Fabrício
Carpinejar entrevista Vicente Franz Cecim
O
paraense Vicente Franz Cecim é um xamã da narrativa brasileira. Não
quer a salvação pessoal. Cura a linguagem, misturando poesia,
ensaio, prosa e anotações de viagem. Criou Andara, uma semente
verbal que virou árvore falante, depois floresta e hoje é uma
cidade pensativa de muitos afluentes e rios caudalosos, transfiguração
da Amazônia, região natal do escritor. Pertence a uma genealogia
de poucos e raros, como Guimarães Rosa. Sua intenção é mostrar o
que ele mesmo não sabe, o conhecimento de ir se desconhecendo. O
diferencial do ficcionista é o derramamento do canto. A literatura
é fantasma; a obra, invisível. Não existe fim, nem início,
serpente sonâmbula que morde sua cauda. O autor recusa a prepotência
e conversa nos ouvidos do leitor, pedindo conselhos e partilhando a
perplexidade dos mistérios. Em Andara, filósofos e poetas tem
paridade com moscas e serpentes. Anjos, mulheres e aves exercitam a
sabedoria da queda. Tudo é possível porque estamos no território
do Nada. É a leitura do espanto e da estranheza.
Como
define Vicente Franz Cecim? Fora e dentro?
Um
serdespanto, mas isso todos nós somos, para isso basta ter nascido.
E isso: Isso: que somos seres de espanto, é tudo o que nos é dado
saber. Agora, cada um é um serdespanto à sua maneira: uns, mais
ser no serzinho humano e menos no Ser de Tudo, outros mais sendo no
Ser de Tudo e só um serzinho de nada em si mesmo. É uma questão
de despertar o pequeno s para o grande S ou não. Mas haverá mesmo
essa diferença? Provavelmente, não: somos sempre o grande S
contido, Oculto, no pequeno s que somos. Talvez o que sou, não fora
& dentro, mas no foradentro, já que essa divisão é pura aparência,
possa ser dito por duas experiências que te conto brevemente. Dizem
que antigamente havia homens que viviam cantando, só queriam saber
de cantar, então os deuses os transformaram em cigarras: essas
cigarras que hoje nos ciciam nos crepúsculos sobretudo, ainda
seriam eles nos sendo em Cantos em coro junto com os cantos das
folhas secas. Tu já ouviste folhas secas cantando no vento? Esse é
a primeira experiência que me revelou estranhamente o que talvez
sou: lá pelos 3, 4, 5 anos, morava num casarão antigo em Belém
com muitos, muitos tios, tias, primos e os meus pais e minha avó,
mas fugia do tumulto feliz da grande família para ficar sozinho na
rua sempre deserta ao lado onde passava o muro imenso e compacto de
um cemitério já então só habitados pelos mortos, o Cemitério da
Soledade, onde ninguém mais era enterrado fazia anos. Era sempre no
crepúsculo isso, e enquanto a luz ia se esvaziando na Terra que
adormecia, as estrelas se esboçando no céu, e a lua branca, a que
aparece para nos alucinar de dia, de olhos abertos, ia cedendo seu
lugar à lua amarela, que aparece nas noites para nos alucinar de
olhos fechados, e o Silêncio ia se instalando em tudo com sua
presença sagrada de ausência dos sons: pois pense nos anos 50, um
tempo lento e vazio das agitações modernas numa cidadezinha lenta
como Santa Maria de Belém do Grão Pará: então, nesses crepúsculos
melancólicos, como eu ia dizendo, as cigarras começavam a me
chamar das gigantescas mangueiras enfileiradas ao longo do longo
muro da Soledade: Ce cim Ce cim Ce cim. Foi a primeira vez, que me
lembro, que pressenti o que eu fosse, o que eu era. A segunda vez, já
um jovem, na Ilha de Mosqueiro, próxima a Belém, lugar de férias
de toda a cidade no verão, uma manhã mal despertado quando lavava
os olhos na janela que dava para o quintal e a água caia das minhas
mãos e dos meus olhos, se deu outra Revelação: vi, lá embaixo,
no terreno alagado do quintal da pequena casa de madeira da minha mãe
Yara, a Felicidade, a Alegria de uma florzinha insignificante que se
banhava nas águas dos meus olhos recém-despertos para a vida visível.
Por aquele breve ou infinito tempo sem tempo, não houve homem &
flor, todos os eus do Universo se desfizeram e só ouve o Nós, o
Um, o Homem em Flor. E essa: Essa: alegria daquela florzinha me
disse tudo o que eu precisava saber para o resto da minha vida sobre
a Alegria natural que move e nutre, também com suas dores, pois
esse é o sentido didático de existirem flores com espinhos -
embora às vezes eu me pergunte se o que existe mesmo não são
espinhos com flores - toda a vida em si, dos insetos às galáxias e
mais, mais além das Galáxias e mais aquém dos Insetos. Veja,
nessas duas experiências, a Progressão aproximativa: como esses
Issos, pois são sabemos que nomes lhes dar, vão se chegando para nós.
Mas com rigorosas exigências, que também desconhecemos. Primeiro,
sob a forma das cigarras: sussurrando, mas se sob a condição da
Penumbra. Depois, sob a forma daquela flor: já Cintilando, pois
aquilo cintilou em mim para sempre, mas sob a condição inapelável
da mudez, do Silêncio. Um entrega mais plena sendo dada:
Luz&Silêncio, então, como um passo que apaga o anterior, a
outra entrega: Penumbra &Voz, também fosse ficando para trás.
Seria essa a origem mais remota de Andara, isso assim feito de
livros obscuros ainda escritos que vão cedendo lugar a um não-livro
sem nem sombra das palavras no papel que se quisesse só presença-ausência?
Bem, foi assim como contei. E houve o pássaro enorme que desceu do
céu sobre mim numa manhã chuvosa de Belém na minha juventude e
mergulhou em mim profundamente, em meu peito, onde ainda está - mas
é melhor não contar. Onde iríamos parar? Desde então fui
entendendo que um homem não sabe o que é, só sabe de si essas
Revelações que vai tendo ao longo da sua vida. No meu caso, é
mais complexo. Sim: porque desde que incluí em mim, ou me incluí
Nele, meu filho Franz assassinado aos 19 anos e passei a me chamar
Vicente Franz Cecim, passei, passamos, a ser dois os que escrevem os
livros de Andara, dois os que vivem, em Um, a vida: Ele na vida
invisível lá, eu na vida visível aqui. O Pai & e o Filho, o
Vivo & o Morto. Ó Serdespanto. Mas eu usei as palavras erradas:
eu quis dizer: - O Pai aqui, ainda o Florescido & o Filho lá, já
o Fenecido. Florescer, fenecer, entendo mais essas palavras a partir
da natureza transeunte. Não entendo muito bem essas palavras,
Nascer, Morrer, acho que elas têm certezas demais sobre coisas que
não sabemos. Foi dessas formas que fui me sendo, me tornando, o ser
de espanto que hoje sou aos 55 anos. Sempre encarei esses
acontecimentos com muita naturalidade.
O
Livro Invisível é uma forma do autor se ausentar e deixar que
unicamente a vida escreva, sem mediação?
É
sempre a vida que nos escreve, nós não escrevemos nada, é o Nada
que nos escreve escrevendo a vida, as paisagens, os homens, as
chuvas, o vento, as vozes das coisas, seus cantos também, através
de nós: somos o Lápis que Escreve o Livro que escrevemos vivendo.
Os livros escritos são apenas cópias mal feitas desse Livro, e
nossos lápis têm pontas rombudas. Mas um dia escreveremos como
passarinho canta: de repente canta, e canta porque canta, sem saber
por que. Na verdade, não canta: é ela: Ela: quem através dele
canta, a Vida real oculta em nós, em tudo. Mas lá encima já falei
errado de novo, preciso corrigir isso: eu não quis dizer Nada, essa
palavra eu deixo à deriva no Ocidente, eu quis Vazio. Eu quis
dizer: - O Vazio que transborda. É ele que nos escreve escrevendo a
vida. Eu fui sabendo disso à medida então que ia escrevendo os
livros visíveis de Andara, que são os livros que escrevo, os
volumes individuais da Obra, e à medida que Viagem a Andara, o
livro invisível que não escrevo, Ele é um não-livro, literatura
fantasma, ia se formando: ia nutrindo esses livros para que eles
existissem e deles ia se desnutrindo para existir em sua não existência.
Andara me escreve, por isso escrevo Andara, que é a Amazônia
transfigurada através de Mim. Se eu fizesse literatura apenas - o
que não serve para nada, ou para muito pouco - e não deixasse a
Literatura de lado para me dedicar, dedicar toda a minha vida, a
praticar essa Alquimia de me tornar cada vez mais um ser de
Escritura e cada vez menos um homem escritor, Andara não existiria.
Andara, sabe o que é Andara: é um Serdespanto geográfico. Já a
Amazônia é - poderia dizer só, para deixar bem claro - uma
geografia espantosa. Mas é a Amazônia, a Natureza Sagrada, que
torna possível essa impossível Andara. Tu vês: novamente se
repete a parceria do Pai & do Filho, do Florescido & do
Fenecido. Nesse caso, é a parceria do Real que nos Sonha com os
nossos Sonhos do Real.
Conversa
continuamente com o leitor. Questiona, dá licença, compreende. É
um recurso para extirpar a solenidade e a arrogância do escritor?
A
sensação é que testemunha e lê a obra, não a escreve. Desde
jovem fascinado pelos livros, lá pelos meus 16 anos, me irritava
muito uma coisa na Literatura: sua prepotência. A prepotência do
Autor, a submissão do Leitor. Vivia dividido entre o fascínio e a
irritação. Hoje entendo assim o que se passa: isso acontece quando
no Autor ainda predomina, rígido, o homo faber & o homo sapiens
vindo, não abre de par em par as portas como seria de se esperar,
mas ele próprio um tanto prisioneiro de sua chave de saber e cheio
de auto-suficiência, muitas vezes estraga tudo, encerrando o Leitor
num círculo fechado em que determina todos os movimentos
permitidos. Faltava o terceiro homem, que raramente vem se juntar
aos outros dois na longa História da Literatura, mas que até às
vezes - tão transbordante é o Vazio que através de nos transborda
- de repente emerge do próprio Autor artesão, num momento em que
ele martela em devaneio o ferro do seu texto. Quem era o ausente? O
homo ludens. Foi ele que viu em Homero os dedos cor de rosa da
Aurora, não foi? O homo faber viu a Aurora e não teve tempo para
se comover com isso, o homo sapiens viu o sol reaparecendo após dar
a volta à Terra e se apressou a registrou seus movimentos. Isso não
basta para que as vértebras infantis cantem seus cantos em arte.
Pois então. Eu ia lendo os livros, e pensava: a vida: a Vida: é
que é importante viver. Tantos segredos velados a serem quem sabe
desvelados. Me lembrava da Alegria da florzinha se banhando na água
dos meus olhos, de outras coisas que me aconteceram depois. E ia
entendendo que a Literatura freqüentemente mais velava do que
desvelava a vida. E me sussurrava, só pra mim, escrevendo sempre,
sempre, no meu canto, quieto: só escrevo um livro quando tiver
conseguido eliminar toda separação entre o livro e a vida, entre a
vida escrita e a vida vivida, entre a minha e eu que escreverei, e
sobretudo entre o leitor e eu. E chamava, como depois passei a
chamar o pássaro Curau, eu mesmo não, mas o personagem Jacinto de
Os jardins e a noite: - Vem, homo ludens, vem levar os homens para
os teus jardins de textos. E foi assim, adiando acrescentar
infelicidade à infelicidade de uma literatura feita por homens
confusos e leitores infelizes, que só escrevi - tentando escapar a
essa Limitação - e então publiquei, o primeiro livro de Andara, A
asa e a serpente, em 1979, já aos 33, aquele idade em que se vai
para a Cruz. Eu não queria ir para a Cruz, queria ir para baixo da
Figueira. Foi conversando com os homens escondidos dentro dos
autores dos livros, conversando, repare nisso, menos que lendo o que
eles escreviam, que eu fui me tornando naturalmente um homem que de
dentro dos meus livros converso com os leitores que estão fora do
livro. Aí, eu puxo para dentro, como entrava nos livros que lia, e
temos estranhas e íntimas conversas à sombra da Página em Branco,
que vai se cobrindo, como as folhas secas das mangueiras das
cigarras cantantes, de palavras. Dessa conversa participa o Universo
inteiro, dela gostaria de conseguir um dia que toda arrogância
fosse banida: no Livro Invisível de Andara um inseto tem tanto
direito quando um homem de manifestar o seu espanto por existir. O
autor freqüentemente é menos que os personagens. É mesmo mais
como tu dizes: Autor, já quase só mera testemunha da vida se dando
como vida escrita.
Imagina
um desfecho para a mítica Andara?
Os
livros de Andara sempre terminam, devessem terminar com a frase: A
viagem a Andara não tem fim. Admitir que os livros escritos de
Andara pudessem ter um fim, isso seria como admitir que a vida visível
pudesse tem um fim. Não peço que ninguém me acompanhe nisso que
agora vou dizer, se não foi chamado pelas cigarras, se não teve a
experiência do Homem em flor, se não recebeu e tem guardado um pássaro
dentro do peito. Para ter um fim, uma coisa precisa existir. E os
livros visíveis de Andara existem, a vida visível existe? A vida,
a visível, escrita ou vivida, é da natureza das miragens. É isso
que oscila entre o Florescer e o Fenecer. Ser de empréstimo,
transeunte. Seu encanto é sua natureza de passagem. Suas palavras
favoritas são Sonho, Efêmero, Fugaz. Existe é o transbordamento
do Vazio, o vazio no centro que faz toda a roda girar. Existe é
Vida invisível, mas dessa: Dessa: como falar a propósito dela a
palavra Fim? Quando os livros escritos de Andara tiverem deixado de
existir um dia, a Viagem a Andara, o Livro Invisível que não é
escrito continuará existindo em sua existência de não-livro. Mas
vê, repara: Andara não é mais só uma cidade, também com ela se
deu o Gênesis dos caminhos vegetais ao longo desses anos todos de
surgimento de Viagem a Andara, o livro invisível: Andara começou
como uma Semente: era apenas um bairro esquecido à beira de um rio
indolente da cidade de Santa Maria do Grão habitado pelos mortos de
um cemitério esquecido e a floresta ia retornando sobre a Civilização,
recobrindo tudo: depois Andara se tornou um Arbusto: foi quando ela,
crescendo, se expandindo, se tornou a Amazônia inteira: depois, eis
Andara Árvore, e dando seus frutos: foi quando sua expansão a
levou a se tornar uma região-metáfora da vida inteira: agora, nos
últimos livros escritos de Andara que vão nutrindo o não-livro
invisível, eis Andara Floresta: ela pulsando lá, no bairro
esquecido inicial, mas já vai indo desse pequeno bairro esquecido
da cidade do Grão até às imensas distantes Galáxias. Andara
sempre quis e o que mais quer é ir do Visível ao Invisível. E
isso não é o caminho para um fim, que é sempre uma Queda, mas um
percurso para a origem: a Origem de Tudo, o que é uma Ascensão.
Fica
entre a prosa e a poesia, ensaio e ficção. Ser inclassificável não
o desagrada, condenando-o a permanecer num círculo restrito de
iniciados e ainda longe do grande público?
Não
ter parâmetros ou antecedentes dificulta a difusão crítica? Difusão
interessa, mas pouco: interessa mais a infusão, aquela Alquimia, de
que te falei no começo, em que tudo cesse suas vidas separadas e se
funda no Uno: prosa, poesia, meditações, reflexões, texto em
Escritura, insetos e homens, o Visível e o Invisível, o dito e o não
dito, o Silêncio e a Voz, a página branca e a página escrita, o
sonhado e o vivido. Andara quer a fusão total, quer a fissão que
abra a Fenda por onde tudo se reencontre na Unidade Original. Deixa
eu acrescentar uma coisa: Andara tem parâmetros, sim: mas não estão
onde estão sendo buscados pelos leitores, pela crítica
especializada em Literatura, não são parâmetros simplesmente
literários: os parâmetros de Andara só podem ser achados na própria
Vida. Para ler Andara, não basta saber ler letrinhas no papel, e,
aliás, nem mesmo é preciso ler Andara: mas é indispensável
conseguir ler através do lido: aí se renovará a Alegria que me
foi transmitida pela florzinha que bebeu a água dos meus olhos
quando eu era criança. E então se lerá Andara. É essa Alegria
que escreve Andara. Não eu, que sem ela provavelmente jamais
escreveria nada. É ela, como já disse, que através de mim
inscreve o Vazio em Andara. Mas não é tão preocupante assim que
Andara esteja um tanto fora do Mercado de Livros. Na verdade, não
está. Como poderia, se o Mercado de Livros, como os insetos e as
estrelas, já está dentro de Andara?
As
vozes de Andara estão sempre em trânsito, nunca satisfeitas. A
busca do homem consiste em fugir de sua identidade?
A
busca aflita, sim. Essas são as Vozes da busca aflita. E é assim
que, na vida visível, as coisas são. Quase como disse Beckett:
Como é. Mas eu penso que em Andara a busca do homem é exatamente o
contrário: é fugir da sua não-identidade. Em Andara há uma
frase-epígrafe: Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim: e é
assim que tu verás um S nestes dias cegos. Vê: Andara se faz
perguntas, as perguntas que a Vida se faz. Ou que os homens
imaginassem ela, a Vida, se fazendo. O que também é uma forma de
perguntar: a Imaginação é a nossa maior boca de perguntas. Em
Andara, se a pedra se pergunta: Um dia serei semente, e serei árvore,
e darei frutos? Se o Vento se pergunta: que Pulmão me emite como
voz sem palavras, por que às vezes cesso, e é como se nunca
houvesse existido? Se o Homem se pergunta: a minha sombra é mais
real que eu? Todas essas perguntas deixam de ser perguntas no
momento em que são feitas e se tornam realidades de Andara. Andara,
reconhecendo a ignorância humana, é Terra de Hipóteses. Melhor
assim do que a arrogância tola de um Saber que ainda não temos.
Mas vê que eu não sou o que se chama de um pessimista: eu disse:
um Saber que ainda não temos.
Sua
obra é um elogio ao silêncio. Acredita que desaprendemos a residir
na linguagem (não mais a habitando poeticamente)?
Esse
é o equívoco: o Equívoco: nós não habitamos a Linguagem, ela é
quem nos habita. Apesar de todos esses séculos de Literatura não
teríamos aprendido nada? Ainda não entendemos o que significam as
palavras: No princípio era o Verbo? O verbo está em nós, e não nós
nele.
Seus
personagens estão em perpétua queda. Todos os treze livros de
Andara (reunidos em três volumes) são marcados pela negação. O
que impede a ascensão? Até quando "atravessaremos o que nos
nega, para chegar ao sim"?
Talvez,
para muitos, seja terrível ter que dizer isso: O homem precisa se
deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o
direito de adquirir asas. Será durante a sua Queda que irá
descobrir sua Leveza possível. Assim agarrado em seu próprio
tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta
que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de
semear-se, de semear a coisa humana na Terra e ser a chuva inversa
dos Céus? Em Andara está tudo caindo e tudo subindo. Andara é
esse se cruzar no meio do caminho entre a asa e a serpente, passando
pelo homem agarrado em seu tronco e lançando sobre ele Clarões e
Sombras para que finalmente veja: a Terra lá no alto, o Céu
embaixo de si. Vê, tu sabes que eu gosto de falar com as palavras
das imagens. As palavras são ressequimentos, belos ressequimentos,
mas nas Imagens ainda há o viço. Imagina: que estamos no centro da
Terra, no coração do Coração da Matéria: e então aí alguma
coisa vibra imperceptivelmente: depois, mais perceptivelmente, e vai
se nascendo e é: uma semente: um caule: a luz do Sol e desabrocha
uma Flor: que se vive, e depois vai murchando, fenecendo: uma parte
se curvando, retornando à Terra, mas a outra: a Outra: o seu
perfume, se evolando e ascendendo aos céus: sempre ascendendo,
passando pelas aves que voam sob as nuvens e mais adiante já pelas
Aves que voam por sobre as nuvens, e diz-se disso: Anjos?: e sempre
subindo o perfume da Flor indo em sentido inverso à flor coisa
fenecível, então irremediavelmente fenecida, e já deixando as
Aves mais altas para trás e agora passando pela luz das estrelas,
tantas Galáxias a ultrapassar, eis: o perfume penetra, também
irremediavelmente atraído, como a flor fenecida pela Terra, na Luz
que deu luz às estrelas: que agora também ficando para trás: é a
Pura Luz que chama, Chama onde mergulha e na qual se funde o
perfume: o Perfume: indo cada vez mais fundo através dessa Luz até
tocar a Semente Sem Luz, a Semente que nem Luz é ainda: diríamos:
a Semente sem semente: agora estamos no Coração do coração sem
coração das coisas: e aí, eis: então alguma coisa vibra
imperceptivelmente ainda não coisa: depois, mais perceptivelmente,
e vai se nascendo e é uma semente: a Semente que está, sempre
esteve nascendo no centro da Terra, no coração do Coração da Matéria.
Ponto final. Eu te pergunto: saímos do mesmo lugar? Não. Esta não
foi uma viagem entre dois pontos, foi uma viagem entre um ponto e
ele mesmo. Não há dois pontos e um espaço entre eles a percorrer.
Só a viagem: a Viagem. Só ela acontece. Só a ela é dado
acontecer. Andara é essa viagem, entre dois pontos que não
existem. Andara é o Lugar de Nenhum Lugar, por isso é o Lugar de
Todos os Lugares. Ficou mais claro, agora?
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