Maria Célia Teixeira
Atrevimento é a palavra de ordem
5.10.2002
A partir de hoje, e todo primeiro
sábado de cada vez, o BIS vai traçar o perfil das nossas escritoras.
Vamos mostrar quem é quem na literatura brasileira. Começamos com a
cearense Joyce Cavalccante, romancista, contista, autora de sete
livros, alguns traduzidos para vários idiomas, participante de oito
antologias tanto no Brasil como no exterior.
Formada em
Ciências Políticas, a feminista Joyce é dona de um texto cuja
narrativa passou - de 78, data em que publicou seu primeiro livro
até os dias atuais - pelo erotismo, ousadia sexual, feminismo e
agora transita no regionalismo e na política.
Até o final do
ano lança os contos "Longos trechos de dias líquidos". Paralelamente
pesquisa os anos de 85 a 95 para escrever "Os brazucas", o terceiro
volume de uma saga que cobre 50 anos de Brasil - de 54 a 2004. Já
morou no Rio, em Nova York, Washington e há 20 anos reside em São
Paulo, onde fundou a Rebra - Rede de Escritoras Brasileiras.
BIS - Como se situa na literatura brasileira?
JOYCE CAVALCCANTE - Como a escritora mais atrevida que o nosso mundo
literário já teve que assimilar. Atrevimento é um dos meus
instrumentos de trabalho, os outros são notebook, caneta,
observação, acuidade auditiva e paciência com o ser humano. Sendo
assim, contribuo para manter a literatura viva, pulsante.
Escrevo textos
que poucos teriam coragem de assinar e com eles oxigeno o cenário.
Sou romancista por excelência e contista de vez em quando. Poesia
ainda não tentei, digo, poesia assim formal como se conhece; o que
não impede de espelhar no meu texto minhas origens nordestinas,
essas adquiridas ao pé dos cantadores de feiras e calçadas, contando
suas mazelas em rimas pobres mas honestas.
Você é cearense. Acha que por não ser do eixo
Rio-São Paulo foi mais difícil entrar no mercado editorial?
Um fenômeno muito Brasil é esse. Um cidadão pode ser o máximo em
talento e desempenho, se não vier se estabelecer no eixo Rio-São
Paulo, se perde na poeira. Senti isso na carne antes de sentir no
papel. Enquanto morava na exuberante Fortaleza, eu tinha placidez
para pensar e processar minha escrita, mas só fui publicar e assim
exercer a partilha do texto com os meus leitores, depois que mudei
para São Paulo, cidade cujas as partes são maiores do que o todo, ao
contrário do que se afirma.
Moro num bairro
de classe média onde o sol me dá bom dia e o padeiro comenta minhas
crônicas. E sou grata à literatura por ter me trazido até aqui.
Porém, sou também grata ao acaso que me fez nascer na beira de uma
praia nordestina. Posso ter certeza que a minha narrativa deve seu
colorido, sua dinâmica, sua variedade vocabular, ao fato de ter
nascido e crescido lá, na zona equatorial. No frigir dos ovos, saí
ganhando por ser cearense e de lá ter tirado toda riqueza da
imagética popular e por ter mudado para São Paulo em tempo hábil.
Sua literatura passou pelo erotismo, pela
ousadia sexual, pelo feminismo e agora está no regionalismo e na
política. Como foi esse processo?
Assim como Picasso, eu também tenho minhas "fases". Mas apenas as
formas estilísticas podem ser caracterizadas como fases, o conteúdo
não. O erotismo e a sexualidade não poderiam nunca serem trancados
na gaveta, dentro de um cenário de regionalismo político, ou dentro
de qualquer outro cenário que inclua a vida. O feminismo não pode
ser deixado de lado quando se fala de realidade. E como eu continuo
falando de vida e de realidade, esses componentes, junto a outros
essenciais a uma narrativa séria, estão lá. E a ousadia é inerente
ao atrevimento do qual fale no princípio.
Em seus livros há uma predominância de
personagens femininos marcados pela submissão. Acha que a mulher
brasileira continua subjugada em seu dia-a-dia? Mudou alguma coisa
ao longo dos anos?
Não, nada mudou. O opressão da sociedade sobre a mulher não mudou, e
sim a sua forma de oprimir. Não falo de mim mas de mulheres mais
simples, mais indefesas, talvez pela falta de leitura. Discorrer
sobre isso vale uma tese, repito. Os fatos estão aí para provar a
opressão a céu aberto em que vivemos. Cadê mulher presidente da
República ou de empresas? Cadê mulher costumeiramente nas lideranças
maiores?
Costumo afirmar
que "mulher quando ganha empata", quando quero resumir o conceito da
situação miserável que mantém a mulher na nossa sociedade. Na
literatura não temos exceção, e foi por isso que concebemos a Rebra
- Rede de Escritoras Brasileiras. Ela é uma associação de escritoras
que existe para maximizar as oportunidades das nossas escritoras,
divulgando suas obras e biografias, para desse modo talvez,
lograrmos a igualdade.
Sente na literatura o peso da discriminação?
Existe sim, discriminação. O que podemos fazer é lutar para acabar
com ela e para isso teremos que primeiro identificá-la. A
discriminação não é feita individualmente, ou seja, ninguém vai
publicar um péssimo escritor porque é homem e não publicar um poço
de talento porque é mulher. Não é um corpo a corpo. Claro que não. É
genérica. Mas, numa antologia, por exemplo, prevalece o gênero
masculino.
Nem precisa nem
duvidar. Pegue uma das inúmeras antologias sobre a melhor poesia do
século XX, essas que foram publicadas na virada do século, e contem
quantos homens e quantas mulheres estão presentes. Os homens, como
verão, estarão em maioria esmagadora, não porque sejam a maioria da
população, não porque não tenham mulheres talentosas o suficiente
para preencher a metade da quota, e sim porque a hegemonia masculina
é tão presente em tudo que escolhê-los é uma ação automática. É essa
a discriminação a qual me refiro. A coisa é tão sutil e tão milenar
que nem tomamos consciência de sua concretude.
Como é o olhar de uma escritora sobre o
universo feminino?
Tomo emprestado o olhar do teatrólogo grego Sófocles, quando
concebeu esse poema com o qual epigrafei o meu romance "Costela de
Eva".
"Eu olhei para o destino de nós mulheres e julgo
Que somos nada... Então quando chegamos
À plena descrição e maturidade
Somos atiradas fora e mercadas no estrangeiro,
Longe de nossos pais e deuses ancestrais,
Algumas para maridos estranhos, outras para bárbaros
Uma para um bruto, outra para uma casa plena de brigas;
E destes, após o jugo de uma noite,
Estamos obrigadas a gostar e a considerar bem conosco".
Seus personagens são reais?
Todo mundo me pergunta isso. Nunca soube responder. Acho que para
uma romancista como eu, pessoas e personagens são tão inseparáveis
como as duas faces de uma folha de papel. Mas tudo que escrevo é
passível de acontecer. No caso, sou uma descritora. Os nomes, as
locações, as emoções e os acontecimentos são pinçados da vida real;
de alguma coisa que antes se imprimiu em minha mente, mas quando,
como e onde não sei dizer. Não sei em que ponto de minha vida aquela
informação foi registrada por meu subconsciente.
Freqüentemente você faz palestras no exterior.
Sua literatura encontra-se mais reconhecida lá fora do que no
Brasil?
Não tenho muita noção. As coisas vão evoluindo sem um plano diretor,
e portanto, nada mais lógico que os espaços sejam ocupados sem uma
lógica preestabelecida e sem preencher ou satisfazer as nossas
expectativas. Mas me espanta quando as universidades ou os centros
acadêmicos me convidam para palestrar. Fico pensando em qual foi a
referência. Onde e quando ouviram falar de mim e de minha
literatura. Porque eu e não outra autora estimulou a curiosidade dos
convidadores.
A cada vez que
termino uma palestra feita em lugares longínquos e inusitados, assim
com a Universidade de Bordeaux, na França ou a de Ameherst em
Massachussets, EUA e o escambau; me lembro com todas as cores de que
sou apenas uma menininha provinciana, nascida em Fortaleza e criada
em Sobral, no interior do Ceará, cuja as asas nasceram a partir dos
livros de Monteiro Lobato e a partir daí nunca mais parei de voar. E
quando vejo meus livros em outras línguas, me sinto metida como a
Emília Sabugosa. Literatura é magia, pode acreditar.
Há quem fantasie a profissão de escritor
achando-os excêntricos ou extravagantes. Como é a sua vida de
escritora?
Eu também acho nós, os escritores, muito excêntricos, mas precisamos
ser assim para enxergar o invisível. Interpretar a realidade e dela
tirar nossos textos. Porque criamos, assimilamos esse hábito também,
trazendo a excentricidade para nosso dia a dia. Com o tempo a
família se acostuma e até passa a respeitar. Os inimigos se acham
cobertos de argumentos para dizer que a gente é doida, e os amantes
vibram com nossas extravagâncias. Todo mundo quer chegar perto. Todo
mundo quer mesmo é ser personagem. Inúmeras pessoas chegam-se a nós
para contar sua vida, pleiteando ver-se descrita em algum romance.
Qual é o seu relacionamento com outros
escritores? Acha que o contato estimula intelectualmente o escritor?
A gente sempre encontra a tribo a qual pertencemos. Foi por esse
motivo que fiquei amiga dos expoentes da literatura nacional e da
mundial também. São amigos. Inácio de Loyola Brandão, Nélida Piñon,
Neide Archanjo, Márcio Souza, Lígia Fagundes Telles, Raduam Nassar,
Álvaro Alves de Faria, Deonísio Silva, Ulisses Tavares e muitos
outros, poetas ou ficcionistas, todos amados.
Sofri muito com
a morte de Roberto Drummond, um querido. Devido a essa atração
tribal convivi com Vinícius de Moraes - tenho todos os seus livros
autografados e uma fita inédita, com um super bate-papo entre nós
dois. Meu dicionário Aurélio é autografado pelo próprio Aurélio.
Sempre que vou a Itália beijo a mão de Humberto Eco, na Universidade
de Bologna. Convivo e me enriqueço com a amizade da escritora
sul-africana, ganhadora do prêmio Nobel, Nadine Gordimer e obedeço
às ordens de Paule Constant, escritora francesa, ganhadora do prêmio
Goncourt e a amiga mais mandona que possuo.
Você é uma escritora que se preocupa com os
problemas sócio políticos e econômicos do País. Acha importante essa
participação?. A arte deve ter essa conotação?
Minha primeira graduação foi um bacharelado em Ciências Políticas e
isso veio situar melhor minhas reflexões sócio-econômicas, que já
existiam, lógico, pois desde a infância assisto a penúria
nordestina. Desde a adolescência também assisto a injusta
convivência entre a miséria do morro e a opulência da classe alta
carioca.
Isso sempre me
incomodou e assim concluí que luxo é igualar a distribuição de
riquezas. Proporcionar abundância para todos. Isso não quer dizer
tirar as terras, os bens ou as condições dos ricos, senão eles
passarão a ser pobres, e não é esse o ponto que interessa. Interessa
dar terras, bens e condições aos pobres para que adquiram abundância
também. Existem recursos para isso. Esses recursos não são
ilimitados, mas são suficientes.
Quem negar isso
é porque só quer fomentar os conflitos. E observe que o maior e
melhor desse recursos é a inteligência humana, raramente usada.
Luxo, status, situação não é ter um relógio Rolex todinho de ouro,
mas poder sair de casa usando esse objeto de arte sem susto, já que
todos poderiam comprar um se assim o desejassem. A classe política,
90% masculina, é a grande responsável pelas distorções
sócio-econômicas que nos fustigam. Eles são os vilões da nossa
história.
Por isso decidi
mapear 50 anos de história do Brasil na saga "O coração dos outros
não é terra que se pise", vai de 1954 até 2004. Indo por esse
caminho, mapeando a História do Brasil que se confunde com a
História da corrupção do Brasil, terei assunto para toda vida. Nada
mais fecundo portanto. Finalmente, acho importante participar da
otimização do mundo em que vivo. Como escritora e como cidadã não
posso apagar de meu cérebro essas chagas, pois elas estão em toda
parte assim como o oxigênio.
Está trabalhando em algum novo livro?
Estou em vias de publicar um novo livro de contos que se chamará
"Longos trechos de dias líquidos". Trata-se de um livro com dez
contos muito longos, quase umas novelas; todos tomando como cenário
a paisagem marinha, daí os dias serem líquidos. A capa e as vinhetas
internas serão do absoluto artista plástico também cearense, Aldemir
Martins. Pode aguardar. Enquanto isso, pesquiso e começo a escrever
"Os Brazucas", o próximo da tetralogia.
Leia Joyce Cavalccante
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