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Marcos Siscar




Fundos para dias de chuva




 

Que fundos são necessários para dias de chuva? De que precisa a poesia para sustentar a vertigem da experiência? Para compor esse fundo, Annita Costa Malufe aposta na coleta do vivido em forma de “sucatas”, de “retalhos” a serem “restaurados” ou, simplesmente, montados. A memória, organizada pela idéia de colagem, encontra figura na imagem de um corpo sobre o qual ainda se lêem as marcas de um “crime arquivado”. Como Ana Cristina Cesar, Annita teatraliza a sinceridade, a intimidade da biografia, trazendo para o poema elementos do cotidiano, as paisagens domésticas, os contornos do corpo feminino, uma crueza, por vezes, excitante, o andamento de “diário”. Porém, inscreve essa intimidade não na trajetória veloz daquilo que vai se desintegrar, mas no momento intermediário do “solfejo”, entre o que não quer se realizar (“começo a traçar / um plano de fuga?”) e o que já se perdeu (“já estamos todos muito velhos”). A interioridade biográfica e a temporalidade familiar encontram uma imagem invertida no espectro do espaço aberto da estrada, dos passeios à beira mar, da cidade chuvosa. Em ambos os casos, o fundo falha e a perspectiva oscila. Se a poeta faz visita a lugares do passado, repete percursos feitos, alude a papéis e fotos amarelados, objetos e cenas de família, sua poesia expressa, entretanto, uma vontade de quebrar o espelho da memória ou da experiência exemplar. Ainda que confrontada à melancolia da perda, é desse gesto de afirmação do desejo e de ruptura que nasce a escritura de Annita, ousando dizer-se “como quem verte um copo de groselha / na toalha branca de linho da avó”. Dona de imagens fortes e de uma clara consciência poética, características pouco comuns em um primeiro livro de poesia, Annita impressiona pelo investimento pessoal com que vai tramando os fundos que darão suporte ao “enxame” da experiência.

 



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28.06.2005