De não se Diz
DOR
não se diz rasgar rasgar um tecido
como só as mãos
festa vital do barbarismo rasgar a tela de linho longamente encerada
abrir um sulco uma esteira um traço olhar por dentro dele
(você se demora na janela o vinco do seu decote
o hábito de dilacerar as folhas do caderno)
não se diz reter o vislumbre da carne pela camisa mutilada
pele retraída ao toque cerimônia do intelecto que se avalia
guardar a coisa pelo avesso posse da coisa ida
(o ato sem causa de uma chave colocada no contato)
TREZENTOS ANOS VOLTAIRE NASCIA
verter o café num dia sem cor o
cálculo
do açúcar a colher inútil a voltear
mas olhando de dentro da espiral de fumaça
mil poetas absortos não obstante mortos
talvez se digam que quebrar esta xícara
bastaria para mudar a vida changer la vie
decidi ser feliz faz bem para a saúde
diz um deles livre uni-me ao aniversário
de sua ausência flor do ébano glauca
JARDIM À FRANCESA
eu com minha idade sentado num banco
de praça
meu coração era do tamanho do mundo
feito do seu elemento de água rumor e ornamento
duas alamedas duas fontes se escorrendo
meu coração era do tamanho deste mundo
ora assim igual a si mesmo ora se
desconhecendo
mas meu coração é menos perfeito do que esta praça
às vezes se lembra e dificilmente
da hora exata do retorno do tempo
meu coração às vezes tropeça projeta uma perna
sobre a outra
se interrompe mudo parece
que pensa
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DIABO TRISTE
o diabo tem um olhar triste em que
moram
pesados devaneios irmãos de todas as coisas
meu irmão mãos malhadas de passar a ferro
uma eternidade de palavras pernas magras
cruz de sua sede irrefletida os ombros curvos
sobre o pulmão o gesto fogueira do desejo
luzes foscas no cabelo as veias secas
como fontes em que o amor não entra mais
por mais que suplique não se tira o amor
não entra ar não sai não se tira mais seus ais
e sobre o corpo prometido a cal e argila
se imobiliza enfim uma alegria intransitiva
deus é seu hospital
ENQUANTO ISSO
enquanto o sarcófago de akhenaton
passa no tomógrafo
você vomita o segredo do último rei monoteísta
e para curar-se do grande fora precisa cultivar o grande
dentro tratar o vício com o vício matar-se e ir ao cinema
mudar risco em perícia susto em consciência (eu aqui fora
trancado dentro do carro mãos sem dono passeiam pelo vidro
são medusas de nossa perplexidade
SCHOPENHAUER DESCE AOS INFERNOS
e se a dor fosse apenas o fim da
alegria
escondida um pouco aquém das (palavras
desconexas que você me estende como anúncio)
cores enfurecidas quase imemorável encontro
do doer com aquilo que dói reconhecimento
com liberação morte com prazer da renúncia
refinamento da tortura com a boa terapia
(freud fustiga schopenhauer pendurado
nas mandíbulas do inferno enquanto sua mãe
mete o dedo do nariz) comi a flor do pêssego
você me diz amanhã teremos filho
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O Roubo
do Silêncio
TIGELA DE ÁGATE
Você fechou a janela, desceu as
escadas e disse em prosa que se sentia bem embaixo, no pátio aberto,
perto da porta. Você desceu o lixo, olhou o pássaro, brincou de
cabra-cega com as crianças do pátio. Então, pediu-me que servisse a
sopa numa tigela de ágate. A morte com dor não vale a sopa numa
tigela de ágate. O mundo reduzido ao essencial. Isso a faz morrer de
rir. O essencial, você me diz, cabe numa tigela de ágate. O que quis
dizer com isso? Que essencial não há, ou muito pouco, que no fundo
não importa, ou que de fato está nesta tigela de ágate? Desde então,
a dúvida me impede de dizer meu nome. Com a sola dos pés procuro o
fundo da terra sob um brejo de taboas. Cada vez que me perguntam que
fundo é esse, as entranhas me gelam, a discrepância me invade. Sinto
o fundo e ele me abala. Toda uma sismologia. Viajo sem ter vontade.
Em cada lugar por onde passo, quero de mim uma nova coragem. Certa
vez, você me acenou de longe, ao pé da plataforma, com os olhos
vermelhos. Você que nunca chorava. Quis exilar-me em você. E talvez
eu fique aqui, nesse boteco de luz amarela, no meio da amazônia, até
o fim dos tempos. Mal penso nisso, o galo ainda não cantou, você já
se estendeu ao longo do meu corpo, se derramou sobre mim e eu a
contive. Você cabe em mim tão completamente. Ouço a sua voz fraca,
perdida no percurso da garganta. O poema deve ser escrito com
sangue? Pois que o sangue seja vivo, vermelho pêssego, turquesa,
esmeralda. Foi então que você perdeu a voz, olhou de lado, fechou-se
muda. E sobre as pálpebras cerradas palpitam veias de um sangue
veloz. Diga-me: quanto sangue será necessário para aplacar o seu
silêncio?
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