho reto e
cumpria a vontade de Deus.
Soprava o Gregal, vento frio,
carregando o céu de nuvens cinzentas, quando Abrahan recebeu de
Sarah a notícia.
Ela não precisou dizer nada.
Simplesmente aproximou-se dele, vestindo o amarelo, e ele entendeu:
- Naasse retzom hashem... O Senhor é
lento para a cólera, cheio de amor e fidelidade. Justiça e verdade
são as obras de Suas mãos e Ele faz prodígios insondáveis,
maravilhas sem conta. Seja feita Sua vontade... Implorarei para que,
desta vez, o Senhor nos dê uma filha, desobrigando-me de erguer mais
uma torre.
Mas tal não foi a vontade de Deus e,
passados nove meses, mais um menino nasceu e foi chamado Eleazar.
Soprava o Mestral, arrastando
nuvens cinzentas e prenunciando tempos frios. Abrahan sabia que
erguer a quarta torre significaria sua ruína, mas Abrahan era um
homem justo e em momento algum hesitou. Mandou vir os mesmos
artesãos, importou as mesmas madeiras e pedrarias e deu seguimento à
obra, pedra por pedra, desfazendo-se aos poucos de cada vara de seus
vinhedos, vendo seus rebanhos minguar e serem conduzidos ao cutelo
ou a pastagens alheias, reduzindo suas posses apenas ao necessário
para o sustento da casa e o socorro aos órfãos e viúvas, como manda
a Lei.
Naqueles momentos difíceis, os que
outrora o adulavam viraram as costas e Abrahan soube quão falsos
eram tantos daqueles que se diziam seus amigos, tantos daqueles que
ele, no passado, ajudara e protegera.
Quando a torre de Eleazar ficou
pronta, Abrahan era um homem pobre.
Soprava o Xaloc, com seu bafo
morno e úmido, trazendo chuvas finas e persistentes, que pareciam
nunca ter fim, encharcando os ossos das gentes e dos bichos, e
Abrahan na praia, de costas para o mar, contemplava sua casa, ornada
pelos quatro imponentes torreões.
E mais uma vez Sarah se apresentou a
Abrahan, vestindo o amarelo...
Abrahan sentiu seu coração desfalecer
e inundar-se de desespero e, pela primeira vez, duvidou. Seria mesmo
Shaddai, o Deus de seus ancestrais, aquela figura que, um dia, se
apresentara em sua casa como um velho viajante? Perguntou-se se, sob
as vestes daquele peregrino, a quem estendera sua hospitalidade numa
tarde de calor, não se ocultaria o Grande Inimigo, o Senhor das
Moscas, o Anjo Caído, o Grande Enganador, com suas promessas, seus
ardis, suas armadilhas...
Mas afastou de si tais pensamentos e
voltou a depositar sua confiança no Senhor:
“Faze-me justiça, ó Senhor,
pois ando em minha integridade
e em ti confio, sem vacilar.
Examina-me, Senhor, coloca-me à prova:
à frente de meus olhos está o teu amor
e estou caminhando na tua verdade,
cumprindo os teus desígnios.
Afastastes de mim meus conhecidos,
tornaste-me repugnante a eles,
porém nada fiz, além de cumprir tua vontade.
E agora, Senhor, que posso esperar?
Não me castigues em tua cólera,
não me corrijas em teu furor.
Resgata-me, tem piedade de mim!”
Por nove meses cresceu a barriga de
Sarah e por nove meses Abrahan implorou ao Senhor por uma filha, ou
ao menos por um sinal que o desobrigasse de erguer nova torre, caso
Deus lhe desse outro filho homem.
Mas, chegada a hora, nasceu o quinto
varão e foi chamado Aram e nenhum sinal recebeu Abrahan de seu
Senhor.
Amanhecia.
Na penumbra do quarto, alumiado por
uma pequena lamparina de luz incerta e azulada, Abrahan contemplou
em silêncio o bebê em seu berço, ainda sem poder crer totalmente que
tudo aquilo era real.
Cobriu a cabeça com seu talit, o manto
ritual para as orações matinais, e segurou o recém nascido,
envolvendo-o delicadamente em suas mãos grandes e já não tão fortes.
Sentiu uma enorme ternura por aquela
criatura frágil e desprotegida, que se agitava em suas mãos.
Cerrou os olhos, alçou o bebê acima de
sua cabeça, como numa oferenda, e mais uma vez cantou com a voz de
seus antepassados:
“Não escondas tua face de mim
no dia de minha angústia;
inclina o teu ouvido para mim,
no dia em que te invoco!
Pois meus dias se consomem em fumaça,
e como braseiro queimam meus ossos;
pisado como relva, meu coração está secando,
até mesmo de comer meu pão eu esqueço;
por causa da violência de meu grito
os ossos já se apegam à minha pele!
E ali, no quarto em penumbra,
recitando aquelas palavras antigas e apertando os bebê em suas mãos,
começou a construir em sua mente a quinta torre, a torre de Aram,
tão altiva em sua soberba e tão delicada em seu esplendor quanto a
de seus quatro irmãos.
Com os olhos da imaginação lavrou
pedra por pedra suas paredes, esculpindo cada detalhe.
“Estou como um pelicano no deserto,
como um mocho nas ruínas.
Fico desperto, gemendo,
como ave solitária no telhado.
A torre subia aos céus, em tudo
idêntica às anteriores e, nas asas do sonho, Abrahan construía cada
nicho, cada platibanda, cada seteira do grande torreão.
“Eu como cinzas em vez de pão,
com minha bebida misturo lágrimas,
por causa da tua cólera e teu furor,
pois me elevaste e me lançaste ao chão.
Entalhou o mármore e as madeiras de
lei. E a cada verso cantado mais e mais sentia ganhar forças e
coragem e mais e mais apertava o pequeno, em sua mãos grandes e
novamente fortes, apertando-o, apertando-o.
“Meus dias são como sombra que se expande,
e eu vou secando, como a relva.
Eu me derramo como água
e meus ossos todos se desconjuntam;
meu coração está como cera,
derretendo-se dentro de mim;
seco está meu paladar
e minha língua colada ao céu da boca.
Tu me colocas na poeira da morte.
Bruniu o marfim, incrustou o jade, o
ônix e o âmbar; poliu a prata e o ouro, apertando o bebê em suas
mãos grandes e fortes, sentindo ceder seus ossos frágeis, fazendo
seu choro confundir-se com seu canto lamurioso, seu brado de
desespero:
“Tu, Senhor, Deus de piedade e compaixão,
volta-te para mim, tem piedade de mim.
Concede tua força ao teu servo,
e tua salvação ao filho de tua serva.”
E continuou apertando o bebê em suas
mãos grandes e fortes, abafando seu choro, em suas mãos grandes e
fortes, até que não mais se movesse, em suas mãos grandes e fortes.
E delicadamente voltou a pousá-lo no
berço, cobrindo-o cuidadosamente com seu talit.
A torre de Aram estava erguida.
Soprava o Ponent, vento cálido,
úmido, molesto e enfermiço...
(San Felíu de Guixols e
Salvador, fevereiro e março de 2000)
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